quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Di María foi a pessoa errada a dizer a coisa certa. Só o levou a sério quem sente, na pele, o alcance de cada uma das suas palavras

"Recentemente, Di María - conceituado jogador do PSG - sentiu necessidade de desabafar o que lhe ia na alma, escrevendo um texto longo e profundo sobre as dificuldades reais que os jogadores de futebol enfrentam. Disse o astro argentino que a vida de um jogador não é o oásis de facilitismo e leveza que aparenta ser.
Naturalmente que, face aos valores astronómicos que aufere, muitos foram os anónimos que se apressaram a criticá-lo... e a criticá-lo ferozmente.
Percebe-se.
A maioria dos comuns mortais não aufere, numa vida inteiro de labuta e sacrifício, o que ele recebe em menos de um mês. A maioria dos comuns mortais não é um ídolo à escala planetária, não dá autógrafos à criançada, não tem uma vida de luxo, nem faz o que quer, quando e como quer.
Mas, ainda assim, devo confessar-vos... penso ter percebido o alcance das suas palavras.
Se é verdade que ele é um dos que teria menos legitimidade teórica para se queixar", não deixa de ser também verdade que essa sua versão dos factos encaixa, na perfeição, a muitos dos seus companheiros de profissão.
Tomemos como exemplo o que acontece em Portugal.
Por cá, apenas três (quicá quatro) clubes têm estrutura, dimensão e capacidade para suportar ordenados elevados a alguns dos seus profissionais. Os restantes - incluindo os que alinham na mesma competição - não o conseguem fazer.
Para que tenham uma ideia, há jogadores na 1ª Liga com vencimentos mensais em nada diferentes daqueles que auferem a média dos portugueses. Como é do domínio público, há até casos pontuais de ordenados em atraso e de situações pessoais francamente difíceis. Se olharmos para os escalões inferiores, a situação é então bem mais dramática.
Serve esta reflexão para sublinhar a ideia que, de facto, a vida de um jogador de futebol - ou de um treinador ou até de um árbitro - não é, sob o ponto de vista financeiro, pessoal e social, tão fácil e simples como todos julgam ser.
Já se viu que só uma pequena elite é que tem o privilégio de viver desafogada e tranquilamente. Todos os outros encontram as mesmas dificuldades, os mesmos constrangimentos e as mesmas barreiras que a esmagadora maioria das pessoas fora desse universo encontram.
A vida de um "desportista" é de uma exigência pessoal tremenda. Quase inacreditável. Há regras, horários e objectivos para tudo e a toda a hora (até no curto período de férias que dispõem). Todos são controlados meticulosamente e nada escapa a esse escrutínio: há que comer equilibramente, sem excessos nem devaneios; que treinar diariamente, com intensidade e obedecendo à hierarquia; é quase impossível sair à noite, estar descontraído com amigos ou expor-se em demasia; é fundamental resguardar-se com prudência, cumprir directrizes quanto a períodos de repouso, enfim... jogadores, treinadores e árbitros vivem numa espécie de incubadora. Estão permanentemente sob os olhares impiedosos da opinião pública e não se podem pôr a jeito.
Todos os cuidados são poucos quando o mundo é louco. Este tipo de exigência torna-os prisioneiros da sua aparente liberdade.
É certo que alguns até ganham bem e que outros têm prestígio e fama... mas para que serve tudo isso se vivem uma vida inteira sem a viver de verdade? Para que serve tudo isso se, na hora de ir ao cinema com amigos, na hora de pegar nos filhos para ir ao parque ou na hora de jantar em família, a liberdade não existe?
Se juntarmos a essas limitações pessoais/sociais, outras piores - que surgem quando as coisas correm mal - então já não estamos a falar de viver dentro de uma cela confortável... estamos a falar de estar confinado à solitária. Quando o vento está contra e a rebentação é forte, todos os cuidados são poucos.
Os adeptos insultam por todos os meios que dispõem (e são tantos), as claques ameaçam, a imprensa destrói e, de um segundo para outro, o jogador (ou árbitro ou treinador)... deixa de ser quem era e passa a ser ignorado, mal-amado, odiado.
Para não dramatizar a coisa em demasia, nem vale a pena falar também dos estágios intermináveis longe da família, das viagens que nunca mais acabam, das lesões graves, da incompreensão de chefias e colegas, da frustração de não actuar, dos períodos de recuperação lenta, das maldades que outros malandros fazem, and so on, and so on...
Todos nós enfrentamos obstáculos na vida e é certo que quem enfrenta os maiores são aqueles que não têm a felicidade e o privilégio de fazer o que gostam nem receber o que merecem... mas acreditem quando vos digo: dinheiro e fama não é sinónimo de liberdade ou de felicidade.
Di María foi a pessoa errada a dizer a coisa certa, por isso só o levou a sério quem sente, na pele, o alcance de cada uma das suas palavras."

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