terça-feira, 9 de julho de 2019

A grande tranquibérnia das Salésias...

"Antes e depois dessa jornada eléctrica que acabou com o golo de Martins ao Belenenses, a quatro minutos do fim, oferecendo o título de campeão ao Benfica, muito se escreveu nos jornais e muito se papagueou nos cafés da capital.

João Baptista Martins nasceu em Sines e jogou no Benfica. No Sport Lisboa e Sines, melhor dizendo. Jogador formidável! Figura da história do Sporting.
E do futebol português: foi o primeiro marcador de um golo na Taça dos Campeões, frente ao Partizan de Belgrado, no Estádio Nacional.
Em Alvalade, chamaram-lhe o Sexto Violino. Era tido como o herdeiro de Peyroteo.
Ora bem, João Martins teve um grande importância, em 1955, no título de campeão ganho pelo Benfica.
Reparem: nas Salésias, o Belenenses recebia o Sporting. Ganhando era campeão.
Com Matateu, ninguém duvidava de que vinha aí o segundo título para os azuis. Não veio.
Por causa de Martins. A quatro minutos do fim, fez 2-2. O Benfica venceu em casa o Atlético.
Costa Pereira. 'Não me lembro de nada. Disseram-me: 'somos campeões'. Fiquei inerte no relvado. De joelhos. Só voltei a mim quando me carregaram em ombros'.
Joaquim Bogalho, o presidente: 'Não me peçam para falar. Sinto-me incapaz. Andei meses e meses perdido num desconsolo, já convencido de que nada haveria a fazer para ganhar este campeonato. Senti-me de tal forma triste, desiludido, que ponderei não tomar posse do cargo para o qual fui eleito. Senti que não o merecia. Dei por mim a dizer com os meus botões: 'és a ruína do futebol do Benfica!' E, agora, esta festa. O futebol é um desporto inacreditável!'.
No Restelo, os adeptos não ficaram de braços cruzados. Lançaram uma petição: que todos os sócios contribuíssem com dinheiro para pôr nas vitrinas do museu do clube uma taça de campeão. Considerava-se merecedores dela.

Confusões
O jogo das Salésias chegava ao fim entre lágrimas. Lágrimas de profunda tristeza. A direcção não teve dúvidas: apesar do empate e da perda do título, haveria um prémio de 500 escudos para cada jogador. Matateu, o grandíssimo Matateu, chorava como um menino: 'Só sei que chutei, vi o Carlos Gomes defender a bola em cima do risco de baliza e o fiscal fazer o gesto de correr para o centro do campo. Era golo! Era o 3-1. Ficaríamos descansados, ganharíamos tranquilos. Mas o árbitro decidiu que não, que a bola não passara toda para além da linha. Que pena, que pena...'
Martins abraçou-se a Carlos Silva. O enorme Carlos Silva, meu tão querido amigo já desaparecido. Como se lhe pedisse desculpa por aquela espécie de traição. Carlos Silva era duro, vigoroso, mas sempre um senhor.
Domingos Miranda era o árbitro.
No momento em que apitou para o final do encontro, um espectador entrou em campo, possesso raivoso, e quis ir-lhe aos fagotes. A polícia foi obrigada a intervir.
Alguns perderam as estribeiras. Muitas vezes a tristeza transforma-se em raiva, como foi o caso.
Gritos de revolta. Homens inconsoláveis. Scopelli, o treinador do Sporting, refugiado em Portugal por via da II Grande Guerra, que treinara o Belenenses por duas vezes, tinha sido acusado antes do jogo que iria facilitar para que o seu Belém ganhasse. Ora, Alejandro Scopelli Casanava, nascido em La Plata, na Argentina, no dia 12 de Maio de 1908, que vestira a camisola da Cruz de Cristo também como jogador, era de uma seriedade inatacável: 'Não brinquem com o meu profissionalismo, com o meu brio. Uma coisa é a enorme simpatia que sinto pelo Belenenses, que sempre me tratou como um principie, outra é a minha responsabilidade com o meu patrão, com os sócios do Sporting, com a verdade desportiva. Não, meus senhores, não me envolvam em porcarias sórdidas que estão para lá do meu entendimento'.
Travassos também era tema de conversa nos cafés da capital. Estava lesionado, e muita da má língua punha em causa essa lesão, garantindo que era mais uma das manigâncias montadas para garantir o título ao Belenenses. Travassos coitado, desesperado com essas acusações: 'Passei as últimas três noites em sofrimento intenso por causa da lesão que sofri frente ao Covilhã. Poupem-me! Nem consigo dormir! Acham que esses insultos mexem comigo? Comigo, que fui sempre exemplar na minha profissão?'
Com dores ou sem elas, foi o jogo, contribuiu para o primeiro golo do Sporting.
Otto Glória, no seu estilo pachola, desfazia todas as tranquibérnias: 'Mas alguma vez, alguma equipa vai deixar o adversário ganhar, seja lá pelo que for? Que disparate! Deixem-se disso. O Sporting fez o seu papel, e nós, o nosso. Fomos campeões. Percebo a tristeza dos belenenses, mas o futebol é mesmo assim'.
Prémio de consolação para os azuis das Salésias: convidado para uma grande digressão pelo Brasil, o Benfica deixou-lhe o seu lugar na Taça Latina, na qual participaram pela primeira e única vez."

Afonso de Melo, in O Benfica

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