"Há momentos na vida em que um adepto de futebol – actividade monomaníaca e exclusivista – desvia a atenção dos relvados e começa a reparar na beleza de desportos minoritários e exóticos como o futebol de praia, a natação sincronizada e o lacrosse.
Ocorre-lhe a ideia, também ela exótica, de que na verdade o que diferencia o futebol desses outros desportos olimpicamente menosprezados é apenas a atenção que o cidadão comum lhe devota. Então, esforça-se por acreditar, não sem um certo lirismo, que o padel e os saltos para a água também atrairiam multidões se, por decreto governamental ou catástrofe inexplicável, o futebol desaparecesse dos nossos hábitos quotidianos.
Nas preferências de outros povos por desportos que não entende, como o basebol ou o críquete, julga encontrar provas que fundamentam a sua teoria. Pensa que se o seu fanatismo futebolístico é apenas fruto de um caldo cultural específico, e não de uma superioridade intrínseca ao chamado desporto-rei, poderá talvez diminuí-lo, controlá-lo e até emancipar-se da sua influência se puder escapar às condições ambientais que, em primeira instância, o tornaram num viciado do pontapé na bola.
Os momentos mais propícios a uma desintoxicação são os Jogos Olímpicos – duas semanas de quatro em quatro anos em que o futebol passa para segundo plano e, em comparação com outras modalidades, até com a equitação, se revela um espectáculo entediante – e aquela altura do campeonato em que o clube desse adepto se atrasa irremediavelmente na luta pelo título.
Se, ao fim de uma semana de Jogos Olímpicos, há quem suspire logo por um joguinho de preparação da sua equipa contra onze autóctones amadores num campo de treinos de uma pacata povoação suíça rodeado de montanhas e emigrantes, os maus resultados a meio da época transformam cada jogo num tormento pois nessa altura é impossível encontrar um refúgio a salvo do entusiasmo dos adversários e de notícias sobre futebol. É então que o adepto se vira para outras modalidades em busca de consolo e com o sentimento de culpa de quem, nos dias felizes, nunca quis saber delas para nada.
Entre o fim de Outubro e o início de Novembro, quando o Benfica alinhou três derrotas consecutivas (Ajax, Belenenses SAD e Moreirense), muitos benfiquistas descobriram o encanto discreto do bilhar às três tabelas.
No final de Novembro, a goleada em Munique fê-los pesquisar sobre ginástica rítmica no google. Dezembro, mês de paz entre os homens de boa vontade, reconciliou-os com o futebol, graças ao espírito natalício, sete vitórias de rajada e meia-dúzia de golos para o cabaz do Braga. Mas veio o novo ano e a derrota em Portimão fez disparar o interesse pela pesca desportiva, técnicas de pintura a óleo e o consumo de álcool em geral.
A única boa notícia vinha do Porto. Ao contrário do que se poderia esperar, as dezoito vitórias seguidas da equipa de Sérgio Conceição ofereciam algum sossego aos rivais. Uma superioridade tão vincada tem, nos adeptos de outros clubes, o efeito da morfina num doente terminal. Já que o desfecho é inevitável, quanto menos se sofrer melhor.
Cada triunfo do Porto era, à sua maneira, um golpe de misericórdia nas ilusões que, contra toda a lógica, ainda subsistissem nos corações vermelhos. O ideal era dar o campeonato por perdido, encomendar as faixas e remetê-las ao adversário, estudar as regras do voleibol e ocupar o tempo a elaborar mentalmente a lista de dispensas e de contratações desejadas. O ano de 2019 mal tinha começado e já o pano descia sobre a temporada do Benfica.
Com a entrada de Bruno Lage e a paulatina recuperação da equipa, os adeptos lá foram abandonando as modalidades ditas amadoras e começaram a espreitar pelo canto do olho a evolução do futebol. De início, a medo e sem alimentar muitas esperanças. Depois, quando o Porto perdeu alguns pontos, com uma expectativa crescente, ainda que tão controlada quanto possível. Finalmente, após a ultrapassagem na curva do Dragão, com o sentimento dúplice de alegria por se ter feito o mais difícil e pavor pela possibilidade de perder duas vezes o campeonato num só ano.
Foi Bruno Lage quem o disse no início de Abril, na véspera da visita a Santa Maria da Feira: “A determinada altura os adeptos sentiram que perderam o campeonato, mas com a recuperação que a equipa fez eles voltaram a acreditar. Agora sinto que as pessoas, por tudo aquilo que se vai vivendo, estão novamente com receio de voltar a perder o campeonato, e perder um campeonato duas vezes no mesmo ano é algo que os pode marcar”.
A frase revelou um entendimento perfeito do ponto de vista do adepto, mas também da bizarra situação em que o próprio Lage se encontrava. Ganhando, todos os louros lhe seriam atribuídos e Rui Vitória, não obstante a sua contribuição para o título, seria arrumado numa gaveta juntamente com uma baça medalhinha de campeão.
No entanto, se Lage perdesse o campeonato depois de uma recuperação digna de um argumento cinematográfico, poucos estariam dispostos a atirar-lhe a tábua dos sete pontos de atraso com que pegou na equipa para justificar o fracasso. Seria o maior, e para muitos benfiquistas o único, responsável por perder dois campeonatos na mesma época e o veredicto não admitiria recurso: culpado por ter devolvido a esperança a seis milhões de crentes.
Ao ganhar o campeonato, não só lhes proporcionou o prazer redobrado de uma conquista que, nos primeiros dias de Janeiro, parecia impossível, como atirou para as hostes contrárias aquela espécie de alegria secundária e mortificante suscitada pelos triunfos nas outras modalidades quando a equipa de futebol falha ignobilmente.
E nada como a peregrinação primaveril ao Marquês para preparar o espírito do adepto para os meses de abstinência futebolística e então, sim, apreciar na plenitude, sem vestígios de azia, o pelotão colorido do Tour, as proezas na relva de Wimbledon, as maravilhas do polo-aquático e os remates acrobáticos e bronzeados dos artistas que, em pleno verão, trabalham onde os outros se divertem."
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