"Entre o Passado e o Futuro é o nome de um livro de Hannah Arendt. Para além do adejar da asa especulativa da autora, temas há que nela encontrei e onde me ancorei, uma vez mais – como este: “O grande impacto da noção de história sobre a consciência da Idade Moderna deu-se relativamente tarde, não antes do último terço do século XVIII, tendo encontrado com relativa celeridade o seu apogeu, na filosofia de Hegel. O conceito central da filosofia hegeliana é a história” (Relógio D’Água Editores, Lisboa, 2006, p. 82). Mas uma história em sintonia com o conhecido aforismo do mesmo Hegel: “O que é racional é real e o que é real é racional”. A própria negatividade dialéctica, que propicia o movimento, na História, articula os diversos momentos, que o constituem, no vasto campo da racionalidade. Em Marx, ao invés, o concreto constitui-se sobre uma base material. Para ele, a “luta de classes” é o motor da História. Mas, argumentam os principais historiadores da Educação Física e do Desporto: “Não sabeis que a Educação Física (que verdadeiramente se confundia com a ginástica) e o Desporto viveram os seus primeiros anos de vida, sob o império do racionalismo cartesiano, do positivismo comteano e do empirismo inglês? Depois da morte de Hegel (1831) o racionalismo foi substituído, paulatinamente, pelo positivismo e pelo empirismo (como vimos atrás) e o estatuto de cientificidade desta área do conhecimento fugiu, convictamente, à tirania de muitos mitos e à férula de uma retrógrada metafísica. E foi no carácter determinante da base material da existência social e nas leis da fisiologia e nas teorias de Darwin (1809-1882) que, preferentemente, o ser humano entrou de estudar-se. Uma trovoada de aplausos cobria a frase de Nietzsche, que ficou célebre: “Darwin é o maior benfeitor da humanidade contemporânea”. E porquê? Porque foi ele que difundiu a ideia, segundo a qual a diferença entre o animal e o ser humano é uma simples questão de grau.
Em Comte (1798-1857), por sua vez, dois aspectos são primaciais: por um lado, uma certa concepção e valorização da matemática, das ciências empíricas e biológicas e, por outro, um sociocentrismo, que descobre na sociedade o sujeito último do pensamento, da acção e do saber. A sociedade toma o lugar de Deus. Só que um puro servilismo ao capitalismo (e a um certo capitalismo de Estado a que chamaram “comunismo”) deixou o mundo contemporâneo verdadeiramente intoxicado de exploração, de manipulação, de alienação. Tem razão o meu querido Amigo D. José Tolentino Mendonça, quando escreve: “A esfera do sujeito, mesmo aquela privada, é cada vez mais absorvida pelo imperativo de produzir e consumir. E só por esse”. E que, por isso: “cresce uma atmosfera tóxica, onde a tentação da violência civil e o horizonte de um colapso ecológico global parecem cada vez mais próximos e coincidentes” (Expresso, 2019/3/30). Outro querido Amigo, o jornalista Vítor Serpa, no aparente espectáculo feérico do futebol, precisamente naquele onde tremula, no mastro de honra, a bandeira portuguesa, descobre também uma atmosfera tóxica, que não se erradica facilmente, porque são superstruturas da mesma infraestrutura económica, corporizada por fantoches que não passam de “bonecos articulados por fios (…). Hoje, podemos encontrar os fantoches um pouco por todo o lado e a questão mais intrigante é a de que nem todos são imediatamente reconhecidos à vista desarmada (…). Há, no entanto, uma inquietação legítima: os fantoches começam a ser muitos e têm uma particular sedução pelas câmaras televisivas, pelos microfones da rádio, pelos títulos gordos de jornais e, muito especialmente, pelo uso das redes sociais”. E, entretanto, “algum povinho desaprendeu de saber que o fantoche é apenas e só um fantoche” e começou a pensar pelos neurónios, que não existem, das cabeças dos fantoches. Resultado final: cada vez mais o futebol molda as pessoas à fatalidade do que Marcuse designava como “princípio da performance”, para sublinhar que é pela medida, pelo rendimento, pelo recorde, que a sociedade neoliberal se encontra estratificada. As pessoas classificam-se com números, porque se reduz o seu valor tão-só à sua utilidade produtiva.
Gaba-se Portugal de ter aprendido rapidamente a Democracia. Parece que não. Eu sei que (e cito agora o Marx e o Engels da Ideologia Alemã) “Os pensamentos da classe dominante são, em todas as épocas, os pensamentos dominantes, isto é, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção espiritual dispõe, por esse facto, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual, de tal maneira que, simultaneamente, os pensamentos daqueles que carecem dos meios para a produção espiritual lhe estão, em média, submetidos. Os pensamentos dominantes não são mais do que as relações materiais dominantes apreendidas como pensamento; são portanto a expressão das relações que precisamente tornam uma classe em classe dominante; são portanto os pensamentos da sua dominação”. Em poucas palavras: o fundamento último para a dominação intelectual e espiritual é a propriedade dos meios de produção intelectual e espiritual. Normalmente, na análise desta problemática, não se juntam os factos e os valores. E, no entanto, sem esta junção, os factos e os acontecimentos surgem irremediavelmente mal interpretados e abstractos e sem significado e sentido . Com o fim da 2ª Guerra Mundial, disseram-nos que o nazismo e o fascismo tinham sido rotundamente derrotados e que os regimes democráticos haviam triunfado, por fim. Só que não há democracia, sem democratas. A virtude não se obtém, por decreto. E a cultura de corrupção, o crime organizado, que se apoderaram (principalmente do futebol profissional, se é verdade o que se noticia) não deverão tratar-se unicamente como casos de polícia, mas como casos de política, incluindo aqui a política educativa. São tempos de crise os que se vivem, no futebol português? São tempos, portanto, de ruptura e de utopia (ou de profetismo, de que tanto carece o mundo hodierno, encurralado no materialismo capitalista dominante).
Miguel Poiares Maduro, antigo presidente do Comité de Governação da FIFA, não se arreceou de declarar, publicamente, para responder à questão: “Qual deveria ser o primeiro passo, para uma mudança na FIFA?”. Disse ele: “O mais fácil é começar pelo presidente da FIFA, introduzindo novos participantes, no colégio eleitoral. Se se der direito de voto a representantes de jogadores, treinadores, árbitros e adeptos, o efeito imediato será desestabilizar a actual estrutura de poder. Isso, por si só, alteraria completamente a dinâmica. Não podemos esperar que aqueles que precisam de ser alvo de uma mudança façam eles próprios essa mudança”. E mudança, porquê? Porque, no meu entender, não são pessoas humanas quem se encontra reduzido a números, a coisas, a mercadoria, ou seja, não são pessoas humanas, livres e libertadoras, quem promove e defende um “desporto”(?), como já o tive o ensejo de escrever tantas vezes: que adormece as pessoas à recusa da sociedade injusta estabelecida. E onde já se escutam, por aí, vozes de “pessoas respeitáveis” conclamando contra a hipertrofia dos direitos sociais, que acarretam incomportáveis custos ao erário público. Os estratos mais pobres da população são portanto os culpados, assim o dizem extensos pareceres, das tremendas dificuldades económico-financeiras dos Estados. Não será de admirar que se anuncie, mais tarde ou mais cedo, o fim do social, no Estado-Providência. E o cristão “amai-vos uns aos outros, como eu vos amei” deixe de ser a principal ideia reguladora da “razão comunicativa”. Por isso, não se pense que foi em defesa dos grandes ideais desportivos que se realizaram os jogos da “cruz gamada” de 1936, ou os jogos de Moscovo de 1980, ou os jogos de Pequim de 2008. O humanismo dos políticos e financeiros, que os promoveram e permitiram, desfaz-se em vãs promessas e falsas certezas. Não esqueço o livro do sul-africano Albert Nolan, God in South Africa: ”Nós não somos chamados unicamente a amar Deus, ou amar o nosso semelhante. Nós somos principalmente chamados a transcendermo-nos” (p. 199). Foi isto o que eu quis dizer, sobre o mais, com a minha tese sobre a “motricidade humana”…"
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