"Antigamente, quando o Jornal do Incrível era uma inesgotável fonte de conhecimento e espanto, havia os fenómenos do Entroncamento, com as suas abóboras de dez arrobas, as couves galegas do tamanho de pequenos automóveis, os ovnis que, talvez confundidos pelas composições ferroviárias, por ali se avistavam, os bezerros de duas cabeças uma das quais falava num latim de fazer inveja a muitos padres. Agora, os fenómenos transferiram-se daquela localidade peculiar para sul, para uma terra conhecida até há poucos anos pelos seus ermos lunares, as suas paisagens metalúrgicas e por ser um dos últimos viveiros de comunistas da Europa Ocidental.
É, pois, no Seixal que hoje se verificam os fenómenos mais inusuais, onde presidentes de clubes desportivos veem luzes estranhas, desencantam treinadores de elite entre sobrados e campos de relva sintética, e onde equipas de treinadores científicos apuram uma nova e perigosa raça futebolística: o jogador formado no Benfica.
Há uns anos, na altura em que o Entroncamento liderava sem contestação o ranking do paranormal, juntar numa mesma frase “formação” e “Benfica” suscitava reacções que iam da perplexidade à gargalhada incontrolável, como se se falasse em “pastelaria hendecassílaba” (obrigado, Borges), “astrologia dodecafónica” ou “socialismo científico.” Os zelotas do benfiquismo contrapunham à irrisão nomes como Rui Costa ou Manuel Fernandes, que geralmente provocavam nos cépticos um encolher de ombros e um “pois, está bem” como quem ouve relatos de curas patrocinadas por uma vidente de Vilar de Perdizes ou dos efeitos de uns milagrosos comprimidos homeopáticos.
Hoje, com um plantel que se abastece com regularidade nas camadas jovens e com jogadores da formação a brilharem nos principais campeonatos europeus, o fenómeno parece menos fenomenal, não provoca o mesmo espanto de uma abóbora de dez arrobas, mas, em comparação com a história recente, não deixa de impressionar. Como se isto por si não bastasse, verificam-se outros acontecimentos de difícil explicação. Se a recuperação de Samaris para o onze habitual é, acima de tudo, uma acusação que recai sobre o ex-treinador Rui Vitória, o surgimento de Adel Taarabt assume foros de milagre (o jornal A Bola chama-lhe o “maior milagre de Lage”), uma ressurreição de contornos bíblicos.
O tratamento supersónico de Marega por um fisioterapeuta brasileiro numa clínica chinesa pode estar ao nível da descoberta da penicilina ou da cura para o cancro, mas a recuperação de Taarabt só encontra paralelo no episódio bíblico em que Jesus ordenou a Lázaro que se levantasse e andasse, coisa que o irmão de Marta fez com uma presteza surpreendente para quem já se encontrava amortalhado e em mediano estado de decomposição.
Há quase quatro anos, Adel Taarabt foi anunciado como reforço do Benfica, vindo do Queen’s Park Rangers. Era um daqueles jogadores que valia por dois, menos pela qualidade que todos lhe reconheciam do que pelo ordenado principesco e pelo excesso de peso. Vistos os primeiros treinos, era difícil perceber se tinha vindo para jogar na equipa principal de futebol ou se o seu destino era o tatâmi, onde estaria em condições de competir na categoria de -100 kg, ou as pistas onde poderia rivalizar com Tsanko Arnaudov no lançamento do peso. Sendo impossível disfarçar a volumetria gargantuesca do jogador, o departamento de comunicação do Benfica esforçou-se por divulgar o tratamento de choque, a que não ficaria mal o nome de código “Adelgaçar Taarabt”. Seria um emagrecimento individual do plantel, um “downsizing”, para usar uma expressão empresarial, de um homem só.
Não resultou. A certa altura, Rui Vitória terá posto presidente entre a espada e a parede (eu sei, eu também não acredito): “ou ele ou eu”, disse, reconhecendo que naquele balneário não havia espaço para os dois. Vieira, agastado com declarações do jogador – “o que os lixa é terem de pagar um ordenado como o meu” – fez uma das suas promessas solenes, sólidas como castelos de cartas: “não vestirá a camisola do Benfica de certeza.”
Por tudo isto, pode imaginar-se a surpresa dos adeptos quando foi anunciada a convocatória para o jogo contra o Tondela. No momento em que entrou em campo e se estreou com a camisola do Benfica que, segundo o presidente, jamais iria envergar, o público da Luz tributou-lhe um aplauso só reservado aos verdadeiros craques. Sabe-se que o Terceiro Anel tem os seus “patinhos feios” de estimação, jogadores assobiados do primeiro ao último toque, mas o coração dos adeptos é tão grande que nele também cabem os “gansos gordos” ou, para ser exacto, ex-gordos.
Mas se os adeptos foram surpreendidos, o que dizer do diligente funcionário que, numa bela segunda-feira, entrou no centro estágios e encontrou, entre bolas furadas, chuteiras velhas, redes ressequidas e as figuras de cartão de Jorge Jesus em tamanho real, Adel Taarabt? Imagino-o a aproximar-se a medo daquele corpo inerte, a tomar-lhe o pulso e, como nos filmes em que uma equipa de resgate se depara com um sobrevivente nos escombros, a gritar: “Está vivo!”
Dizem os jornais que Bruno Lage conversou muito com o jogador e que essas conversas terão estado na base da transformação de Taarabt de peso-morto em Lázaro renascido para o futebol. Se assim foi, nada é impossível. Para quê gastar dinheiro com todo um departamento médico quando Bruno Lage pode tratar rupturas musculares com uma simples imposição de mãos ou olhar fixamente para um joelho maltratado e convencê-lo, por força das palavras, a regenerar-se sem recurso a técnicas invasivas? A luz que Vieira viu, a descoberta de Lage, a ascensão dos jogadores da formação, os sete pontos recuperados ao Porto e, agora, a ressurreição de Taarabt podem fazer do Seixal, a breve trecho, um dos melhores destinos de turismo esotérico do mundo.
O Entroncamento já passou à história, Fátima que se cuide."
pela conversa deste animal, matava-se o Adel.
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