sábado, 16 de fevereiro de 2019

Sabe quem é? Com a PIDE aos tiros - Santana

"Com Chipenda veio de Angola, jogando no barco com bolas de trapos; Campeão europeu, a incrível odisseia

1. Lá, na Catumbela, tinha criados em casa (porque vivia bem a família) e foi um desses seus criados que lhe pôs a habilidade à descoberta: «Sempre que se podia, desafiava-me para dar pulo até à sua sanzala para lá jogarmos. Não tardou a dizê-lo: 'Mínino ser grande um dia'! O pior é que o meu pai não me queria nessas aventuras dos futebóis, queria que fosse grande mecânico».

2. Ainda andou, como aprendiz numa oficina - tendo cada vez um sonho atiçado: ser como o Caximbinha, a estrela do futebol da terra. Arranjou emprego na fábrica de açúcar de Cassequel - a sair de lá, tinha destino incontornável: passar pelo campo do Catumbela para ver o Caximbinha (e não só) em treino. Perguntaram-lhe se não queria ir para os juniores - e a sua resposta foi: «Não sei se o meu pai deixa». Perguntaram e ele deixou...

3. Aos 16 anos já jogava na primeira equipa do Catumbela - e, num ápice, lhe apareceu Jordão Marques com o desafio irresistível: ir para o Benfica. De barco foi a viagem para Lisboa. Com ele vinha outro angolano: Daniel Chipenda - e ouvindo dizer que Otto Glória era muito exigente, treinavam, todos os dias, nos corredores do navio, com bola que fizerem de trapos e papéis.

4. Ao Benfica chegou por meados de 1954, tão mal jogou num dos primeiros jogos pelos juniores que lhe aplicaram multa de 150 escudos (que era metade do ordenado) por «fraco rendimento». Perdoaram-na ao perceber-se a razão: tinha problema de rins que o levou a longa paragem - e no inverno sofria de reumatismo, inchavam-lhe os pés e os tornozelos, sentia dores insuportáveis. Tudo isso foi resolvendo - apesar de pouco jogar com Otto Glória...

5. Por meados de 1958, Otto disse-lhe que melhor seria ir para outro lado, respondeu-lhe que se o Benfica o dispensasse, voltaria para a Catalunha - aparecendo-lhe o Tirsense a dar-lhe 20 contos, a sua resposta foi não. No Benfica, ficou e, nessa época (essa em que o Benfica perdeu o campeonato para o FC Porto e Calabote entrou na história como se sabe...) na Taça que o Benfica ganhou ao FC Porto (com golo de Cavém aos 15 segundos) estrela foi ele: com os seus dribles, os seus sprints, a maneira subtil com que dominou adversários...

6. Nessa final da Taça, Béla Gutmann fora impedido de ir para o banco do FC Porto por já se saber que assinara pelo Benfica - e do Jamor saiu encantado com ele. Quando chegou à Luz, transformou-o numa das suas armas nucleares - e, claro, foi titular na vitória sobre o Barcelona na final da Taça dos Campeões Europeus de 1960/1961.

7. Também foi a Amesterdão, mas na final com o Real Madrid não jogou - perdeu o lugar para Eusébio. Chipenda já fora dispensado à Académica - e com Coimbra a arder no frenesim da greve académica contou-o: «Ao chegar de Amesterdão, o Quim foi ter comigo. Fizemos festa na República dos Milionários, no regresso ao quarto, disseram-me que tinha havido telefonema para nós. Pensei que era complicação. Meti-me imediatamente no carro de Quim para Lisboa. Na Figueira, a PIDE mandou para o Fiat. O Quim, que nunca levava nada a sério,era tremendo brincalhão, sempre a fazer partidas a toda a gente, gritou-lhes: 'Vocês sabem quem eu sou, sou bicampeão europeu, portanto identifiquem-se os senhores!' Ficámos, várias horas a torrar ao sol dentro do carro, com a PIDE ali - sem saber o que nos iria acontecer...»

8. Com eles parados na estrada, uma outra brigada da PIDE largou para o Lar do Jogador do Benfica. Entraram de rompante no quarto do Quim, tudo vasculharam, não encontraram nada do que esperavam - fosse subversivo. Disparam vários tiros para o colchão, explicaram que poderia estar lá o que buscavam. Como não estava, o Quim foi solto, mas o Chipenda não: «Só após manifestação de estudantes exigindo a minha libertação, a PIDE cedeu. Não tinha prova de nada contra mim. Quando saí da cadeia, pedi que me mandassem para a tropa em Angola, mas eles nessa não caíram...»

9. Não, Daniel Chipenda não ficou muito tempo por Coimbra - fugiu para Marrocos numa traineira, de lá passou para Angola, tornou-se um dos principais guerrilheiros do MPLA. E o Quim, continuando no Benfica até 1967/1968 - tapado pelo Eusébio. (E não foi por Quim que, ainda assim, fez história no futebol em Portugal - mas como o Molengão da Catumbela, sim...)"

António Simões, in A Bola

1 comentário:

  1. O Santana parece o Charlie Chaplin! Sò lhe falta o chapéu e a bengala! lol

    ResponderEliminar

A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!