sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Para um desporto novo...

"No meu pensar, os adeptos dos clubes, os apaixonados do futebol olham para o discurso, simultaneamente científico e filosófico, como um discurso que desconhece a realidade, como um discurso perfeitamente dispensável, na análise de uma competição desportiva, nomeadamente de um jogo de futebol. Estou certo que assim o pensam também os tecnocratas de obediência vária; os logorreicos que falam, falam, falam e… não dizem nada; os próprios treinadores que mais tendem a salientar os efeitos de superfície do que a sondar o fenómeno desportivo na sua profundidade humana, já que não há jogos, há pessoas que jogam. É verdade: por entre a torrencialidade balofa de palavras, acerca dos jogos das principais equipas; por entre as fraudes fiscais em que parece submergir-se o futebol mundial – esconde-se o braço secular de alguns políticos e os interesses económico-financeiros e doutros poderes estabelecidos (como a facturação dos direitos televisivos) afinal o que mais parece contar para as federações internacionais das mais conhecidas modalidades desportivas. Faltam outros valores, outros conceitos, que estimulem as pessoas a uma outra prática desportiva que recuse o específico e os objectivos (um exemplo, entre muitos) daquele Novo Plano de Superliga Europeia, que (se for verdade o que a Imprensa refere) limita a inclusão de clubes apenas a cinco países: Inglaterra, Espanha, Itália, França e Alemanha. Os clubes fundadores, segundo uma hierarquia criada não sei por quem, são o Real Madrid, o Barcelona, o Manchester United, o Manchester City, o Chelsea, o Arsenal, o Liverpool, o Paris Saint-Germain, a Juventus, o AC Milan e o Bayern de Munique. Há depois, como convidados, o Atlético de Madrid, o Olympique de Marselha, o Inter de Milão, o Roma e o Borussia de Dortmund.
“Ainda de acordo com o documento analisado pelo Expresso, o actual plano para criar essa Superliga Europeia passa por constituir uma empresa em Espanha, formada pelos clubes fundadores, que serão assim os seus donos. Não há qualquer referência à UEFA, a organização que representa todas as federações nacionais europeias e que organiza a Liga Europa e a Liga dos Campeões. Na futura empresa da Superliga, o Real Madrid tem a maior posição com 18,77% do capital social, logo seguido pelo Barcelona com 17,61%, pelo Manchester United com 12,58% e o Bayern com 8.29%” (Expresso, 2018/11/3). E, porque economicamente os nossos “grandes clubes” se encontram fragilizados; porque todos parecem imóveis, sem movimento, diante de um “beco” e procuram aflitos uma “saída” – a nascitura Superliga Europeia não é para eles. Relembro, aqui, o Dr. Medina Carreira, para quem “a economia portuguesa é o primeiro, o mais grave e o mais difícil de todos os nossos problemas actuais”. E, no mercado globalizado de hoje, sem economia sólida, os clubes vivem mais de guerras, de conflitos, de violência, de um caldo de cultura de simulacro e de simulação, de muitos meteoritos fabricados pelos media - do que de futebol, futebol autêntico. Resta-nos, a nós, estudiosos e aprendizes do desporto, uma intervenção cultural de plenitude e novidade, ou seja, resta-nos uma séria reflexão, que nos convide a uma prática, que se transforme em contestação do dado, do habitual, do costumeiro; que nos ensine, pela motricidade humana, quero eu dizer: pelo desporto, pela dança, pela ergonomia, pela reabilitação, a exprimir o mistério de um ser que transcende e se transcende. Por outras palavras: que, para inovar, tem de saber inovar-se. Para tanto, não basta um saber científico, quantitativo, neutro e objectivante. Fui, durante 28 anos (de 1964 a 1992) dirigente do C.F.”Os Belenenses”; lecionei (e muito aprendi) no INEF, no ISEF, na FMH e na FEF/UNICAMP (Brasil) – e cheguei à conclusão que, para compreender o desporto, é preciso compreender-se antes as pessoas que o praticam (que não são unicamente os jogadores, como se sabe).
Por isso, no nosso tempo, se bem penso, um desporto novo deve apresentar as características seguintes:
1. Primazia do elemento antropológico sobre modelos e estruturas onde o economicismo neoliberal e o fisiologismo cartesiano e positivista imperam. Segundo Peter F. Drucker, no livro Sociedade Pós-Capitalista, que eu cito com alguma frequência, na sua tradução portuguesa:; “De facto, o conhecimento é hoje o único recurso com significado. Os tradicionais factores de produção (…) não desapareceram, mas tornaram-se secundários. Podem obter-se, e obtêm-se facilmente, desde que exista conhecimento. E conhecimento, com este novo significado, quer dizer conhecimento como utilidade pública, como um meio para obter resultados sociais e económicos. Estes desenvolvimentos (…) são as respostas a uma mudança irreversível: o conhecimento está a ser aplicado ao conhecimento.. Esta é a terceira, e talvez a última fase da sua transformação. Fornecer conhecimento para descobrir como o conhecimento existente pode ser aplicado de modo mais adequado para produzir resultados é o que significa a gestão” (p. 55). No entanto, para mim, não me parece conveniente criticar um paradigma, sem um outro paradigma. Por isso, para o estudo do desporto, eu proponho uma nova ciência social e humana, a Ciência da Motricidade Humana, onde cabem, evidentemente, as bases biológicas da motricidade humana. Um ponto ainda a salientar: tudo o que é histórico é, inevitavelmente, transitório. A força motora do progresso não reside em saberes que não sabem desconstruir-se. No entanto, na História, algo permanece, para além de qualquer desconstrução – o ser humano! Com um destino a cumprir: a criação de um mundo mais fraterno e justo e solidário e amplamente livre. Quero eu dizer: um mundo, com aqueles valores, assumidos e vividos, sem os quais impossível se torna viver humanamente.
2. Primazia do elemento utópico sobre o factual e o tradicional: o elemento determinante do desporto, em Portugal, não pode ser o passado, que o taxamos, até 5 de Outubro de 1910 e durante o Estado Novo, particularmente reaccionário, pobre e analfabeto. Cada sociedade determina um certo número de atributos que configuram o que os cidadãos devem ser física, intelectual, moral e politicamente. O corpo, em Portugal, foi politicamente produzido e de acordo com os interesses da classe dominante. Foi considerado matéria tão-só e instrumento da Razão. O dualismo antropológico reflectia o dualismo senhor-servo. Hoje, na “sociedade do espectáculo”, mais do que uma prática físico-motora, as actividades corporais limitam-se a fazer de cada pessoa um espectador em potência de um espectáculo mundialmente teledifundido. Esta pandemia desportiva está de tal modo presente, na vida de cada um de nós, que já muitos a exigem como necessidade primeira, ao lado do movimento, do beber, comer e dormir – pandemia com a sua linguagem própria de classificações, de recordes, de medidas, de competições e duma iconomania de incomparável carga afectiva, com novos deuses e novas guerras, riscadas de feridas por cicatrizar. O desporto é assim apresentado (jamais tematizado e problematizado e produzindo pensamento) como um culto do rendimento, da “performance” física (fazedora de bestas esplêndidas) e completamente neutral, em relação a ideologias ou políticas. No entanto é neste desporto, que adormece as pessoas à recusa da sociedade injusta, que também se descobrem grandes negociatas, corrupção de toda a ordem e alienação de impossível neutralidade. Não esqueço quando, após o Mundial de Futebol de 1998, Zinedine Zidane foi eleito “o francês preferido por todos os franceses”, chegando a gritar muito rosto amarrotado pelo sofrimento:; “Zidane a presidente!”. Martin Rees, membro da Academia dos Lordes e um cientista de informação exaustiva e de excepcional destreza de raciocínio, já afirmou: “Não existe um Plano B, ou melhor, um Planeta B. Temos de viver neste planeta e salvar este planeta”.
Ora, este planeta só pode salvar-se, com uma Cultura diferente, para mim com as características fundamentais do franciscanismo (e que, julgo, o Papa Francisco ter abraçado): o fim de todos os dualismos, incluindo aqui também o dualismo antropológico cartesiano e a dicotomia contemplação-acção; colaboração fraterna, com os pobres, os marginalizados e a natureza (neste passo, ocorre-me o Deus sive Natura, de Espinosa); uma cultura científica e crítica, mas com a consciência que “a razão é clamorosamente insuficiente para interpretar a vida” (José Tolentino Mendonça); uma cultura visando um humanismo integral, ou o homem integral que transcende e se transcende numa íntima articulação com o desejo, o inconformismo, a justiça, a liberdade e, por último, a fé (“Tudo que sobe converge”, disse-o Teilhard de Chardin). Não foi por falta de ciência que aconteceu Auschwitz. Aliás, a ciência, sem outros valores, já foi cúmplice da mais torpe barbárie.
3. Primazia do elemento crítico sobre o tradicional e dogmático. Quero eu dizer: um desporto novo tem futuro se integrar, na sua definição e na sua prática, o trabalho de reconstrução da própria ideia de desporto, como revolução cultural. Para Eduardo Lourenço, a cultura somos nós próprios, “a cultura é a consciência que nós temos, cada um de nós tem, do mundo que o rodeia, é a maneira como (digamos) guardamos dele sinais que podem ser transmitidos de seguida a outras gerações. E cultura é nós mesmos como sujeitos, como expressão da vida consciente de si próprio, que é o Homem (in AA.VV., Portugal, o Futuro é possível?, 2016, p.17). Daqui se infere que uma cultura meramente livresca, elitista, majestática torna-se de flagrante inoportunidade, dado que a importância do conhecimento não reside, unicamente, em teorizar a realidade mas em transformá-la, com honestidade e competência e tendo em conta o “bem comum”.
4. Primazia do social sobre o individual, pois que a marginalização social de largas porções da população, acrescida de defeitos estruturais, que transcendem os indivíduos, conduz, quase sempre, a uma nítida marginalização, principalmente no âmbito da iniciação desportiva. Fazem-me o favor de ser meus Amigos dois hermeneutas de excepcional elucidação e refontalização da cultura portuguesa: José Eduardo Franco e Miguel Real. De um deles, o Miguel Real, em livro que é uma síntese magnífica (talvez incomparável) da Cultura Portuguesa, Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa (Planeta, Lisboa, 2017) encontrei um texto de flagrante oportunidade, referindo-se ao livro de Guilherme d’Oliveira Martins, Portugal. Identidade e Diferença (2007), onde colhi o seguinte: “Segundo Guilherme d’Oliveira Martins, Portugal, reafirmando a sua complexa identidade cultural passada, mas recusando simultaneamente “o triunfalismo e o miserabilismo” (p. 20), tem hoje, nos princípios do século XXI, integrado na Europa, a grande oportunidade de superação dos seus traumas históricos, normalizando-se, racionalizando as estruturas sociais e estatais, unindo “pensamento e acção” (p. 19), integrando ambos num projecto completo e multidimensional, sumamente caracterizado pela abertura ao outro” (p. 177). E, acrescento eu: porque abertura ao outro, privilegiando as ciências sociais e humanas sobre as chamadas “ciências exactas”; e, no desporto, não dando único lugar de relevo ao campeão, ao atleta mediático, à unidimensionalidade em que descambam, com maior ou menor efervescência, os media, esquecendo, demasiadas vezes, o lazer desportivo e o desporto-educação e os princípios da ética desportiva. Uma pessoa que luta pela excelência física, intelectual e moral, ou seja, que a mediocridade não satisfaz, é sempre digna de louvor e de aplauso. É evidente que ressaltam falsos absolutos do hodierno desporto de elites e que os media amplificam, designadamente o mais despudorado individualismo, o mais vazio vedetismo. Ora, não há modalidade desportiva que não lembre o seguinte: o desporto é uma “escola de vida”, na medida em que ensina, sem cessar, que preciso dos outros (principalmente dos colegas, mas também dos adversários) para atingir os objectivos que me propus alcançar. O desporto, uma escola de vida, porque uma escola de solidariedade. Não esquecer ainda que o todo pode ser mais do que a soma das partes…
Boaventura de Sousa Santos e António Sousa Ribeiro, em sintonia com Hans Robert Jauss e Reinnart Koselleck (cfr. , Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, Outubro de 2002) defendem a “antropologização do saber”. E escreve António Sousa Ribeiro: “O problema, naturalmente, é como levar a cabo esse desiderato na era da informação, em que, aparentemente, a dimensão antropológica está condenada a diluir-se por inteiro na rede global” (p. 203). São muitos os valores que o desporto oferece a quem o faz e o compreende: o espírito lúdico, a competição fraterna, a disciplina, a coragem, a humildade, a cooperação, a jovialidade, a promoção da igualdade e da justiça. E outros valores mais poderia lembrar. A laicização da ética e a secularização do sagrado, no entanto, roubaram aos valores a essência teológica e, com o desprezo da teologia, nasceu a era do “pós-dever”, da “pós-moral”, onde mais se procura uma felicidade centrada nos sentidos, no consumo, no espectáculo, do que nos mandamentos de Jesus que reconhecem em Deus o sentido último do Ser Humano, da Vida, da Sociedade e da História. A ética republicana e kantiana, professando o culto das virtudes laicas, ao dispensar o elemento religioso e ao apresentar um evidente teor racionalista, perdeu o imperativo ilimitado dos deveres e o carácter sagrado dos valores. Daí, as palavras de Jesus Cristo: “O Reino de Deus não vem de tal forma que a gente possa contar com ele. Nem poderá dizer-se: ele está aqui ou ali, porque afinal o Reino de Deus está dentro de vós”. Com isto, Ele não diz que o Reino de Deus é puramente espiritual, mas que se fundamenta nos nossos mais profundos anseios. Por isso pode proclamar, ao sol de uma grande alegria: “Eis que faço novas todas as coisas”. O Homem é o único ser da natureza que não nasce unicamente programado, para ser natureza. Ele é cultura sobre o mais e portanto mais do que instinto e matéria e natureza, sem negar o instinto, a matéria e a natureza. E, como cultura, ele é espírito, como constitutivo inalienável da natureza e da existência humanas.
Mas o mal, como o bem, surgem também humanos e tão misteriosos um como o outro. No Homem, há Deus e há Diabo. E daí a dificuldade tremenda de a ética, totalmente Razão, encontrar forças e fundamento na luta contra os tempos de astúcia, suborno e calculismo em que vivemos. Relembro a voz de D. Helder Câmara, Bispo do Recife, donde emergia uma rouquidão própria da velhice (e que encontro também na minha velhice) mas, nele, uma rouquidão que parecia feita de melancolia e ternura: “Quando dou de comer a um pobre chamam-me santo. Mas quando me pergunto por que os pobres não têm comida chamam-me comunista”. É com Homens, como D. Hélder Câmara, como o Papa Francisco, como Nelson Mandela, como Martin Luther King, que pode vislumbrar-se que o Homem é mais do que estrita humanidade e portanto é religioso, antes de ser o crente de uma determinada religião, ou de uma qualquer metafísica que se aproxime do sentimento religioso. Muitos dos jogadores e dos atletas, imediatamente antes das competições em que participam, assim o dão a entender. Na época da “retirada da religião”(Marcel Gauchet) o desporto protagoniza, carregadas de desejos e promessas, práticas religiosas, ou narrativas metafísicas configurando um qualquer hiperurâneo platónico. Seja como for, o jogo é um ato espontâneo e voluntário e, como se estuda, elemento fundamental do desporto. Ora, no meu modesto entender, é mesmo a condição lúdica que faz do desporto uma prática humanista. Uma competição, sem ludismo, expurga, sem dificuldade, qualquer ideia de desporto. Embora não esqueça o aviso de Jacques Derrida, no seu Du droit à la philosophie: “il n’y a pas de hors-philosophie” (p. 515). O que há de novo e valioso, tanto no desporto, como no espectáculo desportivo, não são os problemas tácticos, mas aprender a dar mais do que a receber. Como o José María Cagigal dizia aos amigos: “O egoísta jamais compreenderá o desporto”."

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