segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

A invisibilidade externa da nossa Liga

"Basta ir a Badajoz, Tuy ou Ayamonte para ter um encontro imediato com a irrelevância da Liga do País que é campeão da Europa

quem não goste que se diga que a Liga portuguesa é absolutamente irrelevante no contexto internacional. Lamento muito que quem assim entende não tenha razão. Quem me dera que houvesse algum interesse externo quanto ao que por cá se passa a que a Liga gerasse o interesse e a admiração que, por exemplo, quatro Ligas dos Campeões, duas Ligas Europa, uma Taça das Taças, duas Taças intercontinentais e mais de vinte finais europeias dos seus participantes deveriam justificar.
Infelizmente, a realidade diz-nos que os jornais vendidos em Elvas, em Valença e em Vila Real de Santo António ainda falam da Liga portuguesa. Mas os que os vendem em Badajoz, Tuy e Ayamonte, nem por isso.
Ontem decidi fazer uma ronda alargada pela imprensa europeia, à espera de encontrar ecos da jornada lusitana, com vitórias de Benfica e SC Braga. Confesso que o fiz sem grandes expectativas. E o panorama real deu razão àquilo que era a minha convicção. Nos diários desportivos espanhóis, consultados a Marca, o As e o Mundo Deportivo, nem uma linha!  O Sport trazia, num espaço mínimo, resultados e classificação. Em Itália, na Gazzeta e no Corriere dello Sport... nada. Em Inglaterra, vistos o Times, o Telegraph e o Mail, o mesmo que em Itália. E em França, o L'Équipe colocava uma brevíssima com os resultados e uma foto de Jonas, a uma coluna.
A pergunta é, de que estávamos à espera? A imagem que passa lá fora da nossa Liga é de uma competição que os principais protagonistas acusam de ser corrupta e que é notícia, quanto muito, pelas queixas quanto à verdade desportiva, especialmente na arbitragem. Quaisquer potenciais investidores, neste contexto, fogem como o diabo da cruz desta prova, não querendo ficar associados a uma realidade em que quem devia defendê-la, dela diz o que Maomé nunca disse do toucinho.
Tudo isto tem consequências dramáticas para a indústria do futebol, em Portugal. E é normal que o presidente da FPF, a entidade mais lúcida nesta nave de loucos, vá procurar chamar à razão os presidentes dos clubes. Tenho muitas reservas, porém, quanto ao sucesso dessa missão, de tal forma a deriva autofágica está inculcada no dirigismo do nosso futebol. E repito um alerta que já deixei nas páginas de A Bola: assim, estão a criar condições para a venda a privados dos principais clubes.

Ás
Jonas / Dost / Marega
Sabe-se sempre quando não estão lá. Benfica, Sporting e FC Porto dependem muito da mais valia proveniente destes matadores e convivem mal com as suas ausências. A ver vamos se o mercado de inverno vai trazer boas novas a Vitória, Kaizer e Conceição, a quem daria jeito ter alternativas à altura destes grandes goleadores.

Ás
Pedro Caixinha
O treinador português, conhecido no México por El Forcado, em honra dos anos que passou nos Amadores de Montemor, classificou o Cruz Azul para a final do campeonato mexicano. Se há uma tampa para cada tacho (este ditado o PAN autoriza...), a de Caixinha está no México, onde é idolatrado.

Duque
Fontelas Gomes
A arbitragem portuguesa, a quem foram dadas, pela FPF, condições de excepção, está a passar ao lado de uma oportunidade histórica de afirmação e de retoma no contexto europeu. O VAR está a ser o espelho da incompetência de muitos árbitros e a lógica corporativista reinante impede que o futebol deixe de ser prejudicado.

Portugal, de 'VAR' a pior
O vídeo-árbitro é uma grande conquista do futebol e o facto de tanto a UEFA quanto a Premier League irem aderir a esta nova forma auxiliar a arbitragem mostra qual é o caminho da modernidade e do futuro. Portugal, com a visão e o poder financeiro da FPF a serem decisivos, foi pioneiro nesta demanda e por isso deve estar de parabéns. Porém, aquilo que se está a verificar, entre nós, semana após semana, é que quem está na linha da frente do VAR não se mostra à altura das circunstâncias, não por qualquer razão menos própria, mas pura e simplesmente por incompetência (creio). Há que chamar os bois pelos nomes (espero que o PAN não me processe por este aforismo...) e não ter medo de dizer que os árbitros e os VAR não têm estado à altura das circunstâncias. E que o corporativismo do sector está a minar uma ideia que devia ter um aproveitamento muito melhor. O presidente do CA da FPF deve uma explicação pública aos adeptos do futebol em Portugal, porque o que tem acontecido não é aceitável, muito menos explicável, à luz das imagens que todos vemos.

A lei dos milionários imperou no Bernabéu
Foi um golo de bandeira do portista emprestado Juan Quintero a fazer pender o prato da balança para o River Plate na final madrilena da Libertadores. Que o futebol argentino tenha aprendido algo com a humilhação de ter de jogar no estrangeiro.
PS - A luta do Boca Juniors deve prosseguir no TAS.

Francamente, merecíamos (muito) melhor...
«A Lusa, uma empresa cem por cento pública...»
Graça Fonseca, Ministra da Cultura
Não terá sido essa seguramente, a intenção de António Costa, mas a realidade mostra-nos que Graça Fonseca, Ministra da Cultura, é um trágico erro de casting na tutela da comunicação social. Arrogante quando disse que o melhor de estar no México era não ler jornais portugueses e ignorante quando afirmou que a Lusa era cem por cento pública, Graça Fonseca é um embaraço para todos."

José Manuel Delgado, in A Bola

“No Benfica, aos 18 anos, senti que estava a entrar no deslumbramento estúpido. Ia aos bailes, deitava-me tarde, comprei carro e bati logo”

"António Simões nasceu em Corroios, tem um irmão gémeo que desertou, perdeu o pai aos 13 anos e logo a seguir iniciou a sua carreira no futebol, num percurso do qual se destaca o Benfica, Eusébio e os EUA, além dos títulos. Porque esta não é uma entrevista sobre futebol mas sobre a vida, que foi passada em grande parte a jogar futebol, o mítico jogador do Benfica relata como viveu o golpe mais duro de todos: a morte de um filho acabado de nascer depois de já ter três filhas. E como o falecimento do grande amigo Eusébio lhe mudou a vida. Simões também fala de política, e de como esta afectou a sua saída do Benfica, das duas vezes que foi chamado pela PIDE, e por que razão foi candidato pelo CDS, embora se mantenha independente e sem se filiar

Nasceu em Corroios há praticamente 75 anos. Apresente-nos a sua família.
O meu pai foi emigrante nos EUA durante 14 anos. Tanto que os três primeiros filhos têm quatro anos de diferença, porque ele vinha cá de quatro em quatro anos. Foi um homem de grande força física e mental, trabalhou nas profissões mais difíceis. Casou e foi-se embora para os EUA ganhar a vida. Era estivador no porto de Nova Iorque, em 1930. E depois foi parar à Califórnia onde trabalhou nos caminhos de ferro, a carvão. Na altura era proibido as mulheres irem, quem muda isso é o grande estadista John Kennedy, que eu muito admiro. A minha mãe ficou cá, na aldeia do Colmeal a tomar conta de umas terras e dos filhos.

Tem quantos irmãos?
Eu sou gémeo e nós somos os mais novos de seis. Quatro rapazes e duas raparigas. Rapaz, rapariga, rapaz, rapariga e depois os dois malandros pequenitos, os gémeos. Os dois mais velhos infelizmente já faleceram. Se fosse vivo o mais velho teria 91 ou 92 anos.

Quando o seu pai regressa, para onde vão viver e o que vem ele fazer profissionalmente?
Ele regressa e estabelece-se como comerciante. Tinha uma casa de pasto, que era também mercearia, depósito de pão, fazia vinho, tinha uma adega. Torna-se um grande comerciante, em Corroios e constrói a casa onde eu nasci e que ainda existe. Depois vai para a Cruz de Pau e faz a mesma coisa. Constrói dois prédios no coração da Cruz de Pau, tudo isso existe e ainda hoje recebo algumas rendas. Ele é o homem que cria o Clube Recreativo da Cruz de Pau, que patrocinou durante largos anos as festas populares do verão. Lembro-me de ser pequenito e ver a chegada do carrossel oito, que era uma novidade grande porque os carrosséis até àquela altura eram só em círculo. O primeiro coreto também foi construído por ele. Tudo aquilo é Manuel Simões, que se torna uma referência na comunidade. Com uma particularidade, que os meus irmãos mais velhos me contaram.

Qual?
No tempo da guerra a minha mãe cozinhava na casa de pasto onde vinham os camionistas comer e a determinada altura começa a perceber que não está a entrar o mesmo dinheiro em casa. Questiona o meu pai: "Ó Manuel, há qualquer coisa que não está bem. Não está a chegar aqui dinheiro". O meu pai respondia de forma fugida: "Não te preocupes". Como é que descobrimos o que estava a acontecer? Quando ele faleceu fizemos o trespasse do negócio e quando se começa a mexer nas mobílias vamos dar com dois rolos de papel atrás de um frigorífico, eram os fiados. Eram contos e contos de reis que o senhor meu pai nunca pediu a ninguém, porque as pessoas tinham dificuldades naquela altura em pagar a conta. Bem tinha razão a minha mãe.

O António sempre torceu pelo Benfica, mesmo em pequenino?
Os meus irmãos mais velhos, Américo e Eugénio, eram ambos do Benfica. O Eugénio jogou muito bem futebol, no Amora, era um esquerdino fantástico. Curiosamente o meu pai tinha simpatia pelo Sporting. E a minha irmã mais nova também. Quando era pequenino, tinha uns oito, nove anos, o Barreirense estava na 1ª divisão e o Benfica quando ia lá jogar tinha sempre de passar pela Cruz de Pau e eu ia a correr para ver passar o autocarro do Benfica. Aquilo para mim era um delírio. Lembro-me de ver o Costa Pereira à frente com o sr. João, o motorista. E o mais engraçado é que andei naquele autocarro com eles todos.
Passava o tempo a jogar à bola da rua?
Todos os dias. O meu pai nunca me proibiu de jogar futebol na rua, estava era proibido de jogar com os sapatos. Éramos seis, era uma despesa enorme e estragar sapatos a jogar à bola, nem pensar. Embora tenha tido uma infância abundante, não havia nada de estrago. E foi uma infância abundante também no afeto, como éramos os mais novos tivemos o afecto não só dois pais como dos irmãos. O primeiro carro de bebé com dois lugares que aparece naquela altura era o destes dois malandros [risos].

O seu irmão gémeo é idêntico?
Completamente diferentes, sacos diferentes. Vive no Brasil há 40 anos. É um irmão muito interessante, fez carreira no ramo automóvel na área do marketing, chegou ao topo, mas está reformado. Ele foi-se embora para fugir da tropa. Foi desertor. Desde muito jovem que me dizia: "Eu não vou para o Ultramar. Recuso-me". Um dia foi embora.

Não se despediu?
Despediu-se da mãe. A mãe percebeu. Mas depois quis regressar e foi apanhado em Vilar Formoso, ficou preso. Fui eu daqui com o meu irmão mais velho e com um jogador do Benfica, salvá-lo. Tirei-o de lá para fora. Lembro-me que paguei cinco contos [25€], não sei a quem. "Simões do Benfica"; já era uma marca muito grande. Depois foi-se embora. Quando veio o 25 de Abril ficou legal, "legalizou-se" [risos].

Como surge o futebol mais a sério na sua vida?
O meu pai teve a visão de que a 4ª classe já não chegava para nós e pensou: "Estes são os meus últimos filhos e da maneira como estou a ver o mundo, estes vão precisar de ter um curso" e manda-nos para escola comercial e industrial de Almada, hoje Emídio Navarro. Ora, isto era uma despesa enorme para ele, só em transportes… Então pensou que o melhor seria estabelecer-se em Almada porque assim já podíamos ir a pé para a escola. Entretanto, para infelicidade de todos nós o meu pai morre de repente.

Como?
Falaram em angina de peito, mas julgo que seria hoje o equivalente a um AVC. Faleceu de repente com 55 ou 56 anos. Foi um choque para todos. Eu tinha 12, 13 anos. E é nessa altura que começo a jogar no Almada, porque queria ser jogador. Eu jogava muito na rua, joguei uma vez por uma equipa de ciganos num torneio popular. Começaram todos a falar de mim, foram ter com o meu irmão mais velho para lhe dizer que eu era bom, diabólico no campo. Porque eu jogava contra os adultos e driblava os homens. Isto começou a ser falado, os meios eram mais pequenos do que hoje. O scouting da altura eram os sócios dos clubes que telefonaram a dizer: "Atenção que há um miúdo assim, assim". Comecei a jogar através de um senhor que foi campeão de Portugal pelo Sporting, chamado professor Rodrigues Dias, é ele que é o meu treinador no Almada. Tudo começa aí.

E aparecem logo outros clubes interessados.
Sim. Começa o Belenenses, o Sporting...Tanto que estou oito meses no Sporting antes de ir para o Benfica.

Não ficou no Sporting porquê?
Porque o Sporting nunca quis pagar 50 contos [250€] ao Almada. Só que 50 contos em 1958/59 era uma fortuna. Mas se eu deixasse de jogar um ano ficava livre. Então fui para o Sporting mas ficava sem jogar. Já ia a caminho de uns oito meses sem jogar e não aguentei. O Benfica entretanto ouviu falar de mim, que estava no Sporting mas não podia jogar porque estava preso ao Almada. Um bocadinho como o Eusébio também.

O Benfica chega à frente com o dinheiro.
Sim. Vai a Almada pergunta quanto querem por mim, falam nos 50 contos e eles dizem "damos 40 [200€]". Foi assim. Custei 40 contos aos Benfica.

Chega ao Benfica com 15 anos mas a dois meses de fazer 16, por isso começa logo a jogar nos juniores.
Porque o treinador dos miúdos, o argentino Valdivieso, diz ao sr. Caiado, assistente do sr. Béla Guttmann, que não queria que eu jogasse nos principiantes, preferia esperar aquelas semanas para eu jogar nos juniores. Dois meses depois de ter feito 16 anos faço o meu primeiro jogo no Restelo, ganhámos 3-0 e eu fiz um golo.
Nessa altura já estava a viver no lar do Benfica?
Não, ainda estava em Almada. Mas entretanto o Benfica percebe que era uma canseira. Deixaram-me jogar aquela época e depois enfiaram-me no lar. É quando conheço pessoalmente o Costa Pereira, José Águas, Mário Coluna... .

E lá em casa, como reagia a sua mãe a isso tudo?
Sempre muito apreensiva. Tanto que quando vou para o Sporting, sem poder jogar, ela chama os irmãos mais velhos e diz-lhes que queria que eu aprendesse um ofício, além de ser jogador. "Joga, mas tem de ter um ofício". Primeiro fui mecânico de máquinas de escrever, já não me lembro onde, depois trabalhei com material de guerra, no Poço do Bispo. Dois empregos arranjados pelo Sporting. 

Ainda estudava?
Estudava à noite. Ainda tirei o 4º ano à noite. Mas jogar, trabalhar e estudar à noite, era muita coisa para mim. Tenho imensa pena de ter mandado os estudos fora porque eu era um aluno excepcional a matemática e física. Nunca consegui 20 valores, por causa da bola. Apanhei sempre 19 valores e qualquer coisa. A professora queria bater-me por causa disso [risos].

Explique lá isso melhor.
Eu fazia o teste em 20 minutos, quando o tempo era de 50. Mas eu queria fazer rápido para poder ir jogar à bola sozinho, contra a parede. A professora via-me pela janela e ficava danada porque ia espreitar o meu teste e via que eu com a pressa lá me enganava numa coisinha ou outra. Ficava doida. O director da escola, quando eu vim para o Benfica, chamou-me.

O que lhe disse?
Mandou chamar a minha mãe e disse-lhe "Este seu filho tem um dom. Não me interessa da bola, se é dom ou não é, agora para a matemática e para a física ele tem um dom. Portanto, ele que não saia daqui". A minha mãe só me dizia "Tu estás a ouvir?" [risos]

Quando chega ao lar, ainda júnior, havia outros jogadores da sua idade a viver lá?
Não, juniores não havia, havia era muitos jogadores solteiros. Eu encontrava o Costa Pereira e os outros só no fim de semana porque eles faziam lá o estágio. O meu primeiro companheiro de quarto era um rapaz chamado Mário João, que ainda é vivo, foi bicampeão europeu, foi ele que me recebeu. 

Entretanto chega o Eusébio. Houve logo empatia entre os dois?
Logo. Ele era mais velho do que eu 23 meses e acabámos por ter uma atitude protectora um com o outro, porque os outros são mais velhos. Há logo tendência para ficarmos os dois. Eu sempre fui muito comunicativo. A minha mãe dizia uma coisa muito bonita quando eu entrava em casa: "Lá vem a minha alegria". Porque falava, comunicava, eu não deixava ninguém em silêncio.

Passou a andar sempre com o Eusébio?
É verdade. Embora eu não conhecesse ainda bem Lisboa, sabia ir ao S. Jorge, ao Tivoli, aos cinemas, e como o Eusébio não sabia, eu sou um bocadinho o guia dele. Íamos ao cinema juntos, ajudava-o com a escrita. Naquela altura havia muita gente que escrevia cartas a pedir fotografias autografadas e lembro-me que eu tratava das minhas e das do Eusébio, porque ele tinha algumas dificuldades e eu era mais despachado.

É verdade que teve a alcunha de Rato Mickey?
[Risos] Sim, começam a surgir as figuras do Walt Disney e como eu era pequenino, muito rápido, irrequieto e um malandro no jogo e a figura do Rato Mickey era um bocado isso…

Quando chega ao Benfica é logo campeão de juniores.
Eu faço o meu primeiro jogo em Janeiro de 1960, em Abril de desse ano estou a ser internacional pela Selecção de juniores. Em 1961 sou campeão europeu de juniores. Faço parte da geração que conquistou o primeiro título internacional para Portugal.
Lembra-se quando foi a primeira vez para fora do país?
Lembro, foi um delírio. Tinha 16 anos, meteram-me dentro de um avião para ir para a Áustria. Tanto que ainda hoje adoro a Áustria porque foi o primeiro país que visitei. Lembro-me também dos dirigentes da federação terem-nos levado a assistir a uma ópera.

Gostou?
Foi um grande frete. Não estava preparado. Miúdos com 16 anos a assistir a uma ópera em Viena de Áustria, que era um sonho para uma fatia de gente culta... Hoje gosto imenso de música clássica e de jazz, vou aos EUA de propósito para assistir, mas naquela altura não.

Como se safou com a língua? Já sabia inglês?
Ninguém falava inglês. Havia um ou outro dirigente que falava umas coisas e nós agarrámo-nos a eles quando queríamos comprar alguma coisa.

A propósito de comprar. Quando começa a ganhar dinheiro com o futebol?
No meu primeiro contrato com o Benfica, ganhava um conto de reis por mês [5€]. Mas a primeira vez que ganho dinheiro ainda é no Sporting, quando estive lá aqueles oito meses. Pagavam 800 escudos [4€] por mês.

O que fez ao primeiro dinheiro que ganhou?
Dei à minha mãe, imediatamente. Todo o dinheiro que ganhei enquanto miúdo entreguei-o sempre à minha mãe. Quando fui para o Benfica, o Benfica teve a gentileza de dar cinco contos [25€] pela minha assinatura. Pequei nesse dinheiro e dei à minha mãe. Ela é que me dava dinheiro para eu gastar, não era eu que ficava com ele. Eu via isso nos meus irmãos, todos fizeram a mesma coisa. Era a mãe que geria.

Lembra-se de alguma coisa que quisesse muito comprar?
Havia uns ténis alpercatas que davam muito jeito, mesmo até para jogar e eu queria ter uns. Na altura ainda não havia os ténis de marca como hoje... E a minha mãe, desconfiada, "Mas tu queres isso para quê?". Mas ela comprou-me as alpercatas, fez-me a vontade.

Da primeira namorada, recorda-se?
Tive uma paixoneta quando fui para Almada. Essa senhora, Maria José, ainda hoje é viva e ainda hoje temos vontade de falar de vez em quando. Era uma jovem muito bonita. Tem havido desde há uns anos um encontro dos alunos desse tempo de escola, ela vem sempre e eu também vou. O namoro acaba porque eu depois vim para Lisboa, as solicitações eram muito maiores e o namoro desapareceu. 

Estava a contar que foi campeão europeu de juniores...
E tenho mais um ano para jogar como júnior, só que tivemos uma final, em Lisboa, Benfica-Belenenses, em que ganhámos 3-1, eu fiz os três golos e o sr. Béla Guttmann mandou-me treinar com a primeira equipa na terça-feira seguinte. É aí que percebo que vou treinar com o José Águas, o Costa Pereira, Mário Coluna, etc. Já os conhecia do lar, mas a distância era grande, tanto que eles sentavam-se a jogar às cartas, Costa Pereira em parceria com o Águas e o Coluna com o Cávem, eu pedia para assistir e eles respondiam: "Podes sentar-te aqui, mas não falas".

Começa a jogar como sénior, mas ainda com a idade de júnior.
Exacto. Tanto que há o torneio da UEFA, na Roménia, mas eu não fui porque a UEFA não aceitava juniores que fossem já profissionais. Não fui a esse torneio mas curiosamente um ano depois estou a ser campeão europeu de seniores, na final com o Real Madrid, em Amesterdão. Ou seja, num curto espaço de tempo eu sou campeão europeu de juniores e campeão europeu de clubes.

Aos 18 anos, sente que tem o mundo a seus pés?
Sinto. E vou confessar, eu senti que estava a entrar na patetice. Estava a entrar no deslumbramento estúpido.

Como assim?
Eu ia para os bailes lá em Almada, deitava-me tarde, tinha a mania que dominava as miúdas todas, entretanto comprei carro, um Simca mil, e bati logo com o carro. Todas essas coisas começaram a apoderar-se de mim. Comecei armado em parvo.

Quem é que o faz baixar à terra?
Em primeiro lugar a minha mãe. O Costa Pereira, José Águas, Mário Coluna e companhia. Eles não me deixaram. Mais os dirigentes dessa altura que tinham aquilo que se chama o grande poder da palavra. Era impossível perder-me, tinha uma boa base em casa e no trabalho. Já tinha algum dinheiro, era famoso, comecei a ver a importância que isso tudo tinha, tornei-me num ídolo muito rápido. E isso é perigosíssimo. Não me deixaram, e acho que fizeram muito bem, estou grato a essa gente porque se fui pateta, foi durante pouquíssimo tempo.
Nessa altura andava sempre com o Eusébio. Ele também lhe dava na cabeça?
Muita gente não sabe, falam naquela humildade toda dele, mas eu quando falo do Eusébio eu falo de um homem que tendo dificuldade em exprimir-se tinha uma inteligência emocional incrível. As pessoas não o conheceram muito bem. Diziam: “Gostamos do Eusébio porque ele foi muito humilde”. Não era só isso. Ele não era estúpido, nem burro, ele não era culto, mas isso é uma coisa diferente. Ele era muito inteligente, tinha um inteligência emocional enorme.

A primeira grande conquista é a Taça dos Campeões Europeus pelo Benfica em 1961/62...
Antes disso. Os primeiros jogos que fiz a sério na primeira equipa do Benfica foram em Setembro de 1961, quando fui para Montevideo, sozinho com o Eusébio, porque o Béla Guttmann chamou-nos. Tínhamos ganho aqui 1-0, mas nós não jogámos. Perdemos lá o segundo jogo, 5-0, e não jogámos. No terceiro jogo ele chama-nos. Fomos daqui os dois sozinhos. Esse é o meu primeiro jogo internacional. O meu primeiro jogo no campeonato nacional é um Benfica-Sporting. A minha primeira internacionalização é num Brasil-Portugal. Que pontaria, não podiam ter escolhido melhor. Isto tudo aos 18 anos. Tudo seguido. Por isso é que há momentos quando se é jovem que são perigosos e hoje mais ainda. Admiro alguns jogadores que se conseguem conservar, cujo comportamento é muito respeitável, porque as solicitações são tremendas. Eu lembro-me de ir na rua e virem miúdos ter comigo e eu jogar com eles. Fiz isso muita vez. Eu senti que era um ídolo. Hoje são estrelas, não são mais ídolos.

Porquê?
Esta grande diferença social, tremenda, em que vivemos e com que temos de conviver, temos de ser inteligentes para poder distinguir o que interessa e não interessa. Por exemplo, o meu primeiro grande ídolo chamava-se Albano e jogou no Sporting. Vi-o uma vez a jogar e fiquei fascinado. Eu queria imitá-lo. Os miúdos hoje não querem bem imitar o Cristiano Ronaldo ou outro grande jogador, querem ter aquilo que o Cristiano tem. É a esta inversão de princípios e de valores que estamos a assistir na nossa sociedade. É terrível.

Muitas vezes são os próprios pais que alimentam isso.
Sem dúvida. Temos pais completamente obcecados, que empurram os filhos para tornarem-se jogadores de futebol apenas com o intuito de ficarem muito bem na vida e não para os fazer ser alguma coisa na vida, através do futebol. Porque é tão legítimo sermos alguma coisa através de jogar futebol, como de outra coisa. Estamos a deformar, não estamos a formar. Estamos por um lado a formatar, porque temos jogadores iguais que nunca mais acaba, e a mesmo tempo estamos a deformar porque estamos a incutir nos miúdos aquilo que se vê na televisão.

É mais difícil ser jogador de futebol hoje?
Hoje é mais fácil ser jogador, mas é mais difícil ser estrela. As condições hoje para um miúdo evoluir e corresponder ao seu potencial são extraordinárias e ele pode aprender não só a jogar, mas também a competir, que é algo que a sociedade exige. Há muitos miúdos que sabem jogar, mas como não sabem competir ficam pelo caminho. Por outro lado, as solicitações que hoje existem de carácter mediático, material, de egocentrismo... É difícil um miúdo de 16, 17, 18 anos que ganhe muito dinheiro não resistir à estrela que já estão a fazer dele. É preciso ter uma base de família e no clube, porque muitos deles perdem-se. Nem todos vão ser estrelas e não se preparam para outra vida.

Esse é outro problema. Mas também acontecia no seu tempo.
É verdade que sim. Mas os recursos materiais eram muito inferiores ao que são hoje. Hoje um jogador de 1ª Liga em Portugal, se for bom com o dinheiro, se perceber que o dinheiro não é de quem o ganha, é de quem o poupa, é capaz de arranjar a sua vida. No meu tempo não. Quem era o jogador no meu tempo que ficava rico a jogar futebol? Em Portugal? Não. Em Espanha, Itália e Inglaterra, sim. Mas hoje a vida é muito mais agressiva no que diz respeito à ânsia de ter.

Afirmou que agora os jovens têm de aprender a competir desde muito pequenos. Quando era jovem não havia competição entre os jogadores?
Havia alguma coisa, mas não tinha a dimensão que tem hoje. Hoje ganhar parece ser a única coisa. E aí estamos a correr o risco de aqueles que porventura não consigam ganhar não são nada. Não estou a exagerar. Há muitos jovens com valor que não podem jogar num dos três grandes, mas podem fazer uma carreira muito interessante noutros clubes e obviamente que nesses outros clubes ganham menos jogos e menos dinheiro. Não podemos é deitar fora gente que tem valor e que pode ser útil até mesmo depois de deixar de jogar. Há 10 anos eu já dizia que era incrível como não se aproveitavam esses jovens jogadores, que não vão fazer carreira profissional e jogam nas divisões inferiores, e que podem tornar-se excelentes árbitros. Porque têm a experiência do jogo. E hoje é possível fazer carreira de árbitro. Quem teve a experiência de jogar com certeza que isso vai ajudar a interpretar a lei.
Teve vários treinadores no Benfica. Consegue dizer qual o marca mais e caracterizar, em poucas palavras, cada um deles?
Quem me marcou mais foi o Fernando Riera.

Porquê?
Vi que estava perante um homem extremamente culto e muito avançado no tempo. Ele pagou o preço de estar à frente do tempo. Todos nós pagámos um pouco o preço de estar para trás e esse é terrível, mas ter de pagar um preço por estar à frente é de uma grande injustiça. Assistimos a isso com Cruijff primeiro e Pep Guardiola depois, no Barcelona do tiki-taka. O sr. Riera chegou a Portugal e quis jogar tiki-taka. O problema é que veio depois de Béla Guttmann, que era passa e repassa, centro e golo. E a massa associativa, se tocássemos seis vezes na bola antes de entrar na área do adversário, já estava a assobiar. O Fernando Riera sabia que o futebol ia lá parar àquele modelo. Aconteceu muito tempo depois, mas ele quis fazer isso. O Benfica fez jogos brilhantes com ele a fazer isso, mesmo assim houve sempre uma certa intolerância.

E os outros treinadores?
Tentando definir todos os treinadores com quem trabalhei através de uma palavra posso dizer que Béla Guttmann era o astuto. Fernando Riera, o culto. Depois, o Lajos Czeizler era o reformado, ele veio aqui reformar-se, ficava na bancada a apanhar sol e a cantar o "Sole mio", enquanto o Caiado dava o treino. Chegávamos ao intervalo e discutíamos o jogo, que os outros estavam assim e assado e que tínhamos de ter cuidado e ele dizia "senhor, vida bela, 'nós ganhar' 3-0, no problema" [risos]. O Elek Schwartz era o divertido, para ele treinar diariamente era uma alegria, contagiante, fantástico, divertia-se com aquilo tudo. O Otto Glória era afeto. Era o que faltava se não viesse dos brasileiros, Scolari é outro, dos afectos, têm um jeitão para isso, são melhores do que nós. O sotaque também ajuda. O Jimmy Hagan era o rigor. Ele veio demonstrar ao jogador português profissional que a vida do futebolista profissional é muito mais dura do que nós estávamos habituados. O sr. Milorad Pavic, era o bon vivant. Um homem bonito, sempre muito bem vestido e bem cheiroso, em que primeiro é preciso desfrutar da vida, depois é que está o trabalho.

Algum deles deu-lhe uma dura, um puxão de orelhas?
Não digo puxar as orelhas, mas o Béla Guttmann foi uma peça fundamental no meu crescimento quando comecei, porque nunca mais esqueci o que eram as quartas-feiras de treino. Naquele dia havia treino de finalização e uma bola nova para cada avançado, sempre. E quando terminava e estávamos a fazer exercícios respiratórios ele dizia a todos nós: "Senhor, pôr dinheiro na banca. Senhor, fare amor una volta no mais (ou seja, ter relações sexuais apenas uma vez). Senhor, bebe una cerveja, una, no mais que una. Senhor, compra palácio para menino (comprar casa)". Todas as quartas-feiras ele repetia aquilo. Estou a falar isto depois de quase 60 anos e vou dizer-lhe, é marcante para um miúdo como eu estar a ouvir isto. Imagine o que é um miúdo com 16, 17 anos e estar a ouvir "fare amor a una volta", fazer amor apenas uma vez [risos]. Mas eu levava aquilo comigo.

Isso virou um mito, se os jogadores devem, podem ou não ter relações sexuais na véspera dos jogos. O que é que a sua experiência lhe diz?
A minha experiência diz que não devia fazer porque eu nunca fiz. Mas admito que possa ser um mito. Há quem defenda que ajude. Acredito que sim, com toda a sinceridade, mas eu estava agarrado à mensagem que me estavam a dar e em que eu acreditava.

O António Simões apanha duas gerações completamente diferentes no Benfica. A geração do Coluna, do Eusébio, e a outra do Nené, do Artur Jorge...
Uma é o prolongamento da outra. No meu caso, quando estou com o Nené, Toni, Artur Jorge e por aí fora, já não estão os outros todos. Eu comecei muito novo, por isso posso dizer que pertenci a três gerações. À do Costa Pereira e companhia, a minha e àquela última que lá ficou quando saí. Estive no Benfica 16 anos. O Ângelo com quem joguei tem 88 anos e se o Costa Pereira fosse vivo tinha 90 anos. Os Nenés, o Jordão, Humberto Coelho, vieram dos juniores do Benfica e apanham o meu auge em que já sou o portador daquilo que me deixou o José Águas e o Mário Coluna. Há um ligação muito forte que obedece a uma matriz comportamental que tem a ver com a cultura do clube, que recebi e que tive o privilégio de dar aos outros.

Acha que essa matriz ainda existe?
Existe de outra forma. O Benfica nunca terá outra matriz que não a matriz popular, do povo, mas tornando-se naquilo que é hoje, uma grande empresa. O grande desafio hoje para quem manda é combinar e nunca minimizar a importância popular, da paixão do clube, a sua massa associativa, com a empresa de sucesso. Não pode é, pensando que agora é uma empresa, que a matriz já não é importante. É. Cada vez mais.

A cumplicidade que tinha com o Eusébio fora de campo reflectia-se em campo, no jogo?
A cumplicidade dentro reflectia-se fora e cá fora reflectia-se lá dentro. O meu conhecimento do Eusébio como jogador e como homem foi de tal maneira que eu até sabia os momentos em que ele não queria a bola. Raramente ele não queria, mas eu sabia quando não era o momento para lhe dar a bola. Eu gritava com ele. "Está 0-0, os índios já estão a berrar, como é que é, achas que eu é que vou ganhar o jogo, ou és tu?". Isto ao intervalo. Mesmo durante o jogo gritava-lhe "Estás escondido. Mas o que é isto, quero passar a bola". Mas os génios são assim. Os génios também não estão prontos todos os dias. Neles está mais acentuado, porque são génios. E eu sabia isso, percebi sempre que ele era um génio. Bastava ele dar-me um sinal. Às vezes bastava ele dizer: "És um chatinho de merda” [risos]. Percebia-o muito bem. Tive momentos em que sabia que o tinha na mão. No bom sentido. E aquilo acabava quase sempre da mesma maneira.

Como?
Ganhávamos, ele fazia golos, e depois dos jogos, ainda na cabine, punha-me o braço por cima e dizia: "És um chatinho, mas está bem. Vamos jantar?". E íamos jantar.

Fez a tropa?
Fiz, muitos anos [risos]. Fui chamado aos 18 anos, embora a chamada fosse aos 20.

Explique-nos isso.
Havia a selecção militar. Eu e o Eusébio fomos jogar para a seleção militar. Como eu tinha menos dois anos deram-me licença registada e uma farda para ir jogar, mas não ia ao quartel porque eu ainda não estava na tropa. Fiz dezenas de jogos. Depois assentei praça com 20 anos e estive até aos 23 anos.

Onde?
Fiz cabo de milicianos nas Caldas da Rainha, depois fui para a administração militar no Lumiar e acabei no Ministério do Exército, no Terreiro do Paço. Era um furrielzinho. Fiz uma recruta terrível nas Caldas da Rainha, tive de mudar-me para lá. Não fiz alguns jogos por causa da tropa. Por isso é muito engraçado quando dizem que o Benfica era o clube do regime. Nos três meses que fiz de especialidade eles "matavam-me". Fazia marchas de Lisboa para Sintra e de Sintra para cá, mas pela serra. E depois estive mobilizado para ir para a Guiné.

Pagou a alguém para ir por si? Já vários colegas seus admitiram que o fizeram.
Uma fortuna. Em Fevereiro de 1966 sou mobilizado para a Guiné, estava na especialidade de Intendência. Éramos 21 e fomos os 21 chamados. Arranjei um rapaz chamado Ivo, que já tinha feito comissão no Ultramar. Mas a lei entretanto tinha sido alterada, dizia que eu não podia trocar com ele, uma vez que se tinha de trocar dentro do mesmo curso, do mesmo ano, blá, blá. Ele não era. Mas como eu tinha estado de licença registada dois anos antes, altura em que a lei ainda permitia trocar com outro qualquer, o coronel José Catela, que era dirigente do Benfica, agarrou-se a essa lei anterior, uma vez que entrei na tropa com ela em vigor, e acabei por conseguir trocar com esse tal Ivo.

Alguma vez voltou a encontrá-lo?
Encontrei-o anos mais tarde, em Moçambique, por lá andava, em África. Custou-me 150 contos [750€]. Era uma fortuna.

Quem pagou?
Antes que o Benfica tivesse alguma coisa, disse logo "Eu pago metade". Custou-me 75 contos [375€], e eu ganhava 250 contos [1250€] por ano. Ou seja, 30% foi o que eu dei para essa pessoa ir no meu lugar. Estou hoje convencido de que, se não tivesse dito que pagava metade, o Benfica pagava-me tudo. Isto em Fevereiro de 1966, ou seja, quatro meses depois estou no Campeonato do Mundo. Sei que esse tal Ivo comprou um andar na Av. de Roma nessa altura [risos].
Campeonato do Mundo esse que ficou para a história, ficámos em 3º lugar. Aposto que sei qual é a primeira coisa que lhe vem à memória quando se fala nesse mundial...
O golo que eu marquei ao Brasil [risos].

Foi de facto especial.
Foi. Nunca fiz muitos golos de cabeça na minha vida. Ser no Campeonato do Mundo, ser de cabeça e ser contra o Brasil, é preciso dizer mais alguma coisa ou ficamos por aqui? [risos] Há muita gente que vem ter comigo ainda hoje e fala disso. Gente até jovem, que vai ao YouTube ver. Como apareço na televisão eles acabam por conhecer-me. Sabe, é bom quando temos tanta gente nova a vir ter connosco e a dizer: "Ó sr. Simões, eu revejo-me no que o senhor disse". Fico muito contente.

Quando foi para a tropa já era casado?
Já. Eu conheci a Maria Julieta no metro. Olhei e vi no vidro o reflexo dela, não me virei, mas vi-a. Tudo começou aí. Depois conversámos, havia ainda aquela história de pedir namoro. Tinha os meus 17 anos e ela 15. Casei com 19 e ela 17. Era pai aos 20 anos. Tenho uma filha, a Ângela, que tem 54 anos [risos]. A Ana Teresa nasceu em 1966 e a Mónica Sofia em 1969.

Quando compra a sua primeira casa/apartamento?
Eu primeiro comprei alguma coisa para rendimento. Terrenos, etc. Fiz um pouco ao contrário. Quis investir para ter um pezinho de meia. Só comprei casa para habitar em 1969, em Linda-a-Velha.

É pai de três raparigas. Sei que chegou a ter um rapaz. Quer contar o que aconteceu?
É uma história dramática. Nasceu-me um filho, que seria o quarto, teria hoje 46 anos e a notícia espalhou-se rapidamente. As rádios, os jornais, tudo deu a notícia. Ele nasceu de sexta para sábado e eu vou para Tomar para jogar nesse domingo. No sábado de madrugada sou acordado com a notícia de que o miúdo faleceu, devido a uma complicação cardíaca. O que vou fazer? Jogo, não jogo? Lembro-me que o Eusébio e o José Torres estavam magoados e estávamos interessados em ganhar esse campeonato sem perder nenhum jogo. Fiquei com uma dúvida terrível. O Borges Coutinho liga para o hotel, diz-me que já esteve com a minha mulher, já tinha ido à clínica, que havia compreensão daquele lado, e que eu é que tinha de decidir se queria jogar ou não. Joguei.

Como correu?
No altifalante do estádio anunciaram a morte do meu filho, foi uma coisa horrível, o estádio cheio. Começa o jogo e logo no primeiro minuto o Nené vai pela direita, centra, o Nascimento que era o guarda redes do U. de Tomar dá um soco na bola para fora da área, eu apanho com o pé esquerdo e PUM! Foi um golo, uma coisa fantástica. Ganhámos o jogo com esse golo. Acho que fui miserável a jogar. E quando o jogo acabou fui no carro do Borges Coutinho para Lisboa, directo à clínica.

Foi o golpe mais duro da sua vida.
Foi. O falecimento do meu pai, que foi repentino, o falecimento da minha mãe e dos meus dois irmãos, eu era jovem, mas são pessoas que já tinham uma certa idade. Houve dois momentos terríveis, diabólicos. Este que tem a ver com o falecimento do meu filho...

Já tinha nome?
Já. Nuno Ricardo. Foi um um momento terrível que me obrigou a pensar noutras coisas. Afinal de contas o que é que vale mais? O que queremos ser? O que queremos ter?

É um homem de fé?
Sou, mas muito pouco religioso. Ainda hoje tenho dúvidas. Criam-se duvidas nessas alturas. A outra coisa que marcou a minha vida foi fora do âmbito da família, mas nem sei explicar o que me custou. Foi a morte do Eusébio. A morte do Eusébio fez com que eu quisesse alterar a minha vida.

Em que sentido?
Estava a trabalhar no Irão e não quis trabalhar mais. Vim embora. Percebi duas coisas. A primeira: quem é que está a seguir? Foi a primeira vez que pensei na morte. Nunca tinha pensado nela, até ao dia em que o Eusébio desapareceu. Aí eu pensei: "Eh pá, o que é isto? Este gajo foi-se-me embora? Então, quem é que está a seguir? Sou eu! Irão? Não". Cheguei lá e tratei de tudo para me vir embora. Na viagem daqui para lá, Lisboa-Istambul, Istambul-Teerão as lágrimas nunca me deixaram. Nunca. Nunca. Entrei no meu apartamento sozinho e disse: "O que é que eu estou aqui a fazer?". No outro dia reuni com o Carlos Queiroz e disse-lhe: "Não quero estar mais aqui, vou para casa, vou viver a minha vida, vou estar com os meus amigos, vou estar com a minha família porque eu já não tenho muito tempo".

O Carlos Queiroz compreendeu?
Perfeitamente. Digo-lhe, nem vale a pena falar das outras coisas. As outras coisas tiveram importância mas estas duas, estes dois acontecimentos na minha vida, foram decisivos na minha forma de olhar e alterar coisas a que eu nunca tinha dado a devida importância. Não me esqueço daquele telefonema às seis e meia da manhã, ser confrontado com a morte do Eusébio e sentar-me na cama e só pensar: "Este gajo morreu? Este gajo morreu? Mas o que é isto?". Eu não vou dizer que todos os dias penso no Eusébio, mas é rara a vez que não penso nele. Quando se fala de alguma coisa, ele vem-me à memória; às vezes vou sozinho a conduzir no carro e, pá [bate com a mão uma na outra], ele vem; às vezes estou a ver um jogo e tenho saudades de estar a discutir com ele, ele a ver coisas fantásticas no jogo. Eu já não o tenho para falar disso tudo. E às vezes vejo-me aflito porque penso, se eu for dizer isto ninguém me liga nenhuma ou vai entender, mas se ele estivesse aqui… 
Nunca se zangaram?
Ui, várias vezes. Ele era muito teimoso e à medida que os anos foram passando ainda ficou pior. Às vezes eram coisas simples, no carro, eu dizia vamos por aqui que é melhor, e ele atirava-se ao ar: "Não vamos nada por aí, tens que vir por aqui". Eu tinha que lhe fazer a vontade. Ele era assim. Uma vez estava no Irão, ele fez anos e um jornalista do jornal "A Bola" perguntou-me que mensagem é que eu lhe mandava e eu respondi: "Põe só uma coisa 'I love this guy' ". É isto.

Pelos vistos era recíproco porque ele chamou-o de "irmão branco".
É qualquer coisa. O filho da mãe guardou essa coisa para me dizer quase no final da sua vida. É logo a seguir ao 17 de dezembro em que lanço um livro sobre várias personalidades, e em que eu tenho uma conversa com ele sobre isso, essa eu não vou contar, e ele diz-me aquilo: "Tu és o meu irmão branco". Eh pá, meu Deus.

Foi uma surpresa?
Não, não sou surpreendido por me dizer uma coisa daquelas, mas eu não estava prevenido. Fui-me abaixo. Levei isso para casa, pensei e pensei, disse a amigos e numa outra situação, em que tenho oportunidade de comentar digo: "Se eu sou o teu irmão branco, tu és o irmão de todas as cores, do amor, do caminho, do compromisso, da cumplicidade, I love you man".

Onde estava quando recebeu a notícia e como viveu o 25 de Abril de 1974?
Estava em casa e dei comigo a ver televisão, a ver aquilo tudo. Mas no outro dia havia treino. Lembro de ter saído de casa de manhã e encontrar militares em Monsanto no caminho para o estádio. Até que um dia, mandaram-me parar e obrigaram-me a abrir o porta bagagens. Francamente não gostei nada de me terem feito uma coisa daquelas. Mas é um acontecimento histórico que faz todo o sentido, estava feliz com o que o que aconteceu.

Como era a sua relação com o regime e com a política?
Eu fui chamado duas vezes à António Maria Cardoso [sede da PIDE]. A primeira, porque tive uma relação platónica com uma senhora arquitecta que vivia na antiga Checoslováquia. Nunca aconteceu nada, ela lá e eu cá, mas a verdade é que ela enchia-me o correio com postais e cartas. Ela falava e escrevia italiano muito bem. Muitas vezes para responder-lhe até copiava um bocadinho daquilo que ela me escrevia. E andamos nisto. Um dia acabo o treino e tenho dois senhores à minha espera. Interrogaram-me por causa dessa troca de correspondência, acharam aquilo tudo muito estranho. Lá me expliquei. Ficou assim. A segunda, foi num jogo que se fez em Lourenço Marques, hoje Maputo, um Brasil-Portugal, se não me engano na inauguração do Estádio Salazar. Aquilo foi tudo menos uma equipa de Portugal. Cada um pelo seu lado, nada de controle, cada um fez a vida que quis, etc. E eu confesso que já estava noutra e fiz as declarações que achava que devia fazer. Disse: "Não é desta maneira que se representa Portugal nem o futebol português, tem que haver mais responsabilidade, mais organização". Responsabilizei um pouco a FPF, mas falando da selecção, das quinas, etc. Quando cheguei a Lisboa tinha duas pessoas à minha espera, no aeroporto, para eu explicar por que não fazia nenhum sentido representar Portugal assim. Ou seja, era como se eu estivesse contra Portugal. Lá tive que ir à António Maria Cardoso, desta vez acompanhado por um dirigente do Benfica, e mais uma vez o "Simões do Benfica" salvou-me de ter alguns problemas.
Sentia o peso do regime no seu dia a dia?
Não. Nós se servimos o regime foi de uma forma involuntária. Porque o regime aproveitou-se do sucesso do Benfica, convinha-lhe. Mas eu pergunto: e hoje não se faz? Fico com a sensação que até se faz mais. Mas atenção, eu não sou contra o fazer, eu não estou é de acordo quando se diz que no tempo da outra senhora é que assim ou assado. Não é assim. Não temos que ter complexo nenhum, temos de falar do que é bom, daquilo que somos capazes, das medalhas que conquistamos, do sucesso que conseguimos. Era o que faltava se não o fizéssemos, seria estúpido. Agora não tem que ser aproveitado pela esquerda, pela direita ou pelo centro, não temos de olhar como sendo o aproveitamento do regime, mas o aproveitamento do talento e da capacidade do nosso povo, independentemente de quem está no governo ou não.

Tentou criar um sindicato de jogadores.
É verdade. Eu sempre senti um estímulo enorme para valorizar o jogador de futebol como pessoa capaz e não apenas o jogador. Lutei sempre muito por isso, tanto que há uma entrevista dada por mim em 1967 em que o jornalista me pergunta quais são os direitos do jogadores de futebol e eu respondo: "É não ter direitos nenhuns". Tenho 23 anos de idade e eu sabia o que estava a fazer e a dizer.

Quando é que tenta formar o sindicato?
Desde 1967 até 1972 que ando nessa luta. Primeiro sozinho e depois com colegas.

Não consegue logo porquê?
Porque havia dois sindicatos em Portugal nessa altura, o dos vidreiros e dos metalúrgicos. Era uma coisa muito difícil. Jogadores de futebol terem um sindicato, mas porquê? Que direitos é que estes gajos têm? [risos] Nós fazíamos contratos por três anos e era a mesma coisa que fazer por 300. Os contratos acabavam mas os nosso direitos continuavam a não existir, tudo estava daquele lado. E é por causa do meu caso com o Benfica, em que estou para ir para o Boca Juniors e o Benfica não me deixa, que se inicia um processo de valorização profissional dos jogadores de futebol. Aparece pela primeira vez o Dr. Jorge Sampaio, que foi PR. É meu advogado durante muitos anos.

Como chega a Jorge Sampaio?
O Sporting percebe que me pode contratar e ele é sportinguista. É claro que não fui para o Sporting, nem teria condições para ir. Mas é uma decisão minha eu continuar no Benfica. Porquê? Porque o Jorge Sampaio olhando o meu caso percebe que é o momento de alguma coisa acontecer. O Boca Juniors estava interessado e o Benfica estava em atraso com salários. Começa-se a admitir que, não cumprindo o Benfica, eu tenho razão para rescindir. É claro que nada aconteceu. Mas é por causa disto tudo que nasce o direito de opção. Um clube estava interessado num jogador, oferecia mil contos [5000€] e o clube de origem para ficar com ele tinha de pagar 70%. É a primeira pequena grande conquista dos jogadores do futebol, o Jorge Sampaio acompanha-me e tudo se altera. O que dá alguma abertura para anos depois fazermos o sindicato. Depois ganhei mais força com a intelectualidade do Artur Jorge, com o Toni, o José Carlos e o Hilário, no Sporting. E o Eusébio sempre connosco, sempre.
"Ofereceram-me 10 mil dólares para eu não jogar e convencer o Eusébio e o Nené a não jogar também"
(...), António Simões fala da sua experiência nos EUA, da fase de treinador, primeiro de futsal e depois como adjunto, e revela por que nunca vingou como técnico principal no futebol português

Vai para os EUA ainda em 1975. Porquê?
Eu tinha feito contrato um ano antes com o Benfica, até 1977. Vem o 11 de março de 1975 e isso teve influência, porque eu fui candidato à Constituinte pelo CDS, do círculo de Setúbal. E há uma manifestação contra. Em 1976 sou eleito como independente. Mas nunca estive filiado num partido, nem nunca estarei.

Vamos por partes. Como surge a política na sua vida e essa candidatura pelo CDS?
A convite do Dr. Freitas do Amaral. Alguém que o conhecia, benfiquista, que resolve dar informação e desafiar o Freitas do Amaral a convidar-me para deputado. Já tem a ver com o facto de eu ser um bocadinho diferente, de ter algumas ideias. É o primeiro reconhecimento de gente fora do futebol para com o António Simões. Esta é a forma de eu interpretar. Vou a casa do Dr. Freitas do Amaral e está também o Amaro da Costa. É aí que tudo começa. Só que percebi bem tarde, e mal no início, que o 25 de Abril não tinha sido para todos.

O que quer dizer com isso?
Percebi que me tinha metido numa grande alhada. Mas também percebi que quando temos as nossas convicções devemos lutar por elas. Paguei um preço, eu sei, muito grande. Num Benfica-CUF, na Luz, tive grande parte do público contra mim. Porquê? Porque afinal de contas eu não era de esquerda. E na altura não ser de esquerda era quase um crime. É este entusiasmo exageradíssimo à portuguesa, do 8 ou 800. Antes vivíamos num regime ditatorial no qual sempre me manifestei contra, mas quando resolvi não correr para o lado esquerdo que era o que convinha, e muita gente foi oportunista nessa altura, o António Simões passou a ser fascista. Eu criei um sindicato, lutei pelos meus colegas, fui para a frente, e depois era fascista. Faltou maturidade ao país e a quem mandava, faltou algum equilíbrio mental, o que não surpreende porque ainda hoje somos assim. É cultural. Ainda nos falta aquilo a que eu chamo inteligência emocional. Por outro lado, desde muito jovem percebi, interiorizei e manifestei junto da minha família e dos meus amigos que no dia em que percebesse que faço um bom passe e há silêncio e faço um mau passe e há assobio, é o momento de me ir embora.

Como surge a oportunidade de ir para os EUA?
Esse jogo de que falei é logo a seguir ao 11 de Março. Anuncio que vou fazer o último jogo pelo Benfica. Vou ter com o Borges Coutinho e digo-lhe "Não vou jogar mais no Benfica". E ele "Você está doido? Fiz contrato consigo o ano passado, tem mais dois anos, tem uma festa no valor de 650 contos (3250€)...".

Festa de 650 contos!
As festas de homenagem que se faziam na altura quando a carreira acabava eram negociadas, nós davamos um valor. Eu tinha aquele valor garantido. Disse-lhe: "Vamos fazer uma coisa, eu não quero dinheiro dos dois anos de contrato, nem quero festa. Só quero que me deixe ir embora". "Mas para onde o senhor vai?"; "Não sei"; "Então não tem clube?"; "Não". Entretanto saiu no jornal que vou fazer o meu último jogo pelo Benfica a 11 de maio. Um grande amigo meu, António Frias, um açoriano que vivia nos EUA, louco pelo Benfica, lê a notícia e telefona-me. Pergunta-me se não quero ir para os EUA. Digo-lhe que não.

Conhecia esse António Frias de onde?
Ele vinha a Portugal ver o Benfica, de vez em quando dava uns prémios do bolso dele. Era um louco pelo Benfica. Ele telefona-me uns dias depois e diz-me que tem um grande contrato para mim e para o Eusébio. Eram 1500 dólares (1320€) por jogo em dinheiro para mim e 2000 dólares (1760€) para o Eusébio. Comecei a pensar (risos).

Vai para o Boston Minutemen. Leva a família consigo?
A família fica porque as miúdas estão a acabar a escola. Mais tarde à medida que fui ficando elas vão, acabam lá o high school e fazem o college. Comecei a ver o potencial também para elas. Fico lá aqueles primeiros três meses sozinho, entretanto vêm as férias grandes e faço uns meses no Estoril Praia, porque lá só se jogava seis, sete meses e eu não podia estar tanto tempo parado. O treinador no Estoril era o António Medeiros e joguei com o Fernando Santos nessa altura, fomos colegas de equipa.

Quando regressa aos EUA vai para o San Jose Earthquakes.
O Boston Minutemen está com dificuldades de dinheiro, não me paga e nos EUA se um clube não cumpre o jogador fica disponível para ser contratado. Surgem vários clubes interessados em mim, mas eu tinha estado em San Jose da Califórnia com o Benfica e tinha ido lá com o Boston. Queria ir viver para a Califórnia, fui e adorei.
Tirou vários cursos lá, certo?
Sim. Tirei o curso de speech, aprender a discursar. O manager que me contratou disse que o meu inglês era bom mas que tinha de saber como vender o business. Percebi logo a ideia. Comecei a ir a empresas falar do season ticket, do próprio jogo, etc., porque tinha atrás de mim um prestígio enorme e as pessoas tinham curiosidade em ouvir-me. Depois tirei outro pequeno curso para saber como comunicar com os media. Ainda tirei outro na área do management para aprender com trabalhava o marketing, o merchandising, etc. Tanto que há uma história engraçada.

Conte.
Em 1989 venho cá ver o jogo Marselha-Benfica em que há o tal golo com o braço do Vata. O Manuel António que era um jornalista d' "A Bola" fez-me uma entrevista. Eu perguntei-lhe se ele conhecia algum clube português com departamento comercial. Ele diz que não. "Então como é que se vendem as coisas? Porque é que não se põe o nome nas costas da camisola dos jogadores toda a época? Porque é que não se vendem bilhetes de temporada? Porque é que não há equipamentos alternativos?". Comecei com esta conversa toda e diz ele assim "Desculpa lá mas tenho de te dizer uma coisa: estás todo americanizado" (risos). Eu respondi: "Ai é, e tu estás totalmente atrasado" (risos). Hoje temos tudo mas veja o tempo que levou. Ou seja, eu já estava a cavalgar outra onda.

Íamos em San José...
Vou para San José, recebo o dinheiro que estava em atraso. Com quem vou jogar na equipa? Com o sr. Miro Pavlovich, que tinha jogado comigo na selecção da Europa. Fui para San José reviver aquilo que eu era aqui no Benfica. Sucesso e centenas e centenas de pessoas, portugueses e americanos, à minha espera depois do jogo. Foi um momento feliz.

Na altura o soccer, como eles chamam, não estava muito desenvolvido, também era fácil para si brilhar.
Claro que sim. Embora naquele tempo todos os grandes jogadores da Europa e do Brasil tenham ido para lá. Pelé, Bobby Moore, George Best, Cruyff, Beckenbauer, Eusébio, joguei com todos eles. Fui conviver com todos aqueles com quem já tinha convivido na Europa enquanto estive no Benfica.

É em 1976 que é eleito deputado, mas nessa altura já está a jogar nos EUA.
Eu jogava lá e cá. Fazia lá os tais sete meses e fazia cá a outra metade da época. Passei pelo Viseu e Benfica e União de Tomar também. Quando estava nos EUA vinha sempre cá para não perder o mandato.

O que achou do parlamento português?
Gostei muito. Posso nomear pessoas de quem gostei, Carlos Brito, do PCP, Amaro da Costa, Lucas Pires e Freitas do Amaral, o António Arnaut, do PS, e tive oportunidade de estar várias vezes com Sá Carneiro também. Convivi com eles. Estive na AR várias vezes, muito mais do que alguns dos que andam por aí agora.

Interveio em que área?
Sempre na área do emigrante. Consegui várias coisas para os emigrantes, não foi difícil devo dizer porque eles não tinham nada. Naquela altura se um emigrante trouxesse um frigorífico para cá tinha de pagar impostos de alfândega. Quer dizer nós andamos de roda dos emigrantes por causas das remessas, porque precisávamos do dinheiro de fora, e depois tinham de pagar, não lhes dávamos facilidades? Tudo isso foi conseguido na altura em que eu era deputado. É mérito de uma justiça que não existia, não é mérito de uma pessoa. Mas, voltando à questão, devo dizer que ficava fascinado com os debates, porque o tempo que levavam a levantar-se e a abotoar um botão do casaco era o tempo suficiente para pensarem na resposta que iam dar. Vi, assisti a isso. Foi para mim um momento muito especial. Fazer política era uma coisa nova e tive sorte de ter esses grandes professores, gente que sempre respeitei, não me interessa de que partido, gente inteligente e que esteve na política desinteressadamente, ao contrário do que hoje vemos. Aquela gente não foi para a política para fazer carreira, foram para a política para servir o país através do parlamento, e fizeram-no.

Foi convidado por Paulo Portas para integrar as listas do CDS, nas últimas legislativas. Como é que ele o convenceu?
Através do Telmo Correia, que está muito ligado ao Benfica. Perguntou-me se podia tomar o pequeno-almoço com o Paulo Portas, disse que sim. Mas confesso que fiquei ligeiramente desiludido, porque deixei que se servissem de mim. Não gosto que me façam isso.

Teve noção disso na altura?
Não, fiz de boa fé. Se pudesse voltar atrás não teria aceitado. O que vejo hoje é que essas pessoas só se interessam por alguma coisa quando sentem que têm interesse nela. A partir do momento em que sentem que não têm interesse nelas, desaparecem completamente, vão vender a manta para outro lado. Não gosto, tenho o direito de não gostar e vou sempre denunciar. Tanto faz que seja da esquerda, da direita, seja quem for.

Sente-se mais um homem de direita do que de esquerda ou já não faz essa distinção?
Quantos mais anos se percorrem na minha vida mais apreço tenho por gente que pertence ao Partido Comunista.

Porquê?
Estou saturado de tanta competência, tanta falta de honestidade. Não me dêem mais competência, dêem-me honestidade que já fico satisfeito.

Da competência ou da incompetência?
Não, não, é sempre na base da competência. Eu prefiro menos competência mas mais honestidade. É onde me encontro. E sobre esse aspecto, o Partido Comunista pode não ser tão competente, mas tem gente mais honesta. Mais coerente. Basta olhar para as Câmaras Municipais. Eu vejo o trabalho que é feito nas Câmaras comunistas e vejo o dos outros.

Foi por esse motivo que apoiou Bernardino Soares nas últimas autárquicas?
Exactamente. Já é um reflexo daquilo que penso sobre as políticas. 

A direita desiludido-o?
Desiludiu-me porque há uma grande incoerência e há uma direita excessivamente interesseira. Falam muito melhor, mas fazem muito menos.

Em 1977/78 joga pelo União de Tomar.
Novamente para não ficar inactivo durante um longo período de tempo, enquanto não voltava aos EUA. Uma coisa é ter 25 anos outra é ter quase 35, se estamos três meses sem jogar depois como é que apanhamos outra vez o andamento? E lá fomos, eu e o Eusébio.

Depois vai para Dallas.
É o primeiro grande desafio que se me põe. Estou a perceber que a minha carreira está a acabar. Há um português chamado Francisco Marcos, do Bombarral, que constrói uma liga nos EUA, uma espécie de II divisão profissional de homens e mulheres, e desafia-me para ir para Dallas para trabalhar com o sr. Al Miller, um grande treinador que me deu conhecimentos fantásticos não só de futebol, mas da vida. Termino a carreira com ele. Fui para lá para ser assistente dele.

Foi uma espécie de jogador/treinador?
Era para ser apenas assistente, mas passadas umas semanas ele começou a ver-me treinar, pediu-me para jogar e ainda fiz 19 jogos.

Foi muito difícil pendurar as botas de jogador?
Não. Se fosse aqui teria sido mais complicado. Foi mais difícil quando saí do Benfica do que lá. 

Quando vai para Detroit já é para treinar futsal.
Fui contratado para treinar uma equipa, a ganhar muito bom dinheiro e é aí que se dá o meu primeiro contacto com indoor soccer, que lá funciona como hóquei no gelo, com tabelas e com balizas são imputadas na parede. É um jogo de grande exigência física, em que jogam dois, três minutos e têm de sair, porque a bola nunca sai. Gostei muito.

Podia ser treinador sem curso?
Eu tirei o curso de treinador nos EUA. E vi-me aflito para passar, por causa da anatomia (risos). Tive que pôr um explicador, italiano, em casa a dar-me aulas só sobre anatomia. Aqueles nomes... (risos) Mas passei.

Em 1982 vai para Phoenix e fica lá até 1984 com a família.
Exacto, mas só foram duas filhas, a mais velha já trabalhava na TAP cá em Portugal e não foi.

Em que é que se sente americano?
Quando olho para trás, há 40 anos, recordo que, em primeiro lugar nunca senti a mais pequena discriminação. Percebi que havia racismo, que é outra coisa, isso percebi. Mas no que diz respeito ao emigrante, zero. E tive a minha primeira grande experiência de democracia. Vi coisas nos EUA de verdadeira democracia. Basta olhar ao que aconteceu ao Nixon naquela altura, há 40 anos. Se de facto existia democracia, a América era o grande exemplo. Segundo aspecto, era de facto o país das oportunidades, para todos. Eu assisti e vivi isso. Não conheço nenhum outro país tão rico nesse aspecto. Terceiro, percebi que havia a América evoluída, avançada, de vanguarda e uma outra América extremamente fora do contexto, atrasadíssima culturalmente falando. Isto para mim foi uma lição, deu-me um conhecimento que ainda hoje alicerça muito aquilo que é a minha opinião sobre muitas coisas.

Não lhe espanta então a eleição de Trump.
Não, de maneira nenhuma. Tem a ver com as várias Américas que conheci. E é o conhecimento das várias realidades desse país que me dá o mundo que infelizmente falta muito a Portugal. Para mim a América foi um passo difícil, porque quando saí do Benfica não tinha clube, não sabia o que ia ser a minha vida, mas tive a mesma visão que o meu pai teve há 100 anos quando disse: "Estes dois filhos vão estudar". Eu pensei: "Eu vou para a América para aprender". Foi isso que fiz, aprender. Não a jogar, fui aprender a vida.
Pelo meio ainda veio treinar o Sp. de Espinho.
Sim, em 1986, mas não correu bem, estive pouco tempo, não gostei.

Porquê?
Nós estávamos em pleno desastre daquilo que era a influência da arbitragem. A quantidade de coisas que aconteceram em Portugal nessa altura, felizmente eu não estive cá durante todo esse tempo, estive só esses seis, sete meses e chegou-me perfeitamente para perceber que já não era o futebol onde eu queria estar. Tive um jogador, que vou evitar dizer o nome, em Espinho, o jogador mais experiente que veio ter comigo. Nós estávamos com dificuldade em ter bons resultados e um dia esse jogador bateu-me à porta: "Mister, posso falar? Vou-lhe dizer uma coisa, nunca treinei tão bem na minha vida, nunca tive um treinador com tanta qualidade de treino como o mister, mas sabe uma coisa? Temos de saber quem é o árbitro no domingo. Se a gente não sabe, o mister nunca vai chegar a lado nenhum". Nunca mais me esqueci disso. Ele não resistiu a dizer-me aquilo porque percebeu que eu não estava dentro do assunto, era ignorante sobre essa matéria. Isto justifica o meu demérito de não ter conseguido ter sucesso no Espinho? Não, não apenas isso, foi também o estar completamente fora do ambiente, sobre esse aspecto a América não me ajudou.

Volta aos EUA, para Austin e fica lá até 1991/92.
De todos os lugares onde viveu de qual gostou mais? Califórnia. E menos Kansas City. Mas estive em sítios fantásticos com uma qualidade de vida ótima e lindíssimos, como Chicago, já lá voltei várias vezes e vou voltar. Adorei viver em Phoenix, Arizona, dois anos. Adorei viver na capital do Texas, Austin. É uma cidade linda, tem tudo o que não tem Dallas e Houston. Vivi um ano em Las Vegas e foi uma experiência fantástica. Tenho até um episódio engraçado.

Conte.
No ano em que o Carlos Lopes ganhou a maratona de Los Angeles, tinha acabado de chegar a Las Vegas, fui para o quarto do hotel Maryland, que era o casino/hotel do dono do clube. Sentei-me no banco aos pés da cama e ali fiquei a ver o Carlos Lopes a correr. Começo a sentir que o Carlos Lopes ia ganhar e fiquei doido, completamente doido, as lágrimas a cair. Eu queria festejar com alguém, queria partilhar: "Eu sou português, o Carlos Lopes ganhou a medalha de ouro". Venho na brasa pelo elevador, desço e está um italiano na recepção que já me tinha falado antes, começo logo aos gritos com ele a dizer que o Carlos Lopes ganhou, eufórico. Nisto começo a andar pelas bancas do poker e há um dealer de cartas que olha para mim: "Simões, estás cá? Não te vás embora, tenho de falar contigo". No intervalo dele veio ter comigo, fui jantar a casa dele nessa noite, com os irmãos, as irmãs, eram todos da Madeira e foi uma noite fantástica em que festejamos a vitória do Carlos Lopes. São momentos bonitos que o futebol proporciona.

Quando chega a Portugal, em 1992 o que vai fazer profissionalmente?
Quando chego não quero fazer muito. Quero olhar. Não estou convencido de que quero voltar ao futebol, mas aí aparece o Carlos Queiroz, através do Toni. Quer conhecer-me melhor. Era o seleccionador nacional na altura. E percebe que tenho uma outra visão e sabe que é por causa dos EUA. Começamos a falar do hóquei sobre o gelo, de um livro que eu li e ele diz-me que também já tinha lido. Pensei, este está deste lado. A partir daí criou-se uma relação fantástica. Ele queria por força levar-me para a federação. Não havia lugar, não havia espaço, então criou o futebol feminino e fez-me seleccionador nacional. É aí que o futebol feminino se reinicia. Mas com o intuito depois de vir a trabalhar com ele, que foi o que aconteceu.

É muito diferente liderar homens e mulheres.
Foi uma experiência extraordinária. Nos EUA já tinha vivido de perto essa realidade porque estavam muito mais avançados no futebol feminino e tinha amigos com filhas no futebol. Eu dizia já na altura que tinha de haver João Pintos, Figos e Rui Costas nas mulheres. Se há nos homens, tem de haver nas mulheres, porque isto é genético. Saber jogar não tem sexo.

No que é que as mulheres são ou podem ser melhor do que os homens no futebol?
Há uma coisa em que elas são melhores, mas não é só no futebol, é na vida em geral, são muito mais fiéis ao compromisso e menos interesseiras. É indiscutível. Agora, como é lógico, têm outras coisas, até reflexo da própria sociedade. Mas a mulher cometeu um erro. Ao querer ser tanto igual ao homem foi buscar coisas ao homem que não prestam. Não é não ter resistido à tentação de ter os direitos iguais, não é essa a questão que se levanta.

Dê exemplos.
Fuma demais, bebe demais, perdeu algum rigor. Uma das coisas bonitas que a mulher tem é primeiro ser mulher e a partir daí tem o direito de tudo o que o homem pode ter. Os exageros numa mulher parecem pior do que num homem. Às vezes o homem é um bocado grosseiro, já não abre a porta à mulher e a mulher entrou numa de: "Ai é? Então também não abro". Não façam isso. A mulher tem a beleza de saber estar. O carinho e a simpatia da mulher é sempre o sorriso e a mulher não pode deixar isso. 

Depois de dois anos na selecção feminina vai com Nelo Vingada para a Ásia.
Sim, ele convidou-me para trabalhar com ele.

Qual foi o primeiro impacto?
Nas Arábias existe ostentação, é uma coisa que impressiona, é cultural. Por outro lado chocou-me aquilo que é inconcebível ainda acontecer, a mulher não ter a sua própria liberdade na actividade normal.

É o oposto do que estivemos a falar agora.
Exactamente, é uma coisa que não consigo compreender. Parece que aos poucos as coisas vão mudando, agora já podem conduzir, etc. Quando lá cheguei comiam com o véu, levantavam só um bocadinho para meter a comida na boca, não podiam mostrar a cara. Era horrível. No Irão, que foi a minha última etapa profissional, é uma hipocrisia tremenda, há tudo e mais alguma coisa por trás da cortina, à frente não há nada. As crianças começam logo por aprender a mentir porque em casa veem a mãe sem aquilo vestido e quando vão para a rua, vão todas tapadas. É uma mulher em casa e outra mulher fora. A criança começa a confundir. Não estou nada de acordo com isso. Respeito as religiões, as tendências, tudo isso, agora não faz sentido que para cumprir uma determinada religião, um determinado conceito, se retire a liberdade.

O que o chocou mais?
Foi assistir ao chegar de uma carrinha, porque havia umas jovens que não tinham o cabelo bem tapado, e ver a polícia religiosa a enfiá-las dentro da carrinha e levá-las. Fiquei doido, completamente doido. Não pensava que fosse possível.

A seguir vem para o Benfica de Vale e Azevedo. Fazer o quê?
Estive como dirigente e sai. Depois tive a experiência na Madeira que adorei, no Marítimo, como assistente do Nelo Vingada, uma época e meia fantástica. Correu muitíssimo bem. Ele é uma pessoa encantadora.
Nunca quis ser treinador principal cá?
Uma das razões porque nunca aconteceu foi porque fui tendo convites de gente com quem adorava trabalhar. Carlos Queiroz, Nelo Vingada, Jesualdo Ferreira, etc, estas eram as pessoas que estavam à frente em Portugal quando cheguei e tive sempre muita curiosidade em estar com esta gente. Foi, digamos, uma opção, até foi mais uma opção de continuar a aprender.

Chegou a ter convites para ser treinador principal?
Várias vezes, em Portugal também.

Treinou o Lusitânia dos Açores.
Isso foi o tal amigo, o António Frias que me levou para os EUA, pediu-me o favor de estar lá alguns meses, mas não houve muitas condições.

Depois vai treinar os sub-23.
Mais uma vez o Carlos Queiroz pede-me, aparece a selecção de sub-23 e eu tenho uma experiência muito interessante.

Prefere trabalhar com gente mais nova?
Quando temos um capital de experiência, temos um trajecto, é muito importante aproveitar, sobretudo para os mais jovens. Hoje faço palestras, sou convidado para ir universidades, aqui e nos EUA. Gosto imenso de falar para jovens. Acho que tenho de dar a conhecer aos jovens o meu capital. Não aos da minha idade, esses já não vão lá (risos).

Estava há pouco a contar que vai como adjunto do Carlos Queiroz para o Irão. O que reteve do Irão?
Duas ou três coisas. A primeira, a paixão que o iraniano tem pelo futebol. São doidos por futebol, discutem futebol, vivem de futebol, é uma coisa impressionante. E o regime alimenta isso. Ninguém paga para assistir a um jogo da selecção. Estão 100 mil pessoas no estádio e não há um bilhete vendido. Aí sim, serve-lhes a religião. Mas é extraordinária a paixão que eles têm pelo futebol, é contagiante. Em segundo lugar, tenho de voltar a falar do contraste daquilo que aparenta e daquilo que não é. O Irão é um bom exemplo da hipocrisia. Terceira coisa é a cultura do mártir. Isto existe. É de tal maneira que se dá muito mais valor à morte do que à vida. Não gostei. Por último dizer que não quero dizer com isto que o povo iraquiano não presta. Não é verdade. Presta e há gente culta. Vale a pena conhecer o Irão, mas não vale a pena esconder uma hipocrisia, que é bem visível, e que não tem nenhum interesse para a sociedade.

Assume que gosta de viajar. Qual o local que mais lhe encheu as medidas?
Não consigo ver o mundo sem os EUA. Marcou-me. Mas vou dizer com toda a sinceridade, se a Escandinávia tivesse mais sol, era para onde eu gostava de ir viver.

Porquê?
Porque as pessoas são cultas, são honestas, educadas, têm o sentido de servir o país, são patriotas. Todos têm uma missão para cumprir em prol do todo, revejo-me nessa sociedade. Só que o frio é tanto que me arrefece o desejo (risos).

Depois de vir do Irão, e já explicou que teve a ver com a morte do Eusébio, o que tem feito? Consegue resumir a sua vida até agora?
Leio muito. O último livro que li foi sobre o Messi e o Cristiano Ronaldo. Continuo interessado nisso.

Um é melhor do que o outro?
São diferentes. Um é a essência do jogo, o Messi. O outro é o objectivo do jogo, Cristiano Ronaldo. É assim que vejo. Se me perguntar se prefiro mais a essência, eu digo que sim. Mas se me perguntar se é o mais importante, digo-lhe que não. Os dois juntos fariam o jogador que está para vir daqui a 100 anos.

O jogador perfeito.
Exactamente. Mas tenho mais inclinação para o Messi, porque algumas coisas que ele faz, fiz eu em menor escala, mas lembro-me de as fazer.

Ronaldo é o melhor jogador português de sempre?
É o jogador de futebol com os melhores números de sempre. Quando se falar em números é o Cristiano. Quando se falar no jogo, para mim, continua a ser o Eusébio.

Para si o Eusébio vai ser sempre o melhor.
Até hoje. No conceito do que é o jogo para mim. O Cristiano jamais será um jogador de meio-campo, nunca. Nunca será o grande pensador do jogo. Eu vi o Eusébio ser o grande goleador e depois passar a ser o grande pensador. Não acho que o Cristiano tenha essa capacidade que o Eusébio teve. O Cristiano é um jogador para jogar o jogo, não todo, nem em todo o tamanho do campo. Não tem todo o tamanho do campo com ele, nem tem todo o tamanho do jogo com ele. O Eusébio teve. É por isso. 

É comentador na televisão. A primeira vez que o convidam para ser comentador era o que estava à espera ou não?
Eu ainda estava no Irão e foi o próprio Toni que me ligou a dizer que a SIC Notícias estava a pensar em convidar-me para o "Play-off". Aceitei. A maior parte das pessoas que fala sobre o jogo não tem nada a ver com o jogo, e as que tiveram a ver com o jogo são muito pouco pedagógicas. Acho que se quisermos mudar o paradigma da cultura desportiva em Portugal, que não existe, tem que ser iniciado por quem jogou. Não é possível ter uma cultura desportiva se o discurso na televisão não for pedagógico. 

Considera que há programas a mais, com comentadores a mais?
Excessivamente a mais.

Choca-o ter comentadores que não foram jogadores ou treinadores?
Não, não me choca nada porque pode haver gente que nunca jogou mas tem a cultura do jogo, tem o relacionamento com o jogo e é capaz de dar uma opinião interessante. Conheço gente que jogou, que não tem muito boa relação com o jogo, e que não está para ser pedagógico, está apenas para servir, não quem o contratou, mas quem ele representou. E isso é muito mau. Tem de haver uma independência naquilo que é a obrigação pública de dar uma opinião educativa, de conhecimento e não tentar agradar os que estão no clube a que ele pertenceu ou pertence. Jamais vou hipotecar os meus princípios e valores, por causa do meu benfiquismo. Aprendi a respeitar uma cultura desportiva porque ela existe, nos EUA. Se alguma vez tivesse tido dúvidas de como devo atuar baseado numa cultura desportiva, nos EUA tirei as dúvidas todas, porque lá respeita-se e exercita-se uma cultura desportiva. Aqui não. Aqui vejo nos canais de televisão um hipotecar terrível da cultura desportiva, para servir o patrão. E não é o patrão da televisão que lhe paga, é o patrão de que ele veio recomendado, esse é que é o problema.

Há pouco passou por cima dos sete meses em que foi dirigente do Benfica no tempo de Vale e Azevedo. Foi ele que o abordou? Como é que lá foi parar?
Através de um amigo dele. Eu estava na Arábia Saudita com o Nelo, fui desafiado para um grande projecto e acreditei.

Quando é que se apercebeu que o projecto e Vale e Azevedo não era como lhe tinham “vendido”? 
Logo passados dois ou três meses comecei a perceber que o homem mentia. Dizia uma coisa, depois dizia outra. Eu ficava doido. Levei o professor Nelo Vingada para tomar conta da área da formação, começamos a falar e eu dizia-lhe: “Ó Nelo, este gajo é doido, este gajo mente. Não podemos estar aqui muito tempo, temos que ir embora, pá”. Entretanto começo a ver a chegada dos jogadores ingleses com o Souness e por aí fora. No final da época fui embora.

Mas voltou ao Benfica como dirigente.
Voltei com o Vilarinho. Numa situação muito difícil, reflexo daqueles quatro anos do Vale e Azevedo. Aí foi uma situação extremamente complicada porque não havia meios, o Benfica estava quase na bancarrota, foi um sacrifício tremendo para se conseguir jogadores, depois veio o Luís Filipe Vieira que deu uma ajuda preciosa e aos poucos lá se foi endireitando. E eu estive até um determinado momento quando percebi que se começa a admitir a vinda do José Veiga, tomei imediatamente a minha decisão, com o José Veiga não, e vim embora.

Porquê?
Porque não são essas as pessoas que são referência na minha vida. Cheguei a um momento na minha vida, em que eu falo e trabalho com quem quero. É um direito que me assiste. Sou um homem livre, como tenho uma independência financeira, permite-me ter uma independência intelectual. Quer isto dizer que estou certo e o outro é que está errado? Não. Quer isto dizer que sou importante e o outro não? Não. Quer isto dizer que quero ser um exemplo para alguém? Não. Quer isto dizer que eu sou um cidadão exemplar? Não. Quer isto dizer que tenho de desfrutar da minha independência? Sim. 

Não concorda que os empresários façam parte da vida dos clubes?
Eu compreendo que eles tenham que existir. Quando fui para os EUA, já havia o agent. Eu tive um agente uma única vez na vida. Mas a questão é: uma coisa é haver um agente que representa um jogador, outra coisa é haver empresários que vivem à custa do futebol, mas não fazem nada. Apenas fazem por cumplicidade com os dirigentes, este é que é o problema. imagine: há um jogador que é representado por um empresário e está na altura desse jogador renovar o contrato. As negociações dão-se com o jogador directamente ou só com o empresário ou com os dois. Porque é que tem que ser o clube a pagar ao agente do jogador? Quem é que tem que pagar ao empresário, não é o jogador? O empresário não está a prestar um serviço ao jogador? Está a prestar um serviço ao clube? Porquê? Em quê? Não estou a perceber. Então e paga-se ao empresário, não há nenhuma razão para isso. Outra coisa é eu pedir ao empresário para fazer três jogos nos EUA e quero 1 milhão de dólares por cada jogo, ele consegue-me isso e eu pago-lhe 10 ou 15% conforme o combinado, porque ele prestou-me um serviço.

Ou se o clube pedir directamente a um empresário um determinado tipo jogador.
Exactamente. Agora ele representa um jogador e eu dou-lhe comissão. Porquê? Qual é a razão? Não faz muito sentido. Porquê? Eu digo-lhe porquê. Porque sempre que existe esta situação, o dirigente também ganha. Este é que é o problema. Porque é que não há resistência ao comportamento de determinados empresários que vivem à custa do futebol e que não prestam serviço nenhum ao futebol? Porque interessa ao dirigente. Isto é verdade. Hei-de pôr no meu livro de memórias, porque é que um dia um empresário me ofereceu um milhão de dólares, para eu trazer um jogador para o Benfica e não veio. Eu não ganhei um milhão de dólares. É verdade. Um dia conto isto.

Porque é que esse empresário não foi buscar esse jogador directamente?
Só podia ir buscar se houvesse o sim de alguém que estava no clube. Eu fui convidado para ir ver um jogador e trazê-lo para o Benfica, mas esse jogador não veio porque não prestava para nada. Eu não ganhei um milhão de dólares. Mas sabe para onde é que ele foi? Para o FC Porto. Um dia vou pôr isso nas minhas memórias.

Disse numa entrevista que fica com uma mágoa para o resto da vida ao ver o Benfica acusado no processo do e-toupeira.
Porque já ninguém apaga essa mancha. Mesmo que toda a gente seja ilibada. Uma vez que cai publicamente, não há nada a fazer.

Porque é que foi afastado da Benfica TV?
Porque sou um homem livre. Houve um equívoco tremendo, eu só disse que não me revia em gente que trabalhava no Benfica. Só disse isto. Mas como também disse que o Luisão era o Benfica, e que eu era o Benfica, como são os bicampeões europeus, pegaram nisso, esqueceram-se do resto. A questão é que não me revejo em Pedro Guerras e companhias. E tenho esse direito. Ficaram muito chateados.

Já sabemos que a maior amizade que fez no futebol foi com o Eusébio. E inimigos?
Acho que não. Nunca fui expulso, nunca tratei mal um árbitro, um adversário. Fiz muito para me defender a mim, aos meus e ao meu clube. Às vezes fui um bocado chato com os árbitros, mas em 700 jogos que fiz na vida nunca quis comprometer um árbitro depois de ele ter cometido um erro, nunca. Porque sei perfeitamente que é horrível estar a evidenciar perante um estádio cheio, que ele cometeu um erro. Isso é a pior coisa que se pode fazer a uma pessoa, nunca o fiz. Pelo contrário, passava pelo árbitro e às vezes assoprava “não faça isso outra vez”, mas não ia para lá levantar braços.
Tem superstições?
Só quando jogava.

O que fazia?
Entrava com o pé direito, benzia-me, pedia para não me magoar, essas coisas assim.

O melhor e o pior que o futebol lhe deu?
O melhor é fácil. Vou dizer do quanto a paixão me alimentou. Para mim o futebol ainda continua a ser uma paixão. O futebol deu-me o mundo que tenho e que nunca teria se não tivesse sido jogador de futebol.

E o pior?
Aquilo que ando a assistir todos os dias. O pior que me podem fazer é não haver futebol transparente em Portugal. Nós temos paixão pelo jogo mas estamos sempre desconfiados com qualquer coisa do jogo. Isso é o pior que há. 

Não foi sempre assim?
Não, não foi, foi de há uns tempos para cá.

Consegue apontar esse tempo, uma década?
Tudo isto começa com a impunidade do poder político sobre o futebol e vice-versa. E é extraordinário que o poder político ainda não se conseguiu libertar de utilizar o poder, contra o poder do futebol na política. Não consigo perceber como é que a política continua a ter tanto medo do poder do futebol.

O melhor e o pior na carreira?
O melhor foram os 16 anos no Benfica. O pior, tenho um desgosto enorme, uma dor, do Benfica não ter sido tricampeão europeu. Como é que é possível que em três finais, em 1963, 65 e 68 não se ter feito tricampeão. É a coisa que me está mais atravessada na carreira, é isso.

É costume dizer-se que há benfiquistas antiportistas e benfiquistas antisportinguistas. Em qual deles se encaixa?
Nós, jogadores, não, nunca. Se os jogadores quer no meu tempo, quer em todo este tempo, fossem atrás do discurso de determinados dirigentes, havia uma batalha campal todos os domingos. Veja o respeito que existe entre eles. Os jogadores sobre esse aspecto, são um grande exemplo para os dirigentes. Tendo em conta a violência verbal constante dos dirigentes, se os jogadores não se respeitassem, imagine o que é que já teria acontecido.

Se não fosse jogador de futebol o que é que teria sido?
Professor de matemática.

Já escreveu um livro sobre outros (“António Simões – personalidades e reflexões do mais jovem campeão europeu da história”), nunca pensou escrever a sua autobiografia?
Agora começo a estar mais inclinado para isso. Acho que devo deixar registado algumas coisas, porque há muita coisa que se passou na minha vida que nunca contei, algumas lindíssimas, outras diferentes e que faria com que os mais jovens soubessem quem é este António Simões que jogou futebol, foi campeão europeu tão jovem. O que ele é o que foi o que fez. Porque acho que tenho mundo, vivi e trabalhei em muito país, visitei mais de 80 países, conheço mais de 400 cidades no mundo e é muito importante que os mais jovens ouçam quem tem mundo.

Não querendo fazer desta entrevista a sua autobiografia, pode revelar uma ou duas dessas histórias nunca contadas?
Num jogo na Grécia, Olympiacos-Benfica, tínhamos ganho cá 2-1, para a Taça dos Campeões Europeus. Fomos jogar a Atenas e sou abordado por um sujeito que queria pagar-me 10 mil dólares para eu não jogar e convencer o Eusébio e o Nené a fazerem o mesmo. O sr. Otto Glória tinha saído do Benfica, estávamos numa época difícil, o treinador era o Sr. Fernando Cabrita. A minha reação foi "eu tenho de contar isto imediatamente ao sr. Cabrita". Era já tarde, eu não consegui dormir e tive de ir lá bater-lhe à porta. Acordei-o, disse-lhe o que se tinha passado e que não conseguia dormir, porque tinha receio que aquilo continuasse, que viesse mais gente ou que ele voltasse a aparecer. Estava a oferecer 10 mil dólares para eu, o Eusébio e o Nené não jogarmos. Foi terrível. Quer mais uma? 

Claro. Força.
No ano em que entrou o Vale e Azevedo no Benfica e trouxe um treinador chamado Graeme Souness, eu percebi que o Benfica estava a ser utilizado como um autêntico entreposto de entrada e saída de jogadores. Eu estava tão indignado que nos sete meses que lá estive com ele emagreci seis quilos. Andava completamente doido, impotente para travar aquilo, a ver o meu clube a ir para o fundo. Ao fim de seis meses, saí, mas não fui embora calado, houve outros que ficaram lá, calados, mas eu vim embora e denunciei. E há uma reunião entre mim, Vale e Azevedo e Souness em que eu peguei numa cadeira para atirá-la pelo ar… Fiquei com ela na mão e saí. E há uma senhora chamada D. Olga que foi secretária do presidente durante muitos anos que ouviu tudo. Bati com a porta quando saí, ela vira-se para mim e diz: "O sr. Simões não quer continuar aqui, pois não?". É a primeira vez que estou a contar isto publicamente. Isto para dizer que há coisas que fazem parte da minha vida e da minha própria personalidade, algumas delas deixaram ferida, mas, por outro lado, sinto que fiz aquilo que devia ter feito. Não estou arrependido daquilo que não fiz, estou mais arrependido de algumas coisas que fiz e que não devia ter feito. Acho que aqui e acolá cometi alguma injustiça, excesso de rigor, exigência, pouco tolerante. Acho que às vezes não tratei bem quem devia ter tratado. Mas essas são coisas que fazem parte da nossa vida.

Essas injustiças de que fala foram enquanto dirigente ou enquanto treinador?
Às vezes mesmo até com os amigos. Fui, em certos casos, excessivamente rigoroso, excessivamente exigente, pouco tolerante, acho até que a minha carreira de treinador se prejudicou por causa disso. Porque eu não percebi na altura, quando passo a treinador, que nem todos tinham que ser como eu. E cometi esse grande erro. E hoje estou arrependido."