terça-feira, 30 de outubro de 2018

O príncipe da Cidade-Luz

"Em Maio de 1980. Benfica e Ajax estiveram frente a frente no Torneio de Paris. A vitória dos encarnados foi impressionante: 5-1. E, acima de todos, brilhou a luz de uma avançado irrepetível: Nené. Marcou todos os cinco golos!

Eis-nos no meio de dois jogos entre Benfica e Ajax. Há que dizer que, no final dos anos 60 e início dos anos 70, o confronto como que se tornou um clássico da velha Taça dos Campeões Europeus.
Depois, os sorteios mantiveram os dois fidalgos à distância.
O que não quer dizer, naturalmente, que as refregas não se tenham dado noutro plano: o dos jogos particulares e dos torneios internacionais.
Era aqui que eu queria chegar.
O Torneio de Paris foi, durante muito tempo, um dos mais luminosos do mundo, não fosse a capital de França a Cidade-Luz.
Não se esqueçam de que foi aí que Eusébio se deu a conhecer ao universo num jogo extraordinário frente ao Santos de Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pepe e Pelé. Edson Arantes do Nascimento: por extenso, Pelé, como dizia o bendito Nelson Rodrigues.
Em 1980, o Benfica voltou ao Torneio de Paris.
As coisas não correram muito bem: afastamento da final por contra do Standard de Liége. 1-1 nos noventa minutos e, em seguida, 4-5 no desempate por grandes penalidades.
Norton de Matos foi o marcador da penalidade decisiva a favor dos belgas. Ele que jogara no Benfica.
Nené marcou o golo dos encarnados numa cabeçada fulminante. Nesse torneio, Nené chegaria aos píncaros da Luz.

Faltou a final
Não restava aos encarnados mais do que tentar o terceiro posto.
No Parque dos Príncipes, defrontaram o Ajax. E os holandeses já tinham dado amargos de boca aos portugueses. Não admira era uma equipa extraordinária!
Já não havia Cruyff, Kaizer nem Neeskens. Mas ainda havia Schrivers, Arnesen, Soren Lerby, Jensen e o bailarino Tahamata.
O Benfica tinha Humberto Coelho e Shéu, Carlos Manuel e Pietra, Diamantino, Toni e Reinaldo. Ah! E Nené!
O que aconteceu nessa tarde de Paris não se repete.
18 minutos: livre na direita apontado por Carlos Manuel, Humberto Coelho na grande área do Ajax a provocar um desvio na bola. Nené surgindo velocíssimo para o toque derradeiro. 1-0.
'Isto promete', terão pensado os adeptos portugueses nas bancadas. E preparam-se para o que aí vinha. O problema é que ninguém estava preparado para o que veio.
36 minutos. Humberto Coelho, ao seu estilo, entra no meio-campo holandês. Do seu pé direito sai um passe primoroso para as costas da defesa contrária. Nené não se faz esperar. Felino vai ao encontro da bola e, isolado, marca de novo 2-0.
O intervalo parecia garantir a vitória lusitana.
Mas havia mais: muito mais!
63 minutos. Carlos Manuel, interpreta uma cavalgada do quilé, como diria o grande Fernando Assis Pacheco. Vai para cima de Jensen, passa por ele com à-vontade, fica com Schrivers pela frente. À saída do guarda-redes, toca a bola para o lado. Nené, que acompanhara a corrida do companheiro, só tem de tocar par a baliza abandonada. 3-0.
Em quatro golos do Benfica, nesta edição do Torneio de Paris, Nené assinara quatro. E não estava satisfeito.
65 minutos. Novamente Humberto a entrar no meio-campo adversário. Passe medido, orientado: Nené fica cara a cara com o keeper do Ajax: meteu-lhe a bola por cima num toque de suprema categoria. 4-0.
76 minutos. Desta vez a bola passou pelos maravilhosos pés de Shéu. Tão redonda, que fazia impressão. Nené recebe-a carinhosamente e, de imediato, atira para trás do defesa que vinha na sua direcção. Segue-a um remate espectacular de força e colocação, 5-0.
Nas touradas, dir-se-ia: Nené -  cinco golos cinco!
Os holandeses teriam direito a reduzir, a três minutos do fim, por Lerby.
De pouco lhes serviu.
Nené era o príncipe de Paris! O seu nome brilhava intensamente no coração da Cidade-Luz."

Afonso de Melo, in O Benfica

A sua confirmação que tardou em chegar

"Após uma grande exibição frente ao Benfica, José Águas viveu dias de hesitação

Os grandes jogadores destacam-se pela forma como aproveitam as oportunidades. Para José Águas, bastaram duas oportunidades para conseguir jogar de 'águia ao peito', ainda que para tal tenha sofrido bastante.
O avançado, que despontou no Lusitano do Lobito, era um benfiquista fervoroso, ao ponto de se envolver directamente nas questões do Clube: 'quando o Rogério estava para ir para o Brasil, eu tirei-me dos meus cuidados e escrevi-lhe uma carta a pedir que não fosse, que não podia abandonar o Benfica'.
A sua qualidade e o seu benfiquismo foram argumentos suficientes para que, 'em Maio de 1950, um nosso amigo, Nuno Medeiros, escrevesse ao sr. Francisco Retorta, dizendo-lhe das minhas possibilidades em ingressar no Benfica, e que estava certo que eu viria a fazer carreira'. A resposta não foi concreta: 'o sr. Retorta respondei que, depois, em Angola se veria', num momento em que os 'encarnados' já haviam agendado uma digressão a África.
Foi um dos convidados para a selecção de Lobito, que iria defrontar o Benfica a 19 de Agosto de 1950. Era uma oportunidade soberana para mostrar a sua qualidade, ficando por isso mais pressionado: 'calcule, pois, os nervos com que eu aguardei aquela prova, que se apresentava como decisiva para o meu futuro'. A equipa local fez um bom jogo e José Águas foi autor de dois dos três golos.
Após essa grande exibição, ficou confiante de que iria conseguir jogar pelos 'encarnados'. Os dias foram passando e a ansiedade aumentando, afirmou: 'sofri a bom sofrer'. Perante tal situação, Nuno Medeiros teve de voltar a intervir e, após falar com os dirigentes benfiquistas, estes acederam a que o avançado se juntasse à equipa. Para José Águas era o suficiente, a grande oportunidade pela qual tanto tinha esperado, mesmo que 'sem contratos fixados, sem nada'. A motivação mantinha-se, 'eu queria era jogar no Benfica'.
Na primeira partida de 'águia ao peito', foi um dos protagonistas do encontro, ao apontar três golos. A imprensa ficou rendida, 'está ali um jogador de largo futuro. O rapaz tem, de facto, invulgar intuição para o jogo'. Ingressou no Clube e alinhou de 'encarnado' durante 14 épocas, nas quais se sagrou cinco vezes o melhor marcador do Campeonato Nacional.
Saiba mais sobre um dos maiores goleadores do futebol nacional na área 23 - Inesquecíveis do Museu Benfica - Cosme Damião."

António Pinto, in O Benfica

Estádio do Benfica (ou) e Benfica Estádio

"O novo Estádio da Luz foi inaugurado no dia 25 de Outubro de 2003, após um longo período de muito sangue suor e lágrimas.
Algures em Setembro de 2002, conheci Luís Filipe Vieira em Sesimbra, que me foi apresentado por um amigo comum.
Nesse mesmo dia, tive a oportunidade de ser presenteado com uma explicação detalhadíssima do que seria o project finance do futuro Estádio da Luz.
Confesso que apesar dos mil e um livros que havia lido na minha vida, das horas intermináveis a estudar e dos cursos que havia frequentado, fiquei fascinado com a explicação que o Luís me fez do que pretendia para o Benfica, especialmente da construção do novo Estádio da Luz.
Os momentos e a sabedoria que os meus sentidos absorveram naquele longo (curto) momento apenas poderão ser reproduzidos por expressões, emoções, tudo do foro sensorial, impossíveis de reproduzir do foro racional.
Foi efectivamente fascinante! E o que parecia um sonho tornou-se uma realidade!
O jornal O Benfica na sua edição de 4 de Dezembro de 2002, afirmava que 'O novo Estádio da Luz será uma caixinha de surpresas', (...)
Um verdadeiro sonho! Um verdadeiro conto de fadas!
Relembremos que o Benfica, havia 2 anos, tinha saído de uma das piores crises da sua história! Chamava-se Vale e Azevedo!
Sabemos que, actualmente, existe um conjunto de pessoas que estão entretidas a tentar acabar com o Benfica. Um desses locais é este link: https://mercado-debenficapolovo.wordpress.com.
Como é possível que um mero link, alojado na Internet nos Estados Unidos da América, na Califórnia, navegue sem que ninguém lhe possa colocar controlo, travões, que lhe dê um 'cut final', em que todas as autoridades parecem bonecos amestrados em perseguição de uma cenoura que, andando sempre à frente do Burro, este nunca a consegue apanhar?
Basicamente, o que o Luís me explicou na parte em que consegui acompanhar o seu acelerado raciocínio foi que o Estádio da Luz necessitaria para a sua construção de apoio bancário -  pudera, o outro havia delapidado tudo e todos - e deveria ser construído um project finance que permitiria, obviamente em condições constantes e normais de mercado, que se fosse pagando a si próprio.
O estádio encontra-se contabilizado nas constas da Benfica Estádio SA, pelo valor de 136 milhões de euros. De notar que aqui se vão englobando, além do custo inicial, custos  com reparações e outros que devam ser contabilizados em imobilizado.
Do outro lado, tivemos o financiamento para a construção do estádio, que inicialmente orçou em cerca de 120 milhões de euros.
A Benfica Estádio, nas contas que reportam de 30-6-2016 a 30-6-2017, evidencia ainda uma dívida de financiamentos obtidos no valor de 40 milhões de euros. No entanto, estes financiamentos possuem um valor muito residual no que concerne ao reembolso do pagamento do financiamento obtido para a construção do 'ex-novo' Estádio da Luz.
Sabe-se que o Estádio da Luz, apesar de ter um investimento até hoje na ordem dos 150 milhões, não é um activo vendável, por razões óbvias, e com isso impede obtenção de liquidez e de receita.
No entanto, ficará inquestionavelmente para as gerações vindouras e não é propriedade de ninguém, mas sim, propriedade de todos!
Se, à imagem de Vale a Azevedo, que quis vender por custo zero o Benfica a si próprio, fosse realizado dinheiro com a venda do estádio, seria facilmente populista com esse dinheiro 'burlar' o coração dos benfiquistas. Mas não! É do Benfica!
Por essa razão, comungo da frase de lapidar do presidente Luís Filipe Vieira, que numa entrevista ao jogar O Benfica no dia 25 de Outubro de 2013, disse: 'Passados estes anos todos, tenho orgulho e todos os benfiquistas têm orgulho no que aqui está feito e que hoje é determinante no Clube'.
Nada mais correcto, senhor presidente!"

Pragal Colaço, in O Benfica

Off Record

"Para os editores actuais tudo o que vem à net é publicável. Primeira publica-se, depois interroga-se. Todas as toupeiras são de confiança, excepto se forem identificadas e levadas à Justiça.
Sou do tempo em que as corporações de jornalistas se amofinaram contra a publicação de uma gravação do treinador António Oliveira, feita sem o conhecimento deste por um de vários repórteres numa conversa informal, o polémico "off Record".
Naquele tempo, não havia redes sociais na internet e os editores só publicavam matérias com autenticidade, proveniência e contexto conhecidos, comprovados e credíveis. Não havia toupeiras, mas havia jornalistas."

Sair a jogar: o princípio do fim da aleatoriedade dos duelos

"O treinador Blessing Lumueno escreve um texto que pretende pôr todos os adeptos e agentes do futebol a reflectir: "Como adepto do progresso e da democracia, caríssimos, penso que o pior amigo do avanço e da evolução é a inoperância e a reflexão inerte. Daí a falência das democracias actuais. É responsabilidade nossa, porque nos escondemos da nossa obrigação de analisar e criticar o conteúdo que nos é oferecido"

A nova ordem do futebol em Portugal define que há que separar quem analisa o jogo de quem faz uma crítica. Isto porque uma análise está despida de uma forma específica de ver o jogo e uma crítica tem na sua raiz um fundamento ideológico próprio. Essa separação quer fazer-nos pensar que todas as ideias para o jogo são válidas, e que quem gosta realmente de futebol consegue analisar, mas quem gosta do jogo que idealizou na sua cabeça só está capacitado para criticar. Isto é, quem elogia tudo e o seu contrário em função do sucesso circunstancial é que está mais próximo de amar o futebol e de o analisar de forma correta; os outros apenas gostam do jogo como o imaginam e, como tal, não podem dizer que analisam.
Esse pensamento tem três pressupostos profundamente paradoxais:
1. A ideia de que o futebol é um jogo democrático onde tudo pode ser considerado bom e que por força da maioria/do contexto todas as situações têm valor. É uma ideia falaciosa na medida em que o futebol é um jogo com regras e as regras constrangem. Não é um jogo onde vale tudo e esse constrangimento faz com que existam boas e más formas de o jogar. Por exemplo: nunca poderá ser considerado bem jogado alguém rematar contra a própria baliza. Isto porque o futebol tem uma regra que diz que vencerá o jogo quem marcar mais golos e rematando contra a própria baliza estamos a possibilitar ao adversário (sem que ele tenha feito nada por isso) a possibilidade de marcar um golo; 
2. A ideia que quem analisa é diferente de quem critica. Isto é, que quando alguém faz análise sai do seu próprio corpo, do seu rol de vivências, elimina as suas aprendizagens, transforma-se noutra pessoa e faz uma análise limpa sem qualquer influência do seu “eu” nos parâmetros e na forma como os aplica para avalizar ou reprovar as acções de jogo em causa. Pergunto-me: como é que é possível analisar ou criticar como se fôssemos outra pessoa, ou como se não fôssemos nós? Como é que se faz isso sem que se esteja a falar de uma análise com números de acções em grosso, sem qualquer margem para interpretação? É uma capacidade que, caso exista, gostaria de ter;
3. A ideia que a democracia em termos de aceitação do jogo é uma virtude, é de quem ama o jogo e é a característica essencial do analista; mas depois a separação e a exclusão do mundo da análise de quem faz uma análise com o critério mais apertado. Ora bem, ou se defende a democracia ao nível ideológico e não faz qualquer tipo de sentido separar em analistas e críticos, em quem ama o jogo e quem ama o jogo da sua cabeça, ou se defende que afinal há critérios que cada um utiliza para analisar baseados na sua experiência e diferente forma de olhar para o jogo; ou então mais vale dizer-se logo que há análises melhores e piores, análises simplistas e mais complexas, análises com reflexão crítica ou análises inertes, onde a democracia está na aceitação de todas sem que isso signifique que tenham o mesmo valor.
A saída de bola é um exemplo paradigmático das primeiras linhas deste texto.
Por força da nossa cultura pelo imediatismo, o elogio às equipas que tentam sair a jogar com passes curtos e de forma mais apoiada aparece sempre com a condição de ter jogadores com qualidade suficiente para fazê-lo. Por isso aceita-se que, com aqueles jogadores, por terem aquela qualidade, sair a jogar curto é o melhor início para o seu jogo. Para outras equipas, para outros jogadores, sair a jogar curto só se deve fazer se não existir pressão do adversário, para que não exista o risco de se perder a bola naquela zona.
Estes dois pressupostos partem do princípio que o risco de se perder a bola em zonas mais próximas da baliza é maior do que o risco de perder com a equipa toda organizada atrás da linha da bola. É um princípio certo, mas está incompleto. Falta-lhe informação complementar para que se possa fazer uma análise mais rica em termos de escolha entre uma e outra acção.
A saída de bola longa tem como grande vantagem em caso de perda a equipa estar toda mais ou menos organizada, e mais longe da baliza que defende. Se a equipa trabalhar para essas acções de jogo, em caso de perda, os jogadores estarão mais próximos uns dos outros e por isso com menos espaço para o adversário penetrar por entre as suas linhas. O risco nesse momento é menor, mas as consequências desse menor risco são a informação que falta e da qual normalmente não se faz uso. O passe longo é um passe de execução mais difícil que o passe curto, assim como também é de recepção mais difícil. E a dificuldade é ainda maior no caso de existirem adversários por perto. Ou seja, tudo isso resulta numa maior possibilidade de o adversário recuperar a bola.
E aqui voltamos às regras que constrangem o jogo: ganha quem marcar mais golos que o adversário. Isso significa que quanto mais vezes o adversário tiver a bola, mais possibilidades lhe estamos a oferecer para que nos marque golo. E mesmo em termos defensivos, uma vez que o jogo tem como regra apenas permitir uma bola em jogo, a melhor forma de impedir que o adversário nos marque é tendo a bola. A melhor forma de defender é esta: ter a bola o maior tempo possível, porque quando temos a bola eles não nos marcam. Portanto, é melhor ter bola do que não ter. Não há democracia na escolha do melhor, é apenas a lógica do jogo.
O passe longo tem também como condão resultar em duelos, e mesmo com jogadores fortes desse ponto de vista o grau de aleatoriedade é muito maior do que quando se executa um passe curto.
É sempre difícil de perceber quem vai ficar mais vezes com a bola nos duelos, e isso gera um pior controlo do rumo do jogo. Ora, estamos fechados na necessidade de se vencerem os duelos quando o objectivo deveria ser criar estratégias para os evitar. Quanto menos duelos tivermos que disputar maior será a nossa capacidade de prever para o jogo irá seguir, e com isso estamos a diminuir a aleatoriedade do jogo. Porque os duelos são maus para todos. São maus para quem ataca e são maus para quem defende. E para chegarmos aí basta olharmos para aspectos tão básicos do jogo quanto: é melhor para um jogador receber a bola sozinho ou com oposição? É melhor para quem ataca uma bola no ar que o faça sozinho ou em disputa com outro jogador? E quando falo em evitar duelos não estou a dizer que no caso de a situação aparecer se deva fugir deles, mas em como se criam situações no jogo para que os jogadores tenham mais tempo, mais espaço e menos oposição para decidir em função da situação. No fundo, falo em como se trabalha para se ter maior controlo sobre o rumo do jogo.
Quando se pensa no passe longo, também não se costuma dizer que são muito poucas as situações de jogo em que o passe longo é realmente vantajoso, e que a criação de uma saída para jogar longo (para quem tem a ideia de jogar curto) é perniciosa. Isto é, os jogadores encontram ali uma saída fácil para se livrarem da bola, para fugirem da possibilidade do erro, da responsabilidade, e para se entregarem também eles ao imediatismo do jogo sem pensar em mais nada. E isso normalmente leva a que eles optem mais pelas soluções mais longas, para eles mais seguras porque não os expõe no “foto finish” do que a opção por um maior controlo do passe curto. Veja-se, os jogadores do Manchester City, do Chelsea, do PSG, do Bétis, ou do Tottenham também cometem erros grosseiros. Não são poucos os erros que cometem, em posse, por jogo. E o número de erros comprometedores é grande. Mas, qual é a reacção dos treinadores ao erro? Incentivam ou reprimem? Mudam a ideia e o estilo de jogo? É essa convicção e essa força da ideia do treinador que dá ao jogador a segurança e a confiança para aceitar o risco, a responsabilidade, e para ficar mais confortável com um jogo que não está habituado a jogar.
Por tudo isso, a opção pelo passe curto, mesmo com pressão, tenderá a ser melhor do que a do passe longo. E os jogadores e treinadores que jogam desta forma estão cientes dos seus riscos, e são assumidos por eles. Já as equipas que jogam com o passe longo, e quem os aplaude, não costumam estar cientes dos seus pontos negativos. Quem joga em passe curto fá-lo em função de conquistar espaços, de conquistar mais tempo, de procurar colocar a bola em zonas de referência para definir o lance e de conseguir um maior controlo sobre o jogo. Joga-se curto para que o jogo proteja os jogadores, para que o jogo os sirva. Para que o jogo os beneficie, dando-lhes melhores condições para que possam executar. Os posicionamentos escolhidos são também para que no caso de perda se consiga rapidamente recuperar a bola, ou ganhar tempo para que se fechem os espaços vitais e cheguem mais jogadores para às zonas que são importantes.
Nem sempre se consegue, é certo. Mas o maior controlo do jogo garante, no mínimo, mais possibilidades de se criar situações para marcar e menos para o adversário, porque há uma melhor definição e previsão, uma melhor ligação, dos caminhos a seguir. Há menor margem de erro no passe, há menos duelos. Eu concordo com a ideia que cada treinador deve escolher aquilo que faz sentido para si, porque entre escolher o que sente como seu ou o que não faz sentido para ele a escolha é óbvia.
Sabemos que para converter os jogadores a darem tudo por ele, a darem o melhor deles, só se fazendo algo pelo qual se está profundamente apaixonado e determinado. Com as ideias limpas. Mas isso não faz com que tais ideias sejam avalizadas, ou que possam ser consideradas positivas para o jogo que é o futebol, para as regras do jogo de futebol. Damos por garantido que quando se diz que a equipa não tem qualidade para sair a jogar é porque o treinador quer ganhar, como se houvesse algum treinador a sair a jogar que jogue para perder.
E, se por acaso o treinador optar por tal, ao primeiro erro logo aparecemos a dizer “vês, é um risco que não compensa”. Como é que se percebe que uma equipa, que determinado grupo de jogadores, não tem condições para sair a jogar quando não são expostos constantemente a esse tipo de estímulos?
Mas o mérito ou demérito de uma ideia, o sucesso ou insucesso de uma forma de jogar não está num grande sucesso circunstancial nem num grande falhanço. É preciso tempo para se perceber ao longo do percurso se realmente há ou não condições para o fazer. É preciso que a regularidade venha e mostre de forma mais fidedigna o que é preciso melhorar, o que é preciso mudar, e o que se deve manter. Antes disso, antes dessa exposição consecutiva, é sempre demasiado cedo para se aceitar ou rejeitar uma ideia com o contexto como desculpa para não se fazer melhor.
Quando disse acima que se aceitava com relativa tranquilidade equipas que saiam a jogar com qualidade não referi que essa aceitação traz sempre, em surdina, um burburinho que sussurra o risco enorme que é sair a jogar e no momento em que se sofre um golo por isso logo se ergue a bandeira do imediatismo: “Eu bem disse que isto era um risco”. Porém, nunca ouvi nem em surdina uma voz a dizer que se sofreu um golo como consequência de se jogar em passe longo para o meio-campo do adversário. Afinal, os efeitos de uma perda de bola ali não são tão imediatos, e há por isso maior dificuldade em ligar-se a perda de bola, mesmo com a equipa organizada, ao golo que se sofre passados alguns momentos. Da mesma forma que todos falam da forma de vencer duelos e da importância que eles têm para o jogo, e ninguém debate sobre as formas de os evitar, sobre como ganhar mais controlo e diminuir a aleatoriedade do jogo.
Dizemos todos bem alto que o jogo mudou, que está mais evoluído, e que isso obriga a que se encontrem outro tipo de soluções para superar os desafios; mas depois aplaudimos de pé quem continua a formar equipas como no tempo dos Flinstones. É, no fundo, o mesmo que elogiar a evolução tecnológica e gabar quem ainda constrói carros à carvão, ou até defender a democracia mas aplaudir os méritos da ditadura. A história está lá para ser admirada pela forma como se foi desenvolvendo em função da informação de que se dispunha até então, e é uma ferramenta fantástica para nos guiar a não cometer os erros que lá vão. Porque no futebol, como na vida, há pontos positivos e negativos a retirar de tudo. Mas a evolução deu-se sempre que se percebeu o que é que tem mais pontos positivos do que negativos, e se escolheu trilhar esses caminhos fundamentalmente bons.
Como adepto do progresso e da democracia, caríssimos, penso que o pior amigo do avanço e da evolução é a inoperância e a reflexão inerte. Daí a falência das democracias actuais. É responsabilidade nossa, porque nos escondemos da nossa obrigação de analisar e criticar o conteúdo que nos é oferecido. Falta-nos análise crítica por termos ficado cómodos com o que temos e com as respostas que nos dão. Deixo então, democraticamente, que seja cada um de vós a decidir se este texto é do campo da análise e do amor pelo jogo, ou se pertence à crítica que existe apenas e só na minha cabeça."

Dos segredos do City aos revolucionários do futebol brasileiro

"Do azul do céu de Manchester, ao negro chumbo que tinge os dias no Brasil. Da novidade trazida pela Amazon sobre os segredos do futebol moderno a duas abordagens históricas sobre dois exemplos de activismo no futebol.
Começamos por All or Nothing, série documental produzida pela Amazon, que nos revela os segredos da superequipa do Manchester City.
E deste sucesso mundial, lançado há um par de meses, seguimos para baixo do equador para, através da música e da literatura recordar Afonsinho e Sócrates.
Estes dois rebeldes dentro de campo têm muito em comum, do perfil revolucionário à carreira na medicina. Por estes dias, o exemplo de ambos, de resistência em campo à ditadura militar, serve de contraponto para a actualidade, dominada nos últimos dias pela eleição de um inimigo da democracia para a presidência do Brasil.
Vale a pena ver, ouvir e ler.
Ver: «All Or Nothing Manchester City»
Género: série de documentário
Produção: Amazon
Realizador: Manuel Huerga
País: Reino Unido
Duração: 50 minutos (x8 episódios)

Bernardo Silva pede o FC Porto no sorteio da Liga dos Campeões: a primeira cena de All or Nothing (Tudo ou nada) parece destinada a captar a atenção do público português.
O documentário de oito episódios produzido pela Amazon abre-nos as portas do Ethiad Campus, do estádio ao magnífico centro de treinos, e permite-nos espreitar os segredos da milionária equipa do Manchester City e acompanhar os sucessos e as desilusões da temporada 2017/18, ao longo de nove meses.
Das palestras de Pep Guardiola às entrevistas exclusivas com os protagonistas, dos treinos até aos bastidores dos jogos: tudo pode ser visto desde o sofá de nossa casa… e com a narração de Sir Ben Kingsley.

Descobrimos desde os métodos mais inovadores para a recuperação de lesões à forma como o plantel tenta ultrapassar uma traumatizante eliminação num jogo de paintball ou até como o tema Wonderwall, do ilustre fã dos citizens Noel Gallagher, se torna praticamente num hino da equipa.
O documentário (que pode ver aqui), estreado a 17 de Agosto e disponível em mais de 200 países, conquistou a crítica com o modelo behind the scenes que a Amazon privilegiou nas séries All or Nothing também com os gigantes do futebol americano Dallas Cowboys ou os All Blacks, selecção de râguebi da Nova Zelândia – também estreadas este ano.

Pelo acesso quase livre aos segredos do City a gigante norte-americana terá pago mais de 11 milhões de euros ao City, num acordo bilateral que agastou a Sky Sports detentora dos direitos de transmissão da Premier League.

Ouvir: «Meio de Campo»
Autor: Gilberto Gil
Intérpretes: Gilberto Gil / Elis Regina
Género: MPB
País: Brasil
Duração: 4:44 minutos

Médico, futebolista, revolucionário. Podia ser Sócrates, mas é Afonso Celso Reis. Aliás, Afonsinho. O «Prezado Amigo» imortalizado nos versos de Gilberto Gil em «Meio de Campo», tema de abertura do álbum a cidade do Salvador editado em 1973.

Versão ao vivo – por Gilberto Gil
A canção, que por estes dias de convulsão no Brasil merece ser recuperada, é uma homenagem ao médio do Botafogo que, em plena ditadura militar brasileira, lutou contra o poder absoluto das direcções dos clubes, tornando-se no primeiro jogador a ser dono do seu passe.
Se tinha barba e era cabeludo como um revolucionário, Afonsinho havia de encarnar esse papel no futebol brasileiro, ao tornar-se, em 1971, numa espécie de Bosman antes do tempo – a Lei Pelé, que viria a regulamentar a situação no Brasil, só surgiria 27 anos depois.

Versão em estúdio – Elis Regina
A história de Afonsinho, que além de futebolista era estudante de medicina e ativista político com simpatias comunistas, viria a servir de argumento para o documentário «Passe Livre», de 1974. Tal como para a canção de Gilberto Gil, mais tarde interpretada também pela inconfundível voz de Elis Regina.
«Prezado amigo Afonsinho
Eu continuo aqui mesmo
Aperfeiçoando o imperfeito
Dando um tempo, dando um jeito
Desprezando a perfeição
Que a perfeição é uma meta
Defendida pelo goleiro
Que joga na Selecção
E eu não sou Pelé nem nada
Se muito for, eu sou um Tostão
Fazer um gol nessa partida não é fácil, meu irmão…»
Ler: «Doctor Sócrates»
Autor: Andrew Dowie
Editora: Simon & Schuster
Género: Biografia
País: Reino Unido
Páginas: 400

De um rebelde do futebol brasileiro para outro. Se Afonsinho ganhou a batalha por ser dono do seu passe, nos anos 70, Sócrates tornou-se, na década seguinte, num símbolo social da oposição democrática brasileira ao regime militar.
Ídolo do Corinthians, referência da selecção brasileira de 1982, o «Magrão», que também viria a enveredar pela medicina depois de pendurar as chuteiras, tornou-se no ideal do futebolista-activista e o rosto mais mediático da «Democracia Corinthiana», movimento que fazia depender do voto de cada elemento (do director ao roupeiro) cada decisão no mais popular clube paulista.
A biografia de Andrew Dowie, britânico radicado no Brasil, que foi lançada em Março de 2017 e reeditada já este ano, retrata com detalhe a dimensão histórica do «Doutor», que faleceu em 2011, mas também o lado boémio e pessoal.
A obra de 400 páginas escrita em inglês não foi editada em Portugal, mas pode ser adquirida online por um preço entre os 10 e os 20 euros – conforme seja versão em capa mole ou capa dura.
«Os jogadores actuais são o contrário de Sócrates: ganham muito mais e importam-se muito menos com o sítio de onde vieram», constatou o autor, no que não deixa de ser um convite irresistível para ler a obra.
Sócrates, por sua vez, descrevia-se de forma simples: «Eu bebo, eu fumo, eu penso.»"