domingo, 9 de setembro de 2018

Um tema eterno: a justiça

"O Benfica no seu todo, tem de, em cada competição e em cada jogo, ignorar o que se passa no 'campus' da justiça

1. O Benfica vive momentos complexos em razão da acusação do conhecido caso e-toupeira. Por razões deontológicas não me vou pronunciar acerca da metodologia do inquérito, de certas premissas - e considerações! - da acusação e da ponderação da pena acessória, lateralmente chamada à colação. O que sei é que, até agora e por ora, foi o tempo exclusivo do Ministério Público. Agora, a partir desta acusação, é o tempo do contraditório, é o tempo em que cada acusado se defende em profundidade e tudo fará para descredibilizar o que se leu na acusação. Agora é o tempo das defesas, com argúcia e minúcia, esgrimirem os argumentos, suscitarem as perplexidades ou afectarem as lógicas imanentes à acusação. Agora é o tempo em que perante a afectação da credibilidade do Benfica importa suscitar, perturbando e muito, os indícios, ditos suficientes e relevantes, do Ministério Público. Pouco importa chamar à colação outros processos, outros momentos e outras circunstâncias. Que, decerto, importa não esquecer e, acima de tudo, não ignorar. Mas também importa entender que vivemos tempos complexos na Justiça no seu todo e no Ministério Público em particular.
Basta acompanharmos a disputa - cheia de subtilezas e com poucos silêncios - ou não - do mandato da Senhora Procuradora da República. Por mim digo que a conheço desde os quinze anos. Estudámos juntos em Viseu e na Faculdade de Direito de Lisboa. E nunca deixámos de ser Amigos. Cumprindo cada um, em instantes diferentes, as nossas responsabilidades profissionais e sabendo sempre não misturar amizade com exercício legítimo e vinculante das nossas actividades. Sem que nenhum acto ou facto perturbasse uma relação forjada no tempo. Mesmo que constatação, consoante os procedimentos, ou uma acção musculada ou até uma bem necessária defesa musculada. E, acreditem, que, pelo menos acção musculada houve e bem a senti! No corpo e na alma. Na pele e até no coração. Sabendo, nesse momento, em quem era amigo e quem se dizia, apenas, e por conveniência, amigo...
A Benfica SAD, agora, tem de se concentrar, estratégica e tacticamente, na sua defesa. Na sua defesa neste concreto processo. Não ignorando, desde já, que vão surgir vários assistentes e não se iludindo quanto ao âmbito de defesa do conjunto dos acusados. Mas ao lado da justiça, do seu tempo concreto e das suas especificidades e, até, dos seus egos - que os há e são muitos - o Benfica, o Benfica no seu todo, tem de, em cada competição e em cada jogo, ignorar o que se passa no campus de justiça, e concentrar-se, com todas as forças e todo o múltiplo talento desportivo, no que importa conquistar no campo relvado. Seja na Liga Nos, seja na Liga dos Campeões, seja na Taça da Liga, seja na Taça de Portugal. E ao longo destes Setembro e Outubro tudo arranca em termos desportivos. E num campus e no outro campo cada jogo é, afinal, uma final. Em que importa tenacidade e sagacidade, unidade e solidariedade, sensibilidade e responsabilidade, fidelidade e personalidade. O que importa, aqui, é que não seja verdadeira a frase de Jean Rotrou: «A justiça é muitas vezes a máscara da irritação»! Mas nunca esqueço - a partir de uma lição com o título deste artigo do saudoso Professor Adelino da Palma Carlos - a «resposta altiva do moleiro prussiano que, ameaçado por Frederico II da expropriação do seu moinho lhe respondeu com frase celébre: 'Ainda há juízes em Berlim'». Por mim digo, aqui, que ainda há juízes em Sintra, em Viseu, em Cascais e... em Lisboa! Sim em Lisboa!

2. Amanhã, no Estádio da Luz, arranca, oficialmente para nós, a nova Liga das Nações. Defrontamos a sempre imprevisível, mar arguta, selecção italiana e sabendo que empatou com a Polónia no arranque desta nova competição. A disputa será entre estas três selecções no denominado grupo A3. Na passada quinta feira empatámos com a Croácia e Fernando Santos teve a ousadia, bem calculada, de renovar a Selecção. E merece um aplauso por tal opção. Pepe, o capitão, chegou aos 100 golos e marcou o golo do empate. Mas gostei de Bernardo Silva e Rúben Dias, de rever Bruma e de André Silva mais João Cancelo, Rúben Neves e Pizzi. E pressenti um renovado William (a 8?), o entusiasmo de Gelson, Bruno Fernandes, Mário Rui e Rony Lopes e, ainda, um sereno Rui Patrício. E também gostei das estreias de Gedson Fernandes e Sérgio Oliveira e do regresso do Renato Sanches. E gostei muito que o Estádio do Algarve tivesse saudado, efusivamente, Modric. Grande lição de desportivismo que ecoou nas bancadas de um Estádio que bem merecia mais utilização. Mesmo mais!


3. Temos de realçar a militância leonina. Que sinal de vida, de vitalidade, de força. Foi uma manifestação impressionante. Ontem o que se viu foi um singular marco de força associativa. Foi uma votação significativa e elucidativa. O novo Presidente do Sporting tem uma imensa responsabilidade. Sabe que tem de ser, apesar das sérias dificuldades, o Presidente destes milhares de mulheres - como a Isabel cheia de alma e de ânimo! - e homens - como o João e o Alexandre - que sentem o seu clube e que mostraram, num marco histórico, o seu fervor e a sua dedicação, a sua devoção e as suas vontades. Múltiplas e diferenciadas. Sabendo que havia seis candidatos e sabendo, desde Maquiavel, que «onde há uma vontade forte não pode haver grandes dificuldades». Mas sendo certo que haverá algumas... nos tempos mais próximos! De diferentes níveis!


4. A UEFA diz-nos que está a avaliar a introdução do VAR nos quartos de final deste edição da Liga dos Campeões. É também aqui uma revolução. Talvez possível depois da saída de Pierluigi Collina da liderança dos árbitros na organização europeia do futebol. E o que é interessante é que Arturo Vidal, sempre polémico, não deixou de assumir que «com o VAR o Real Madrid teria menos duas Ligas dos Campeões»! Contas que nenhuma justiça faz. Só a nossa reconstrução da história. Já que ela, a história, justifica tudo quando se quer."

Fernando Seara, in A Bola

Cervi, uma das jóias da renovação argentina

"A selecção argentina, por agora e de forma interina dirigida por Lionel Scaloni, jogou, ontem, o primeiro particular depois do Mundial da Rússia. Quase sem esforço, venceu a Guatemala por 3-0, em Los Angeles, Estados Unidos, num jogo que serviu, mais do que nada, para ver muitas caras novas que formam parte de uma necessária renovação.
Uma delas foi o jogador do Benfica Franco Cervi, que disputou os últimos 25 minutos do encontro, depois de substituir Ezequiel Palacios. Como outros, debutou na selecção com a esperança de ter chegado para ficar definitivamente. Dentro de um contexto de um jogo que estava liquidado desde o primeiro tempo e frente a um rival que em momento algum representou uma força adversária importante para os jogadores de Scaloni, o canhoto que nasceu no Rosário Central entrou com muita vontade, incisivo como sempre para encarar os adversários e sentiu-se mais cómodo quando se juntou a Giovani Lo Celso (autor de um golaço para o parcial 2-0), com quem jogou no clube argentino entre 2015 e 2016. Cervi, claro está, só foi capaz de demonstrar umas pinceladas do talento dele, que lhe valeu a transferência para Portugal e que, agora, o conduziu à selecção argentina. Agora chegou o momento de consolidar-se e de conseguir manter-se de celeste e branco, entre enorme quantidade de futebolistas que terão, também, oportunidades como a dele, porque a hora é de experiências, para se formar a equipa seguinte à da geração de Messi, Aguero, Di Maria, Higuaín e tantos outros, de quem não se sabe o que farão.
A pergunta é saber se Chuky tem o que precisa para substituir os históricos, que até podem ter feito apenas um período de descanso. O talento está lá, as condições também e a concorrência, sim, é muita. Está nas mãos do extremo das águias poder continuar na equipa, converter-se num habitué e, ainda mais, tornar-se importante para Scaloni ou para o treinador que chegue em 2019."

Aquiles Cadirola, in A Bola

CAS 'Ad Hoc'

"O Tribunal Arbitral do Desporto de Lausanne (CAS) pode criar divisões Ad Hoc para os Jogos Olímpicos, mas também para outros eventos, tais como os Jogos Asiáticos (Asian Games), que decorreram, este ano, nas cidades indonésias de Jakarta e Palembang entre 18 de Agosto e 2 de Setembro.
No caso de um pedido de arbitragem contra uma decisão preferida pelo COI, um NOC, uma Federação Internacional ou um Comité Organizador dos Jogos, o requerente deve, antes de apresentar tal pedido, ter esgotado todos os recursos internos disponíveis a menos que o tempo necessário para esgotar os recursos internos torne o recurso à divisão Ad Hoc do CAS ineficaz.
Durante o período de duração do evento, as divisões Ad Hoc solucionam, por recurso à arbitragem, determinados litígios que caem sob a sua jurisdição. Apesar de garantir todos os procedimentos e princípios inerentes a um processo dito «normal», os processos julgados pelas divisões Ad Hoc são extremamente céleres. Com efeito, o painel de árbitros decidirá no prazo de 24 horas após a apresentação do pedido. Em casos excepcionais, este prazo pode ser estendido pelo Presidente da Divisão Ad Hoc se as circunstâncias o exigirem.
Levando em consideração todas as circunstâncias do caso, o painel poderá fazer uma sentença final ou submeter a disputa à arbitragem pelo CAS. O Painel também pode decidir só uma parte do litígio e encaminhar outra para o procedimento regular junto do CAS.

As instalações e serviços das Divisões Ad Hoc, incluíndo os encargos com os árbitros, são gratuitos. No entanto, as partes suportarão as suas próprias despesas de representação legal, peritos, testemunhas e intérpretes."


Marta Vieira da Cruz, in A Bola

O falso jornalismo

"Foi a minha mãe que me ensinou. As coisas são verdade ou são mentira. Não há meias verdades nem mentiras pequeninas. Hoje é domingo, e é domingo desde o primeiro segundo da meia-noite até ao último das 23.59. Antes foi sábado, amanhã é segunda. Factos são coisas assim. Indesmentíveis.
Mas a minha mãe também me ensinou que nem tudo são factos. Há opiniões. Mas atenção, disse-me, as opiniões não se tornam verdadeiras apenas porque são ditas; e como a mentira é o género mais fácil, comum e perigoso de opinião, é preciso estar precavido contra elas. Mais tarde, percebi que é por isto que, ao longo da História, as sociedades evoluídas ensinam os seus indivíduos, desde a mais tenra idade, a considerar que a verdade é boa e a mentira má; e que este devir histórico, consubstanciado nas leis, civis e religiosas, é o cimento fundacional da boa convivência humana. 
Também aprendi que os guardiães da verdade são cada indivíduo em particular, mas, por causa dos conflitos resultantes, quer da escassez de recursos quer da cupidez, os homens precisaram de proteger a verdade em códigos mais fortes que a ética ou a moral. Inventaram as leis e mais tarde, as democracias inventaram a liberdade de expressão.
Seria neste estado que a nossa sociedade devia estar. Onde a mentira pudesse ser distinguida com clareza da verdade. Onde os que mentem fossem punidos. Mas ao contrário do que seria de esperar, quanto maior é o acesso à informação mais terreno fértil há para as mentiras.
Nos dias de hoje até parece natural alguém mentir, ser apanhado e mesmo assim continuar a insistir na sua mentira, mesmo que já desmentida.
Num mundo atraído pela novidade, onde a Internet amplifica tudo, e as "fake news" se disseminam 70% mais rápido, é urgente que os jornalistas sejam campeões e não meras peças de xadrez. Porque já não lhes cabe apenas dizer a verdade, cabe-lhes, mais que nunca, proteger-nos da mentira.
Cada notícia não verificada e depois desmentida não é só um erro jornalístico ou um atropelo ao código deontológico. É mais um passo para a banalização da verdade, e a sua utilização para benefício de campanhas políticas, de saúde, económicas, ou de qualquer outra natureza, é causadora de danos irreparáveis. Se assim continuarmos, não são só as notícias que são falsas. O jornalismo também é."


PS: Não deixa de ser irónico, um artigo deste teor ser publicado neste pasquim...!!!

Crer na possibilidade de transformação

"D. José Tolentino Mendonça, arcebispo da Igreja Católica, director (há duas semanas tão-só) da Biblioteca do Vaticano é, hoje, para mim, um dos maiores escritores e poetas portugueses da hora que passa. Ao chegar agora a Roma, como adjunto (muito especial) do Papa Francisco já tem por si a justa auréola de uma das mais das mais destacadas figuras do mundo intelectual, em língua portuguesa. Homem de rara envergadura literária, teológica e moral, em todos os seus livros eu procuro colher, na sua finura em dilucidar situações e na sua profunda religiosidade, o sentido que dá sentido à vida. No livro da sua autoria, O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas (Quetzal, Lisboa, 2017) encontrei este texto (que assim titulou: “Crer na possibilidade de transformação”) e que reproduzo aqui integralmente: “Todos precisamos de perdão. O perdão instala um corte positivo, interrompe a baba inútil da tristeza, esta maceração que nos faz infelizes e nos leva a alagar os outros de infelicidade. Tão facilmente ficamos atolados em becos cegos, em círculos sem saída, reféns de uma amargura que cada vez vai sendo mais pesada e contamina inexoravelmente a vida. O ato de perdão é uma declaração unilateral de esperança. O perdão não é um acordo. Se me quedo à espera de que aquele que me oprimiu venha ao meu encontro arrancar-me da mágoa, o mais provável é que nada se altere. O perdão é este gesto unilateral que recusa dar voz à vingança e crê que por detrás daquele que me feriu há ainda um ser humano vulnerável, mas capaz de mudar. Perdoar é crer na possibilidade de transformação, a começar pela minha. Muitas vezes aproveitamos a dor, para nos instalarmos nela. Preferimos ficar a esgaravatar na ferida, a comer diariamente o pão velho da própria maldade, em vez de termos sede de beleza, desejo de outra coisa”.
E o texto assim finda, como manhã virgem, plantada de um complexo maravilhoso de fidelidade inata aos mais belos valores por que vale a pena viver: “As ofensas recebidas revelam-nos um duro e irónico retrato de nós. Ora, para perdoar, é preciso ter uma furiosa e paciente sede do que (ainda) não há. O perdão começa por ser uma luzinha. E é bom insistir e esperar. O Sol não brota de repente. Essa demora é uma condição da sua verdade” (p. 121). A partir do dia 5 de Setembro de 2018, a notícia tem atroado, como uma bomba, no universo do futebol português: A SAD do Benfica e o director do departamento jurídico das “águias”, Paulo Gonçalves, foram formalmente acusados de vários crimes, no âmbito do processo e-toupeira. O Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa concluiu a fase de inquérito e, além da SAD e do seu responsável jurídico, também dois funcionários judiciais foram acusados (um deles exerce funções como observador de arbitragem). E o jornal A Bola (2018/9/5) amplia a notícia: “A comprovarem-se os factos, o Benfica arrisca, em caso de condenação judicial, a uma pena acessória, que pode suspender o clube da participação, em provas desportivas profissionais, por um período entre seis meses e três anos. A administração da SAD benfiquista reagiu imediatamente ao comunicado da Procuradoria-Geral ao libelo acusatório da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, considerando, neste caso, a acusação do Ministério Público “absurda e injustificada”. A acusação deduzida pelo Ministério Público é, para o Benfica, de uma confrangedora falta de rigor. Ontem mesmo, nova notícia lamentável e de uma dureza esmagadora: O Moreirense foi condenado pelo Tribunal de Santa Maria da Feira à suspensão de participação, em competições desportivas, durante um ano, na sequência de um processo de corrupção desportiva, aberto pelo Ministério Público, a 24 de Maio de 2013. O Clube de Moreira de Cónegos foi também condenado a uma pena pecuniária de 112 500 euros, por 4 crimes de corrupção, num processo que contempla ainda mais cinco arguidos… A reflexão sobre o lugar do Desporto, na vida pública, parece-nos oportuníssima, numa época de crise, tanto nas instituições, como nas pessoas e nos valores. E em que assomam estilos populistas de fazer política, numa política, acrescente-se, pouco orientada ao bem comum. No livro, acima citado, do José Tolentino Mendonça, ressalta um texto (admirável texto!) sobre a crise: “Atravessar etapas de crise não é necessariamente mau: permite-nos um olhar a que ainda não havíamos chegado, permite-nos escutar não apenas a vida aparente, mas também a insatisfação, a sede de verdade e de sentido, e passar a assumir uma condição mais activa. Talvez precisemos de descobrir que, no decurso do nosso caminho, os grandes ciclos de interrogação, a intensificação da procura, os tempos de impasse, as experiências de crise podem representar verdadeiras oportunidades. Quanto mais conscientes dos nossos entraves, limites e contradições, mas também das nossas forças e capacidades, tanto mais poderemos investir criativamente no sentido da nossa identidade. Isso implica uma mudança de ponto de vista sobre nós próprios e o mundo, e advém daí naturalmente uma instabilidade face a modelos que tínhamos por adquiridos. Os partos indolores são uma mistificação. Quem tem de nascer prepare-se para esbracejar. Há um momento em que aprendemos que vale mais prestar atenção àquilo que em nós está a germinar, num lento e invisível e (inaudível) processo de gestação, do que àquilo que perdemos” (p. 151). O futebol português está em crise: assim desabafam os adeptos dos principais clubes portugueses, num lhano tom coloquial. Mas, segundo o José Tolentino Mendonça, se bem o li, é preciso passar pela melancolia da noite, para que o Sol volte a nascer; é preciso passar pela crise, ou até por um simples sorriso crepuscular para que, breve tempo depois, em tudo ouçamos a mensagem augural de uma grande Esperança.
Todos conhecem A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Kuhn. Também este epistemólogo perspectiva um novo paradigma, após um período de crise do paradigma antigo. E diz mais – diz que há “incomensurabilidade” entre o paradigma antigo e o novo paradigma. Folheemos, de novo, A Estrutura das Revoluções Científicas (um livro que li de fio a pavio): “A passagem de um paradigma em estado de crise a um novo paradigma donde possa nascer uma nova tradição de ciência normal está longe de ser um processo cumulativo, realizável a partir de variáveis ou de extensões do paradigma antigo. É antes uma reconstrução de todo um novo sector sobre novos fundamentos, reconstrução que modifica certas generalizações teóricas (…) e também alguns métodos e aplicações do paradigma”. Também no âmbito do conhecimento científico a crise é a antecâmara de qualquer transformação situada, encarnada, intencional, visando o nascimento de um mundo de profundo significado antropológico. Enfim, para podermos cantar os aleluias da Ressurreição, necessário se torna viver, antes, as horas difíceis de Sexta-Feira Santa. A vitória do Dr. Frederico Varandas, o candidato vencedor das recentes eleições no Sporting Clube de Portugal, não foi precedida, como o sublinhou Jaime Marta Soares, por uma das páginas mais negras da história deste Clube? A propósito do Dr. Frederico Varandas, tenho presentes as palavras do Jorge Jesus: “É um médico de extraordinário valor e um sportinguista de grande amor ao seu Clube”. E acrescentava: “Com ele, o Sporting encontrou o presidente capaz de liderar as vitórias por que esperam todos os sportinguistas”. E José Tolentino Mendonça poderá reinvocar-se, neste momento: “por detrás de tudo o que é grande, belo e verdadeiro está necessariamente o sacrifício, como disponibilidade para assumir o custo do nosso amor” (op. cit., p. 108)."

Porno-Olimpismo: à mesa do orçamento

"Em consequência dos ofuscantes espectáculos de luzes e de cores e dos foguetórios proporcionados pelos grandes eventos desportivos, cada vez mais frequentados por uma “beautiful people” de pacotilha à procura de exposição mediática, a generalidade dos dirigentes desportivos, salvaguardando-se sempre as devidas excepções, à falta de mundo, passaram a orientar a sua ação mais preocupados com o “dress code” das grandes cerimónias do croquete do que, propriamente, com as condições de participação competitiva dos atletas, com a organização do alto rendimento ou com o desenvolvimento da prática desportiva nos respectivos países.
Em consequência, o desporto está a ser reduzido ao grau zero da condição humana quer dizer, está a ser transformado numa práxis de carácter reducionista que, ao serviço do vil metal simbolizado pelas medalhas olímpicas, nega à prática desportiva a assunção de valores espirituais e transcendentes, condenando o ser humano que é o atleta a centrar-se, em regime de exclusividade, na estética do corpo e nas suas performances às quais atribui o primado que conduz a sua vida ao serviço da “beautiful people” que passou a tirar partido dos espectáculos desportivos e a conduzir o desporto para a cloaca da história. Nestas circunstâncias, o desporto não pode ser deixado em roda livre. O Estado tem de intervir sobretudo a montante dos sistemas desportivos no sentido de lhes imprimir um destino que, verdadeiramente, tenha a ver com os interesses da generalidade das populações e dos países.
O desenvolvimento do desporto enquanto promotor de educação e de cultura ao serviço do desenvolvimento humano, antes de ter um sentido quantitativo traduzido nas medalhas olímpicas, tem de ter um sentido axiológico que se traduz nos princípios e nos valores que o devem orientar. E foi por isso que, nos primórdios do Movimento Olímpico (MO), o Altius do frade Didon, da máxima olímpica que Pierre de Coubertin adoptou, vinha em último lugar: Citius, Fortius, Altius. Porque, a prática de cada um e de todos era para ser vivida em busca de superação e de transcendência pessoal e social. Como refere Manuel Sérgio, “o ser humano é uma contínua passagem do instinto à inteligência, à liberdade e à cultura”. (A Bola on line, 2018-09-02) e não o contrário como, agora, está a acontecer num certo modelo de Olimpismo em que, na ausência de cultura, perde-se liberdade, anula-se a inteligência e, em consequência, reduz-se as possibilidades dos atletas, a competência dos treinadores e a missão dos dirigentes, à expressão mais primária do instinto de sobrevivência. E, assim, o desenvolvimento do desporto é transformado no mais desconchavado darwinismo social: Emocional na sua práxis; Tribalista na sua organização; Patrioteiro na sua missão evangelizadora. 
Pierre de Coubertin, desde a primeira hora, recusou que o MO pudesse evoluir neste sentido que não lhe confere qualquer dignidade institucional. Desde logo porque, o Olimpismo subjugado ao rendimento, à medida, aos recordes e aos espectáculos desportivos, à revelia da prática desportiva de base que garante a dialética do processo de desenvolvimento, transforma: O Estádio Grego num Circo Romano; Os dirigentes desportivos em meros lanistas; Os políticos em tristes “entertainers”; Os atletas em perfeitos mercenários; A população, tal qual rebanho, em simples consumidora acéfala de espectáculos desportivos. Sempre que tal acontece, o MO assume uma dimensão antidemocrática. Na extinta República Democrática da Alemanha, aquando das manifestações em defesa da liberdade e da democracia, exibiam-se cartazes onde se podia ler: “Abaixo os privilégios dos artistas e dos desportistas”. Porquê? Porque os dirigentes políticos e desportivos reduziram o conceito de Olimpismo às medalhas olímpicas que, depois, se veio a saber “estavam dopadas”.
Ora bem, Pierre de Coubertin, no espírito olímpico do Citius, Altius, Fortius, expressou bem a necessidade de enquadrar as performances dos atletas na realidade da prática desportiva de base dos respectivos países. Porque, o desporto deve ser um espaço de valores ético-morais que não podem desvanecer-se na voragem do neo-mercantilismo como expressão última do capitalismo selvagem que se limita a avaliar o desporto pelos resultados nas competições internacionais completamente desinseridos das políticas públicas de generalização da prática desportiva. A última coisa que se pode admitir num país democrático de economia liberal é haver atletas a ganharem lugares de pódio nos Jogos Olímpicos e em Campeonatos do Mundo enquanto o já de si reduzido número de praticantes há muito que estagnou ou entrou mesmo em regressão.
O amoralismo populista de muitos Comités Olímpicos Nacionais (CONs), com o envolvimento das próprias tutelas políticas, nada tem a ver com a dignidade dos países, com os valores do desporto ou os interesses dos cidadãos. Que os partidos, na sua ânsia de poder, se sujeitem a isso, nos tempos de demagogia populista que se vivem, é triste mas não é para admirar. Pelo contrário, é um atentado aos princípios e aos valores do Olimpismo e uma vergonha institucional que os CONs, à semelhança daquilo que se passava nas democracias populares, se sujeitem à humilhação de viverem tutelados sob os interesses da oligarquia política dos respectivos países. Esta situação tem a ver com uma certa eugenia política e social que, em matéria de desporto, tomou conta do ideário da generalidade dos partidos políticos sejam eles de esquerda ou de direita e está, por ganância económica, a ser assumida pelos próprios CONs.
Num artigo intitulado “L’Eugénie”, publicado na “Revue Olympique” de Novembro de 1912, Pierre de Coubertin condenou a eugenia política e social, decorrente das “inefáveis divagações” do antropólogo francês Georges Vacher de Lapouge (1854-1936) que pretendia substituir a conhecida fórmula da revolução francesa “liberdade, igualdade, e fraternidade” por “determinismo, desigualdade, e selecção”. O problema é que, actualmente, em colaboração com os respectivos governos, muitos CONs estão, precisamente, a adoptar a fórmula eugénica de Vacher de Lapouage para determinarem as suas políticas desportivas que se sustentam (1º) Na ilusão do determinismo científico dos modelos de treino que, sem qualquer pudor, prometem a conquista de medalhas olímpicas; (2º) Na antidemocrática desigualdade dos cidadãos no acesso à prática desportiva; (3º) Na estuporada selecção prematura daqueles que mais rendem condenando a grande maioria deles a um futuro sem futuro nenhum. Em consequência, países há que acabam por ficar sem medalhas, sem praticantes desportivos e com um sem número de desintegrados sociais expurgados da prática desportiva porque deixaram de atingir o padrão olímpico exigido. Ora, não foi para isto que Pierre de Coubertin fez renascer nos tempos actuais os Jogos Olímpicos da antiguidade grega.
Perante este estado de coisas, a sociedade assiste impotente à degradação dos valores do desporto protagonizada por uma oligarquia desportiva que, se ao tempo da Guerra Fria, pontuava sobretudo nos países socialistas e nas democracias populares, agora, pontua nas democracias liberais de economia de mercado a partir de governos ditos socialista, sociais-democratas e democratas cristãos que passaram a olhar para o desporto, não como um instrumento de políticas públicas dirigidas à qualidade de vida da generalidade dos cidadãos, sobretudo dos mais desfavorecidos, mas como um instrumento da afirmação do próprio poder político-partidário à custa do dinheiro dos contribuintes. E quando alguns dirigentes políticos e desportivos, na maior das ignorâncias, pretendem em termos de políticas públicas, determinar o desporto como um desígnio nacional só nos fazem lembrar os tempos em que o Turner (movimento desportivo chauvinista alemão) foi colocado ao serviço do Movimento Nazi.
Pactuar com políticas públicas desprovidas de princípios de ordem democrática e social significa, apenas, faltar ao inalienável dever de considerar o desporto como um instrumento de desenvolvimento humano que, os dirigentes do MO, sob sua honra, se comprometeram a respeitar. Infelizmente, agora, salvo sempre as devidas excepções, os dirigentes desportivos, subservientemente, numa espécie de “porno-olimpismo”, aceitam ser instrumentos do poder político desde que lhes garantam um lugar sentado à mesa do orçamento."