terça-feira, 29 de maio de 2018
Ninguém muda de pelo como o Real de Zidane
"Zinedine Zidane converteu o Real Madrid numa incrível máquina de ganhar, o que não deixa de ser desconcertante num treinador que (ainda) não inventa tácticas e que, mais do que uma ideia de jogo, parece ter a ardileza necessária para gerir e rentabilizar como ninguém um lote único de jogadores com qualidade hiperbólica. Foi com o seu eterno sorriso e com aquele discurso que tem tanto de aveludado como desarmante que o técnico francês ganhou nove títulos em apenas dois anos e meio, quatro deles esta época (Champions, Supertaça Europeia, Supertaça Espanhola e Mundial de Clubes). A tendência dos últimos 50 anos diz-nos que a esmagadora maioria dos grandes treinadores conseguiram os seus melhores êxitos nas etapas iniciais das suas carreiras. Mas o que o Zidane tem vindo a conseguir vai muito para além disso. Porque não é normal alguém que só tinha tido uma breve experiência no Castilha antes de ser chamado, em Janeiro de 2016, para colar os cacos deixados por Benítez se tenha transformado num glutão capaz de bater todos os recordes de Ferguson, Guardiola, Mourinho, Del Bosque, Heynckes, Hitzfelfd ou Sacchi. Esta equipa venceu quatro Champions em cinco anos e, no historial da principal prova do calendário mundial de clubes, só perde para o Real de Di Stefano, Gento e Puskas, que dominaram nos primeiros cinco anos da competição. É verdade que, em Kiev, o Real sofreu a bom sofrer na primeira meia hora e, provavelmente, a história do jogo teria sido bem diversa se Sérgio Ramos não tivesse cometido uma falta (não assinalada) que nem no judo é permitida, por ser demasiado perigosa. E se a trágica lesão de Salah teve o condão de transtornar completamente o Liverpool (sem a bússola do egípcio que se gosta de se vestir de Messi, apenas Mané soube encontrar o Norte), os pés de Bale e as misérias e as mãos de manteiga de Karius (um guarda-redes há muito propenso ao acidente) fizeram o resto, como se a genialidade e o fado bom estivessem todo de um lado e a torpeza e a desdita do outro.
A verdade é que, nos últimos 11 anos, o Real Madrid ganhou quatro Champions, o dobro dos campeonatos espanhóis conquistados, o que tem permitido ao Barcelona encurtar substancialmente a desvantagem internamente (já soma 25 títulos, contra 33 do Real). A Liga dos Campeões tem-se tornado, cada vez mais, o território predilecto dos madridistas, como se exercessem um direito natural. De facto, depois de ter falhado estrondosamente a nível interno, perdendo o campeonato e a Taça do Rei logo em Janeiro, o Real voltou a ficar mais forte quando activou o modus Champions e lá somou a terceira "orelhona" consecutiva, a quarta nos últimos cinco anos. Acaba assim em beleza uma época em que teve provavelmente os maiores momentos de crise de jogo e de resultados sob o comando de Zidane, também evidentes na Champions, designadamente quando terminou a fase de grupos atrás do Tottenham (com quem empatou no Bernabéu e claudicou em Wembley) ou quando teve de beneficiar das ajudas arbitrais para impedir a Juventus de conseguir uma remontada espectacular em Madrid. O Real Madrid é uma equipa com uma qualidade individual imbatível, mas, do ponto de vista colectivo, consegue concentrar todas as suas versões durante os 90 minutos de um jogo. Consegue jogar bem, mal e regular, passando num estalar de dedos de um fase em que é competitivo e encantador para outra em que é permissivo e vulnerável. Tem uma capacidade inaudita para mudar de pele e para dar sinais descontínuos, bem visíveis na angustiante eliminatória com o Bayern de Munique – e essa descontinuidade nota-se na forma como venceu fora a Juventus e o Bayern e empatou na casa do Barcelona e do Atlético de Madrid e, por outro lado, não conseguiu ganhar a nenhum dos seis primeiros da liga espanhola no Bernabéu, onde também não venceu a Juve e o Bayern.
O Real era favorito em Kiev, mas menos do que na final de há um ano, quando terminou com sucesso uma época lendária. Do outro lado estava o futebol selvagem e cheio de adrenalina de um Liverpool que num dia bom pode ganhar (ou até golear qualquer um). Mas que ainda não é uma equipa suficientemente fiável e confiável, como voltou a ficar evidente no sábado. O Real também não é, mas continua a saber tirar partido de um treinador que sabe dar carinho a craques mimados e que foge dos holofotes e reparte os méritos – mal o jogo acabou em Kiev, e enquanto os suplentes corriam já para o relvado, o francês virou-se e caminhou para o banco para ir abraçar os seus ajudantes. Nunca veste o traje de craque – ele que foi um dos maiores de sempre.
CR7 foi inábil, mas tem razão
Mais do que o rótulo de narcisista e da propensão para o "divinismo infantil", de que também falou a imprensa espanhola, Ronaldo comprovou que é bem melhor a gerir a pressão nos relvados do que a governar o tempo e o modo das suas palavras. Insinuar que ia deixar o Real Madrid em plena "fiesta" de celebração do reinado europeu só serviu para dar razão a quem acha que usou o microfone para substituir o protagonismo que não teve em campo. Mas, percebendo-se o julgamento de carácter de um craque e de um goleador sem-par, importa também entender o que motivou a intervenção desajeitada. Ronaldo nunca foi um "filho pródigo" do actual presidente, que respeitou a custo o negócio deixado pelo antecessor Celderón (chegou a dizer que 96 milhões era demasiado por quem já era Bola de Ouro e campeão europeu no United). E, entre outras indelicadezas (algumas nunca reveladas e bem graves), nunca lhe facilitou a renovação dos contratos (Messi já vai na nona). "Se queres sair, traz o dinheiro para eu contratar o Messi", chegou a responder-lhe uma vez. Ronaldo chegou a ir sozinho a uma gala da UEFA, enquanto Messi e Iniesta tinham o apoio de Sandro Rossel. Cr7 foi o melhor marcador da Champions pela sétima vez (sexta consecutiva) e marcou 450 golos em 438 jogos em Madrid, mas ganha 23 milhões de euros/ano, enquanto Neymar recebe 30 e Messi 40. Após a final de Cardiff, Florentino prometeu rectificar a situação. Antes de o fazer preferiu elogiar Neymar numa gala de entronização a Ronaldo, que finalmente lá recebeu a proposta de aumento, mas parte dela sujeita à obtenção de objectivos individuais e colectivos, algo que CR7 considerou indecente. E há ainda que resolver o problema fiscal, que terá de ser assumido pelo Real (mesmo que não o assuma), como fez com todos os outros jogadores com o mesmo problema (por muito que isso não seja dito, a verdade é que a situação resulta não só do facto de o fisco ter mudado as regras com efeitos retroactivos, mas também por o esquema ser incentivado pelos clubes, os principais beneficiados). Ronaldo foi inábil, mas tem razão."
As conclusões do Portugal-Tunísia
"O primeiro teste da selecção, que redundou num decepcionante empate a dois golos com a Tunísia, mostrou coisas boas e coisas más e nem todas foram tão simples como parecerá à primeira vista. É certo que a equipa funcionou melhor no plano ofensivo do que no defensivo, mas isso começa por não querer dizer que os médios e avançados fizeram um bom jogo ou que os defesas fizeram um mau jogo – houve de tudo. Depois, além dessa questão, das dinâmicas, há que ter em conta as avaliações individuais de jogadores em momento questionável e, acima de tudo, a questão táctica e a ponderação do que pode ser melhor para esta equipa: este 4x3x3 ou o habitual 4x4x2.
Claro que os adeptos se centram nas avaliações dos jogadores, porque quer seja por razões clubísticas ou de meras preferências, todos têm os seus predilectos e os seus ódios de estimação. E, nesse aspecto, o facto de o seleccionador ter dito que a equipa funcionou melhor a atacar do que a defender – com o que concordo – levou logo muitos a criticar as actuações de Ricardo Pereira, Rúben Dias ou Raphael Guerreiro, já para não falar de William Carvalho, que apareceu como médio mais recuado, mas cuja missão maior até é de início de construção e, portanto, ofensiva.
A questão é que não é assim tão simples. Ricardo fez um bom jogo, igual aos que vinha fazendo no FC Porto: incrível disponibilidade física, alguma dificuldade na definição dos lances, seja no plano atacante, seja no timing de ataque à bola quando em missão defensiva. Rúben Dias estreou-se a bom plano, aqui e acolá com algumas dificuldades de entendimento com Pepe (primeiro) e Fonte (depois), mas sem um erro importante que possa apontar-se-lhe. Guerreiro, ele sim, pareceu estar em maiores dificuldades e pode ser um problema difícil de resolver, pois nem a defender nem a atacar foi capaz de dar à equipa nada próximo do que mostrou, por exemplo, no Europeu de 2016.
Por sua vez, William até apareceu um patamar acima do que vinha mostrando nos últimos jogos do Sporting, sobretudo no plano físico, e até foi de uma arrancada sua que nasceu a jogada do primeiro golo de Portugal. Se a equipa mostrou dificuldades no plano defensivo a meio-campo elas deveram-se, sobretudo, à saída de Adrien (e antes da entrada de Moutinho), que lhe roubou equilíbrios e agressividade nos momentos em que não tinha a bola, permitindo que a Tunísia brincasse com o ritmo do jogo e o baixasse de forma a retirar as maiores armas a Portugal.
O que nos transporta para a questão do equilíbrio táctico da equipa. Este 4x3x3, desde que com um médio-táctico próximo de William (e ele poderá ser Moutinho ou Adrien) funcionou bem em termos ofensivos, porque depois permitiu encaixar dois extremos e deu espaço na condução de jogo a João Mário (que belo jogo fez contra a Tunísia). A questão é que, havendo ali João Mário, não só não permite a entrada de Manuel Fernandes ou Bruno Fernandes e, sobretudo, coloca um problema: onde encaixar Ronaldo? Contra a Espanha até se admite que ele surja em vez de André Silva, como avançado-centro, posição que não o favorece – e que por isso mesmo desfavorece a equipa, ainda que menos nos jogos onde o foco seja sobretudo defensivo – mas depois as coisas mudam bastante. Porque jogar em 4x3x3 com Ronaldo à esquerda é um perigo permanente em transição defensiva. E as premissas que levaram à adopção do 4x4x2 assimétrico com que esta equipa vem jogando mantêm-se todas."
Leão anda à deriva
"Bruno de Carvalho tenta por todos os meios manter-se no poder no Sporting. Está no seu direito. Foi democraticamente eleito e por esmagadora maioria. É pena que tenha chegado a este ponto. Abandonado por Mesa da AG, Conselho Fiscal e parte do Conselho Directivo e ainda de candeias às avessas com treinador e plantel. Como pode ter desbaratado tão grande capital de confiança em tão pouco tempo e conduzido tantos processos com os pés que estavam mais à mão é algo digno de estudo.
Inácio foi de uma sinceridade pouco habitual no futebol. Foi contratado para "juntar os cacos". É de facto disso que se trata hoje em Alvalade. No futebol como no resto. O clube é hoje uma família dividida, em que uns falam de assembleia de destituição, outros tudo fazem para a evitar, sem que ninguém tenha um pingo de bom senso para perceber que o melhor era, de facto, deitar tudo abaixo, convocar eleições e erguer um novo projecto. Fosse ele um dos muitos que já se perfilam para suceder a BdC ou o próprio, novamente legitimado pelo voto de um povo que admira parte do que fez mas não entende como se pode destruir quase tudo em menos de um fósforo.
O bom senso não mora ali. Melhor exemplo? A nova troca de argumentos entre Marta Soares e direcção. É tudo muito triste. Pobre Sporting."
Os grandes desafios da gestão desportiva nos dias de hoje
"É necessário que um gestor desportivo saiba claramente quais são as características que se exige que reúna para que possa assumir essas funções. E que saiba ainda que pode ser pessoalmente responsabilizado, pela sociedade desportiva que administra.
As notícias que têm recentemente vindo a público relativamente ao futebol profissional colocam-nos, inevitavelmente, perante a seguinte questão: quais os grandes desafios que se colocam, actualmente, a um gestor desportivo? Esta questão encerra, como não pode deixar de ser, a seguinte: o que pode e, sobretudo, o que deve esperar-se de um gestor desportivo nos dias de hoje?
Com efeito, sobretudo no âmbito do futebol profissional, a realidade exige agora uma mudança de paradigma: se tradicionalmente se entendia, expressa ou tacitamente, que a aplicação das regras legais e dos princípios éticos aos clubes e sociedades desportivas deveria ser sempre orientada por um princípio de “tolerância” colectiva relativamente às situações de incumprimento (incluindo, inexplicavelmente, a das entidades e credores públicos), é hoje claro que essa era chegou ao fim – e, sobretudo, que a própria sobrevivência do futebol profissional passa pelo desenvolvimento da sua capacidade de adaptação às regras. Na gestão desportiva moderna é fundamental a adopção, por parte de todos os agentes envolvidos, de princípios que assegurem que, pelo menos em termos societários, financeiros e éticos, são respeitadas as regras de bom governo a que estão agora sujeitas todas as instituições que têm um papel mais ou menos relevante na economia.
Uma vez que na lei desportiva se determina, actualmente, que apenas as sociedades desportivas podem participar em competições profissionais (deixando de ser possível a participação directa dos clubes desportivos), o ponto de partida consistirá, desde logo, em assegurar a adequação do perfil do gestor desportivo às exigências legais relativas aos gerentes e administradores de qualquer sociedade: eles devem imperativamente ter a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções, as quais devem exercer obedecendo a um elevado padrão de diligência. Estas exigências, que mais não visam do que assegurar uma boa administração da empresa, dão-nos conta de que a gestão das sociedades desportivas tem de passar a ser norteada pelos princípios e pelos deveres, de cuidado e de lealdade, que são observados na gestão de qualquer outra empresa, o que passa necessariamente pela profissionalização dos seus gestores – o que tradicionalmente não acontece no âmbito dos clubes (convindo aqui salientar que o facto, frequente, de o presidente da direcção de um clube desportivo acumular essa função com a de gestor executivo da sociedade por aquele constituída não constituirá então, em regra, solução adequada à boa governação da sociedade desportiva).
Neste âmbito (como, de resto, em tantos os outros), a formação de todos aqueles a quem é confiada, de alguma forma, a gestão desportiva, assume um papel muito relevante (o que é actualmente reconhecido pelas instituições que promovem e organizam o futebol profissional, cada vez mais activamente envolvidas nesse tipo de iniciativas). É necessário que um gestor desportivo saiba claramente quais são as características que se exige que reúna para que possa assumir essas funções. E que saiba ainda que pode ser pessoalmente responsabilizado, pela sociedade desportiva que administra e, eventualmente, por qualquer credor da sociedade, se não exercer essas funções nos termos que lhe são impostos pela lei e, com isso, causar danos à sociedade ou a terceiros.
Finalmente, mas não menos importante: caberá ao bom gestor desportivo, devidamente (in)formado, a hábil tarefa de exercer uma gestão empresarial necessariamente profissional e eficiente, no estrito respeito pelas regras da boa governação, sem deixar morrer, em si e em todos os que se ligam ao fenómeno desportivo, a chama que o alimenta."
A violência no e do futebol
"Terminada a época desportiva é habitual fazer-se um balanço dos temas que marcaram a agenda desportiva. Quero destacar a violência galopante no futebol como o factor de maior preocupação, a par de fenómenos que comprometem a integridade da competição, como o match-fixing, sobre os quais todos os agentes desportivos, e muito em concreto no futebol, devem ponderar para promover uma atitude, conjunta, de mudança.
A divulgação do relatório da PSP sobre a época 2016/17 não surpreende, dos 2185 casos de violência no desporto registados, mais de 95% dizem respeito ao futebol, com os adeptos dos três grandes a registarem o maior número de ocorrências: 37,2 % provocadas por adeptos do Benfica, 27,8 % por adeptos do Porto e 18,8% por adeptos Sporting.
O debate parlamentar de Abril e todos os eventos que marcaram este final de época, com especial foco na invasão da academia de Alcochete, deve, pelo menos, levar-nos a concluir pela urgência de uma resposta concertada entre agentes do desporto e forças de segurança, de uma acção célere e contundente para os que utilizam o desporto para promover o ódio e a violência, e, ainda, uma acção pedagógica desde os escalões de base e para todos os que se envolvem no futebol.
Esta é talvez a maior dificuldade, reconhecer que é um problema, ainda que não exclusivo, do desporto, com esmagadora preponderância e contribuição do futebol, alimentado por razões políticas, ideológicas e que encerra uma batalha perdida se os dirigentes não exercerem a responsabilidade que sobre eles impende para construir um ambiente saudável dentro da rivalidade desportiva.
Quero, finalmente, dar os parabéns à equipa feminina do Sporting, pela conquista da Taça de Portugal e deixar uma mensagem de força às jogadores do Braga, que venderam cara a derrota em mais uma final memorável para o futebol feminino nacional."
Uma alma encarnada atrás de grades azuis e brancas
"Hernâni foi o maior jogador que a Águeda da minha infância produziu. Veio prestar provas ao Benfica e disseram: «Como esse temos cá muitos!» Não teriam. Foi para o FC Porto. E tornou-se um dos grandes do futebol português.
No tempo do meu bisavô Afonso, ao qual chamavam o Grande Afonso, apesar de ele até ser para o baixinho, dizia-se: Águeda é o Mundo! E até certo ponto era verdade.
Conheço muita gente para quem Águeda continua a ser o Mundo. Com ponto de exclamação, ou não, no final da frase, pouco importa. Diria mais... ou melhor, vou pôr o Alberto Caeiro a dizer por mim: 'O Mundo não se fez para pensarmos nele, mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.'
Vinha para falar de Hernâni, o melhor jogador da história de Águeda, e perdi-me um pouco. Bem sei, bem sei, Hernâni jogou no FC Porto. Foi, aliás, um dos grandes jogadores da história do FC Porto. Mas lá por dentro era do Benfica. Acreditem que eu sei: sou de Águeda como ele.
O meu amigo Bernardo Trindade, o melhor alfarrabista de Lisboa, faz-me chegar às mãos, de vez em quando, verdadeiras preciosidades. A última foi a Crónica Desportiva n.º 27 - 13 de Outubro de 1957. Título: 'A História de Hernâni, o Portento de Águeda'.
Toda a gente que o viu jogar em miúdo, lá no adro e na Venda Nova, como o meu pai, o Manuel Alegre ou o Paulo Sucena, é taxativa: fazia coisas do arco-da-velha com uma bola de trapos.
Vermelho no coração
Hernâni cresceu, foi para a Escola Comercial e formou um clube: o FC do Adro, ali junto à Igreja de Santa Eulália, padroeira da terra. Depois jogou no Clube do Bairro da Venda Nova. Finalmente, pelos seus 15 anos, juntou uns amigos e tratou de lançar um clube mais a sério: o FC de Águeda.
Ora o FC de Àgueda tinha um equipamento à FC Porto. E, na tal Crónica Desportiva n.º 27 que agora folheio, Hernâni, que era Ferreira da Silva, como Eusébio mas de apelidos trocados, confessava: 'Não gostei muito da ideia do equipamento, já que era todo benfiquista, tal como o meu pai. Porque haveríamos de jogar com camisolas à Porto?'
Não foi por muito tempo. Ingressaria nos juniores do Recreio de Águeda, que costumava ter camisolas vermelhas, daqueles vermelhas escuro sangue seco, ou vinho tinto velho, e depois fez a carreira que todos conhecemos, no FC Porto sobretudo, rapazinho de alma vermelha fechado em grades azuis e brancas.
'Filho único / A mãe lhe dera / Um nome e o mantivera / Menino de sua mãe', diria Fernando Pessoa.
Hernâni, filho único de Aurora Augusto da Silva e Manuel Ferreira Balreira.
Veio ao Benfica prestar provas pela mão de Francisco Duarte, pai de Manuel Alegre, que foi por mais de uma vez treinador do Recreio. Ouviu uma sentença amarga: 'Como esse temos cá muitos!' E Francisco Duarte diria, pela vida fora: 'Enganaram-se!'
O FC Porto não se enganou.
Hernâni foi um dos melhores jogadores da história do futebol português.
Águeda é a terra da minha infância e eu, como Saint-Exupéry, sou da minha infância como de um país.
Não há muita gente que saiba que o Vidal, de Aguada de Cima, levou leitões à rainha de Inglaterra. Já estive em lugares da Terra onde as pessoas não fazem ideia de onde ficam as Aguadas de Cima e de Baixo, quanto mais Oronhe ou Bolfiar, o Raivo ou Valdomingos. Já estive em lugares da Terra onde as pessoas não sabem ao certo o que é um leitão e não têm conhecimentos muito mais profundos sobre a própria rainha de Inglaterra.
Antigamente, em Águeda, o campo de futebol chamava-se Campo de S. Sebastião. Tinha a capela atrás de uma baliza e o campo de básquete atrás da outra. À volta tinha tapumes de madeira, e o Recreio disputou nele os jogos mais históricos da sua história expecto um.
Nestas coisas de jogos históricos, a memória tem uma importância fundamental: quanto menos a gente se lembra deles, mais históricos são. Não há jogos históricos sem imaginação e um ou outro pormenor impossível de confirmar que possam motivar discussões vitalícias. Não é segredo para ninguém: a memória é a maior inimiga da imaginação. Nenhum golo é tão bonito como aquele do qual não há gente se lembre, mas do qual toda a gente finge lembrar-se no momento em que alguém se decide descrevê-lo. A bola caindo na entrada da área, o Fanfas chutando de primeira, as redes da baliza do lado da capela abanando de alegria... São poucos os que se atrevem a discutir um golo inventado. E quando o discutem tornam-no verdadeiro: isto é, mais histórico.
Na excepção dos jogos históricos do Campo de S. Sebastião, há o Recreio-Benfica já na beira-rio, em 1983, junto às Lavandeiras e ao Fojo. Nessa tarde foi tanta gente ao Municipal, que o público se esticou até às linhas laterais e eram guardas republicanos a cavalo que vigiavam os fiscais de linha. Hoje lembrei-me de Hernâni, que queria jogar no Benfica. Não jogou.
Mas continuou a ter uma alma encarnada, apesar de prisioneira entre grades azuis e brancas."
Afonso de Melo, in O Benfica
João Amaral
Já tinha sido anunciado, foi hoje confirmada a contratação do João Amaral.
Tal como o Chiquinho, suspeito que o João vai ser emprestado... mas, provavelmente terá a oportunidade de começar a pré-época no Benfica.
Para mim, fora dos quatro primeiros classificados das últimas duas épocas, terá sido um dos melhores jogadores, seguramente o melhor português, além das tais quatro equipas.
É um falso extremo, pois destaca-se como marcador de golos, ou assistente e não tanto como driblador... Diria mesmo que a mistura do Rafa com o João Amaral, daria um jogador 'perfeito'!!!
Ao contrário do que muitos defendem, eu acho que o Benfica precisa de extremos, talvez por isso o João pode ter um hipótese mínima de convencer o treinador... Médios com faro de golo, é raro... e é muito valioso. Uma das coisas que 'faltou' ao Benfica na última época, foram os golos do Pizzi... e por isso o Jonas foi ainda mais decisivo...
Os 26 anos não ajudam, aparentemente o João Amaral quando chegou a sénior andou algo perdido, com más companhias e alguns vícios que o futebol profissional não permite... Quando 'assentou' a cabeça, foi para o Setúbal e com bastante sucesso...
Entre apostar em desconhecidos, não portugueses, muitas vezes 'impingidos' por empresários para 'facilitar' a contratação de outros, eu prefiro esta aposta em jogadores portugueses... E se não 'resultar', o Benfica tem conseguido colocar estes activos no estrangeiro, com algum ganho financeiro...
Vamos esperar para ver...
Um astro do ténis de mesa
"Oliveira Ramos, 57 anos depois de terminar a carreira, continua a figurar no livro de recordes da modalidade.
Há atletas que, pela sua genialidade, se tornam figuras maiores do que a própria modalidade. Neste perfil enquadra-se Fernando Oliveira Ramos, um dos principais nomes da história do ténis de mesa em Portugal. A sua ligação à modalidade começou com o ingresso no Liceu Passos Manuel, em 1932, onde tomou contacto pela primeira vez com esse desporto. Experimentou e não mais parou, como referiu numa entrevista ao jornal O Benfica: 'o gosto pela modalidade aumentava, progressivamente, a tal ponto que, um dia, mandei fazer, para a minha mesa de casa de jantar, uma rede que a ele se adaptasse e onde disputei, a brincar, o meu primeiro torneio entre colegas'.
Benfiquista convicto, foi na Secretária da Rua do Jardim do Regedor que evoluiu o seu jogo, passando dos encontros lúdicos para a competição oficial, com o apoio e partilha do conhecimento dos mesatenistas 'encarnados'. 'Franzino e alto, parecia talhado para dominar a mesa. Assimilou rapidamente o estilo clássico de Mário Santos, correcto na defesa e imprevisto no ataque. Mais tarde surgiu também a jogar com a inteligência de um Cardoso, imitando primorosamente a sua colocação de bola e os seus 'amortis' '. Assim se foi tornando um atleta cada vez mais completo, com forte domínio em todos os momentos do jogo.
As décadas de 1930 e de 1940 marcaram o desenvolvimento do ténis de mesa em Portugal, e Oliveira Ramos foi deixando a sua marca. Primeiro destacou-se nas provas regionais, ao vencer 11 Campeonatos de Lisboa individualmente e 17 por equipas. 'A sua superioridade sobre os restantes jogadores lisboetas é tão evidente, que todos os seus adversários são os primeiros a reconhecê-la'. Seguiram-se as competições nacionais, com a organização da primeira edição do Campeonato Nacional em 1945. O Benfica tornou-se o primeiro vencedor da prova e Oliveira Ramos contribui de forma decisiva para a conquista do título. Em toda essa época, apenas perdeu um set, frente a Júlio Costa, na final da Taça de Honra que ganhou por 3-1.
Foram 26 anos de carreira, entre 1935 e 1961, e ainda hoje 'permanece como recordista de títulos de Campeão Nacional de Singulares: oito consecutivos que obteve no período compreendido entre 1949 e 1956'.
Pode saber mais sobre este extraordinário atleta na área 2 - Jóias do Ecletismo do Museu Benfica - Cosme Damião."
António Pinto, in O Benfica
Campeonato do Mundo na Rússia
"O Campeonato Mundial de Futebol que se vai realizar a partir de 14 de Junho deste ano custará qualquer coisa como 38 biliões de euros!
A organização de um grande evento desportivo, pela dimensão que tem, provoca impactos económicos não só durante o momento da sua realização, mas também em períodos anteriores, nomeadamente devido à actividade económica que se gera no decorrer da construção e/ou remodelação de infra-estruturas, assim como em períodos posteriores, pois produz-se actividade económica por via da existência das infra-estruturas criadas para o evento.
Não se afigura fácil aplicar modelos econométricos que analisem a rentabilidade económica de um evento como seja um Campeonato do Mundo de Futebol. Sei que não criados modelos complexos de análise, mas, sinceramente, muitos deles carecem de serem testados de forma empírica.
Contrariamente ao que para aí se diz, aumentar os custos não é sinónimo de prejuízo, mas significa aumento do PIB e aumento da rentabilidade económica global.
O Comité Organizador Local (COL) da Rússia para o Campeonato do Mundo de Futebol de 2018 informou oficialmente que o seu orçamento total será de 38 biliões de euros.
O mesmo comité afirmou que o evento gerou a criação de cerca de 220 mil empregos a pessoas envolvidas com os mais diversos sectores para que o Mundial possa ser realizado com sucesso.
É evidente que qualquer análise carece de escolhas, as quais irão condicionar os resultados que se alcancem. Neste tipo de análises, o estudo que seguimos de perto (Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Carlos Xavier Pinto Carvalho) considerou os efeitos de grandes eventos desportivos nos dois anos anteriores e nos dez anos seguintes à sua realização.
'Ou seja, pretende-se estimar qual o impacto económico que a organização e realização de um grande evento desportivo no momento t terá no período t-2 a t+10'.
Essa análise incidiu sobre a variável Produto Interno Bruto per capita a Preços Constantes em termos de Paridade do Poder de Compra e uma variável dummy que assumirá o valor 1 no período t-2 a t+10, conforme disponibilidade de dados, com t a representar o ano da realização do evento.
(...)
Como se pode verificar, os efeitos da realização do evento não são exactamente homogéneos nos quatro casos. Tal prova que existem muitas outras variáveis que carecem de ser analisados."
Pragal Colaço, in O Benfica
Sabe quem é? O inacreditável, era ele - Vítor Baptista
"Pedroto mandou-o treinar-se no hotel, respondeu-lhe: «Não sou jogador de jardim»; Mais espantoso, o que fez na URSS
1. Capitalista assustado com o PREC vendeu-lhe um Jaguar por 150 contos. Contratou um motorista, comprou-lhe traje a preceito, exigiu-lhe que andasse sempre assim (de boné e tudo) - e foi por essa altura que Portugal foi jogar ao Chipre. Ao chegar ao hotel, Pedroto mandou os jogadores a treino numa nesga de relva, ele recusou-se: «Não vou, que não sou jogador de jardim!»
2. Em viagem por África, percebera-se-lhe o vício que começara a abalá-lo, o Benfica tentou que se sujeitasse a tratamento psiquiátrico, mas ele fechou a questão, de rompante, amofinado: «Não! Eu não sou maluco, eu não estou maluco».
3. A um outro braço de ferro se atirou, numa entrevista a A Bola: «Sou o melhor futebolista português, sou o Maior, e pelo dinheiro que me pagam não jogo mais no Benfica». Mortimore, que chegou à Luz para o lugar de Mário Wilson, espantou-se: umas vezes aparecia a treinar, outras não. Ausentava-se, voltava, hibernava, pressionava - e sim: deram-lhe o que queria: «Comigo, o Benfica volta a ter grande equipa, sem mim não tinha...»
4. Em Setembro de 1977, o Benfica foi a Moscovo jogar com o Torpedo para a Taça dos Campeões - e os mosquitos por cordas voltaram a notar-se logo no aeroporto da Portela: «Vestia calças de ganga, os outros levavam fatos, calças de fazenda. Ia de chinelas, estava na moda, eles não. Disseram-me que era feio estar assim, mandaram-me mudar de roupa, não mudei, é mentira que me puseram no avião à força».
5. Antes do Torpedo correu rumor de que afirmara a Mortimore: «Disseram-me que os russos são amadores, não jogo contra amadores, só jogo contra profissionais, não conte comigo». Negou-o: «Verdadinha é que, senti dores ao sprintar e disse ao mister que só jogaria se agravando-se a lesão o Benfica me pagasse o ordenado por inteiro durante a inactividade. Disseram não, respondi-lhes que, então, não me sentia em condições, que fosse outro para o meu lugar» - e não, não jogou...
6. No regresso da URSS, Ferreira Queimado, o presidente do Benfica, suspendeu-o. Porém, Toni, o capitão de equipa, convenceu-o a dar-lhe mais uma oportunidade. Deu, alinhou contra o Boavista no desafio seguinte - e até foi dele o passe para o golo de Chalana.
7. Benfica e FC Porto lutavam taco a taco pelo título 77/78. O Sporting foi à Luz, se ganhasse Pedroto poderia ficar mais aliviado - perdeu porque marcou mais um dos seus golos de «levantar o estádio». A festejá-lo, houve peripécia a dar-lhe imortalidade: ao perceber-se que lhe faltava brinco pôs-se a escabichar a relva - Rosa Santos permitiu que o jogo estivesse parado cinco minutos - e não bastou para o encontrarem: «Estou desesperado. Não é por ter custado 10 contos, é porque sem o brinco talvez não volte a ser o mesmo jogador». Após o sumiço não marcou mais golo pelo Benfica...
8. Estava o país ainda em riso pelo exótico episódio do brinquinho perdido - e estoirou notícia de que acabara de assinar pelo Vitória. Em 36 horas, três anónimos contribuíram com 400 contos para o regresso. «O Benfica mandou-me esperar, mas esperar para quê?! Só pedi mais 10 contos do que estava a ganhar por mês, torceram a orelha, azar deles». Exigira 650 contos por mês e um Porche, o SLB aceitara dar-lhe o Carrera e 550 contos de salário mensal ! - e ele foi para Setúbal por 100 apenas.
9. Uma época esteve em Setúbal e do Vitória saltou, em 79/80, para o Boavista. Que foi à Luz ganhar por 1-0 - com golo seu. Em vez de o festejar, correu para o lugar onde perdera o brinco procurou repetir o ritual da busca, os companheiros não deixaram. Não tardou desentendeu-se com Valentim Loureiro - e abandonou jogo a meio: «Sou o Maior e o Maior não pode andar a jogar em pelados...»
10. Em 1984, quando já se afundara na miséria contou a Vítor Serpa: «Deixar o Benfica foi a maior asneira da minha vida. Levantei o Boavista, foram uns ingratos: a mulher com quem vivia, fugiu-me em vésperas do último jogo do campeonato, meti-me num táxi e fui atrás dela - e arranjaram aí razão para não me pagar 200 contos. Tomar, Montijo, Amora, todos me ficaram a dever. Do Monte da Caparica, onde só ganhava por vitória, fui despedido por estar a mijar junto dum carro. Parece que andava criança por perto. Mas eu vi lá a criança...»"
António Simões, in A Bola
Seleção Nacional: uma cena da minha geração
"Era claramente demasiado bebé chorão para me recordar do incrível chapéu de Karel Poborsky a Vítor Baía, nos quartos-de-final do Euro ’96 e talvez só no subconsciente se tenha alojado a frustração (na altura acredito que relativa, tendo em conta que a frequência em nada se parecia com a de hoje) de não nos qualificarmos para o Mundial de ’98. As minhas primeiras memórias da selecção nacional são do Euro 2000.
Lá está, não me lembro de muita coisa. Talvez tenha reconstituído as recordações com a ajuda daqueles DVD's de resumo de competições internacionais que se compravam com os jornais desportivos ou assim. Sim, é escandaloso que a tecnologia DVD, hoje em dia, seja quase somente utilizada em textos nostálgicos. Bom, passámos aquela fase de grupos de forma imaculada, a despachar Inglaterra com a pastilha do Figo lá para dentro, a Roménia e depois a Alemanha, na altura campeã europeia em título, jogando com os menos utilizando, por 3-0 (!) com três golos de, olhó gajo, Sérgio Conceição.
Mas a verdade é que a primeira memória desse europeu que conservo intacta é estar na casa de férias de uns amigos dos meus pais a comer feijoada e a ver os dois golos de Nuno Gomes à Turquia, que nos abriram caminho para a meia-final. Tinha seis anos. Seis anos que não estavam preparados para o que se seguiria. Uma meia-final ingrata, contra o inimigo com quem faríamos contas mais tarde. Até começámos a ganhar, com mais um golo de Nuno Gomes, logo aos 19 minutos. Na segunda parte, Henry empatou o jogo. No prolongamento, foi o que se sabe. Wiltord contorna Baía junto à linha de fundo, manda uma biqueirada e a bola vai ter com um objeto bastante semelhante com a mão de Abel Xavier, mas que claramente não era. Ouviu, senhor Günter Benkö, Não Era Mão. Ok, já passaram 18 anos. Podemos admitir: era obviamente penálti. Enfim, foi o início de uma longa jornada de expectativas defraudadas. Ah, e quem é que estava no banco nesse jogo? Exacto, Quim, que hoje ainda recupera dos festejos da conquista na Taça de Portugal. Giro, não é?
Dois anos depois estávamos a abandonar sem glória o Mundial da Coreia e do Japão, que se jogou com aquela bola, a Fevernova, que rolou depois durante vários meses no recreio da minha escola primária, na versão esponjosa que vinha com o Happy Meal. Os jogos eram cedo, eu estava em aulas, pelo que me poupei à vergonha de ver aquele desastre.
Em 2004, tudo mudou para mim. Na minha vida, o futebol passou de algo que me interessava para uma perigosa obsessão. Éramos anfitriões de uma grande competição europeia e tínhamos o Scolari, o maior mobilizador deste país, muitas vezes desligado (e ainda bem) do conceito de patriotismo, do último século. Ainda hoje sei a letra toda da música do anúncio da Galp, cantada pelo Carlos Afonso, ou Bondage. “Será demais pedir a Taça, nada que um adepto com orgulho não o faça”.
Começámos com aquela cruel premonição, perdendo com a Grécia de Otto Rehhagel no jogo de abertura no Dragão. Acabámos por passar a fase de grupos, depois de derrotar a Rússia e a seguir a Espanha, com outro tiro de Nuno Gomes, jogo que vi num restaurante espanhol do Bairro Alto. Vieram os quartos-de-final, com a Inglaterra a marcar primeiro, Postiga a empatar de cabeça após cruzamento de Simão. Prolongamento com petardo de Rui Costa, pouco tempo depois Lampard marca, 2-2. Penáltis: Beckham manda a bola para Júpiter, Rui Costa falha, Postiga marca à Panenka, Ricardo dispensa as luvas para defender o remate de Darius Vassel e marca ele o penálti decisivo. Euforia máxima. Seguimos para as meias, onde, frente à Holanda, Cristiano Ronaldo marca de cabeça e Maniche levanta o estádio com um dos melhores golos da competição. Só podia dar em título. Mas não deu. Angelos Charisteas estraga-me a infância aos 57’ daquele fatídico jogo no Estádio da Luz. Foi aí que aprendi a sofrer.
Em 2006, fomos novamente espoliados da hipótese de estar na final por árbitros que amam franceses. Em 2008, não me lembro bem e não me apetece pesquisar, mas fomos aos quartos, acho. Em 2010, vacilámos nos oitavos frente à Espanha. Em 2012, no Euro, também caímos frente à Espanha, mas nas meias-finais e nos penáltis. E a vergonha de 2014? Já ninguém se lembra, porque em 2016 cumprimos os nossos sonhos. Já passaram dois anos e sinceramente eu ainda não acredito que a sorte, que nunca quis uma relação duradoura connosco, tenha jogado tão bem pelo nosso lado por naquela final de Paris.
Basicamente, tenho memórias da selecção em todas as fases da minha vida. Desde uma equipa que praticava um futebol incrível e que não ganhou nada, até uma selecção que jogava pouco mas que serviu para festejarmos durante dois meses, ano sim, ano não, lá vinha um verão marcado pela expectativa. Agora, em 2018, já não é a mesma coisa. Podemos chegar longe, podemos vacilar logo nos primeiros jogos. Mas a novidade é que, pela primeira vez, já não vamos ser vistos como o underdog. E a isso não sei se me consigo habituar."
"O Pinto da Costa deu-me o contrato para a mão e depois deu-me um envelope com dinheiro: 'Isto é para ires comer camarão'"
"Nasceu em Lisboa, cresceu em Marvila e antes do futebol jogou râguebi. Confirma?
Sim. Apesar das origens dos meus pais serem do norte, perto de Lamego, mais concretamente de Tarouca, eu nasci em Lisboa. O meu pai era carpinteiro e a minha mãe cozinheira num colégio infantil. Tenho duas irmãs mais novas, com diferença de quatro e oito anos. Cresci em Marvila.
Jogou râguebi quanto tempo?
Joguei dois anos no S. Miguel, que não sei se ainda existe. Comecei com 12,13 anos, gostei muito, mas era muito duro na altura. Hoje já há algumas regras, mas na altura não havia regras e aquilo era muito violento. E o futebol começou a ganhar peso.
De onde vem o bichinho do futebol?
Quando era miúdo o meu pai fez-me sócio do Benfica e levava-me ao estádio da Luz. Desde que me lembro que sou do Benfica e adoro futebol. Mas na verdade começo a jogar futebol muito tarde, já com 13, 14 anos. Não tinha nada aquela coisa de querer ser jogador.
O que queria ser?
Adorava animais e gostava de ser veterinário. Nunca pensei em ser futebolista. Também porque se calhar não tinha assim muitas qualidades. Mas um dia estava a jogar na rua e um senhor, um director do clube de Chelas, viu-me e perguntou-me se não gostava de jogar lá no clube. Disse-lhe que nunca tinha pensado nisso, mas que ele tinha de falar com o meu pai. O meu pai concordou e é assim que começa o futebol, com 14 anos.
Quem eram os seus ídolos?
O Magnusson, o Chalana... Lembro-me de vê-los jogar. O Humberto Coelho, o Valdo.
Quando vai para o Clube de Futebol de Chelas, já tem posição em campo definida?
Perguntaram-me onde gostava de jogar e eu disse que era na frente. Jogava na frente e fazia alguns golos.
E a escola?
Não era um grande aluno, gostava mais de jogar à bola na escola. Tenho poucas recordações da escola mais novo. Mas lembro-me que a determinada altura pedi ao meu pai para passar a deixar-me antes da escola porque ele era careca e eu tinha um bocado de vergonha, os meus colegas gozavam. Às vezes em vez de ir para a escola, ficava a dormir ao lado da escola ou ia passear. Mais para a frente, a partir do 2º ano de ciclo, as coisas melhoraram um bocadinho.
Depois do Chelas vai jogar para onde?
Foi tudo muito rápido. Nunca ficava mais de dois anos num clube. Depois do Chelas fui para o Olivais e a seguir para o Oriental.
Foi mudando porque recebia propostas melhores procurava outros clubes?
Houve um ano, entre juvenil e júnior, que dei um grande salto, em altura, e naquela idades jogadores com aqueles físicos, altos, impunham algum respeito. Depois comecei a ter algumas qualidades futebolísticas, rapidamente aprendi e os clubes interessaram-se. Fui para os Olivais e depois saio para o Oriental, com 17 anos, que já era um clube com outras condições. No segundo ano de júnior o treinador Francisco Barão, que é hoje treinador na equipa B do Sporting, teve a coragem de chamar-me para os seniores. Foi aí que as portas se abriram.
Lembra-se da estreia nos seniores?
Perfeitamente. Foi num jogo contra o Quarteirense, para a Taça de Portugal. Fomos para Quarteira no dia do jogo, lembro-me de ir bastante nervoso. Hoje já não é assim, quando dizes a um júnior para ir treinar com os seniores, a diferença não é tão grande e o efeito já não é o mesmo. No meu tempo quando chamavas um júnior só para treinar ele não dormia. Eu não dormia, era um sonho, eu queria era treinar, dormia muito pouco. E é no Oriental que me metem a trinco, a médio centro, porque era alto, agressivo, sempre com aquela vontade de querer ganhar.
Como surge o Belenenses?
No Oriental jogo pelos seniores todo o ano, faço um bom campeonato e é aí que desperto para o futebol. Aparecem duas equipas. A primeira a contactar-me foi a Académica de Coimbra. Houve um olheiro que veio ter comigo depois de um jogo, disse-me que já andavam a observar-me e fez-me uma pergunta: "Qual é a escolaridade que tens?". Aí fiquei assim um bocadinho... Eu só tinha o 7º ano. Passado um tempo, no penúltimo jogo da época, em que marquei um golo e até abri o sobrolho porque cabeceei na bola e houve um colega que deu uma cabeçada na minha cabeça... Fui cosido ali na hora e tudo, sangrava por todo o lado, mas eu só queria continuar a jogar. No final desse jogo aparece um responsável do Belenenses. Disse logo que sim, era o quarto melhor clube de Portugal na altura.
Integrou logo a equipa principal?
Assinei por três anos, mas o treinador do Belenenses, porque eu era muito novo, tinha 18 anos, achou por bem que eu fosse emprestado a um clube para ganhar mais experiência e acima de tudo jogar. E o primeiro clube que apareceu foi o Campomaiorense. Eu nem sabia onde era Campo Maior. Fui ver no mapa. O presidente era o João Nabeiro, o homem da Delta café.
Como foi sair de casa dos pais?
Ao princípio não foi fácil. Eu gostava muito de estar em casa dos meus pais, chegava a casa tinha comida e roupa lavada, tudo feito. Fui viver para um quarto, arranjado pelo clube, nem sequer tinha televisão. Comia sempre fora. Mas tive um treinador, o Fidalgo, que hoje é comentador, era de Lisboa e quase todas as semanas vinha a Lisboa. Criámos uma boa amizade, de vez em quando íamos passear ao El Corte Inglés, a Espanha.
Correu bem a época?
Foi muito positiva, joguei sempre. Tenho uma história engraçada. O presidente estava muito poucas vezes connosco porque era um homem muito ligado ao trabalho, estava sempre a viajar, e deu todas as responsabilidades e poder a um director, Pedro Morcela. Nós tínhamos o objectivo de subir porque arrancava no ano seguinte o campeonato da II Liga. As coisas começaram a não correr bem. A meio da época esse director despede o Fidalgo. Nós ficamos chocados. Entretanto três dias depois, quando vem o presidente, que não sabia de nada, gerou-se uma grande confusão e o presidente decide que quem fica é o treinador. "O meu treinador é o Fidalgo, quem não estiver contente, que me diga agora e vai-se já embora". Voltou o Fidalgo e a partir daquele momento, ganhámos todos os jogos até ao final da época. Todos. E subimos de divisão.
Regressa ao Belenenses no ano seguinte.
Sim. O treinador era o Abel Braga.
Fica três épocas em Belém. Qual é a maior recordação que tem?
O Abel Braga era um génio. Gostava de treinar, era directo, dizia o que tinha a dizer. De todos os treinadores que tive ele foi o único que dizia logo no primeiro dia de treino qual era a equipa que ia jogar no fim de semana seguinte.
Como assim?
Depois do jogo e da folga, no primeiro dia de treino ele falava sobre o jogo anterior, o que foi bom e o que foi mau e depois dizia: "A equipa para o próximo domingo vai ser esta...". Não sei se fazia bem ou mal. Só sei que dava resultado. A equipa que ia jogar tinha de trabalhar bem toda a semana, porque mesmo sabendo que eras titular se não trabalhasses dentro daquilo que ele pretendia, não jogavas. Ele normalmente alterava uma peça. Isso fazia com que os outros também acreditassem e fizessem o seu trabalho para eventualmente conseguirem um lugar. O Abel Braga teve a coragem de me pôr a jogar frente ao Sporting faltavam 15 minutos para o final. Disse-me: "Onde estiver o Jorge Cadete, estás em cima dele". Eu estava a fazer marcação cerrada ao Cadete e lembro-me de ter comentado: "Se eu tivesse jogado este gajo não fazia nenhum golo". Alguém deve ter contado ao treinador, não sei qual foi o jogador. No primeiro dia de treino a seguir ao jogo o Abel Braga vira-se para mim: "Oh miúdo, ainda agora chegou e já está..." Sei que foi duro comigo. Parecia que estava a faltar ao respeito aos meus colegas por ter dito aquilo, mas não foi nada disso. Nós tínhamos uma grande equipa. Mas deu-me uma grande dura e eu, claro, caladinho, acabei por pedir desculpa. Depois começa a pôr-me a titular. E foi aí que cresci.
Em que aspecto?
És novo, achas que já conquistaste tudo e eu comecei a ser conhecido, a dar autógrafos, comecei a sair e comecei a chegar aos treinos sem estar em condições.
Começou nas noitadas?
Não saía todos os dias, mas saía duas, três vezes por semana, porque era jovem, tinha reconhecimento, era titular, tinha amigos, apareciam as miúdas e eu queria conhecer as raparigas... Nós treinávamos sempre de manhã e claro quando chegava ao treino... O mais importante que era o futebol, estava a ficar para trás. O Abel Braga fez uma coisa que nunca vou esquecer e acho que foi aí que acordei para a vida. Tenho de agradecer-lhe.
O que fez?
Uma semana ele não me convoca, o que eu achei estranho, mas não disse nada, continuei naquela vida. Ele chamou-me ao balneário e disse-me: "Olha miúdo, vou-te dar isto, leva para casa, vê o que andas a fazer". Era uma cassette VHS, onde estavam gravados os meus treinos das últimas 2 semanas. Posso dizer que eram horríveis os meus treinos, horríveis. No dia seguinte, pedi para falar com ele. Pedi-lhe desculpa e ele acrescentou: "João, tu tens boas capacidades, tens um futuro à tua frente, se quiseres amanhã podes jogar num grande clube. Agora, assim não". Acordou-me. Eu continuei a trabalhar e as oportunidades voltaram a surgir. Depois houve chicotada psicológica e com a entrada do novo técnico as coisas voltaram a não correr bem.
Quem era?
José Romão. Não me convocava, meteu-me completamente fora. Ainda por cima no final da época eu ia casar.
Como e onde conhece a sua mulher?
Conheço-a numa discoteca. Através de um colega, o Brassard. Eu tinha sido convocado para o meu primeiro jogo pela selecção de sub-21. Fomos jogar a Leiria e ganhámos à Escócia. Nessa noite saímos, fomos para o Alcântara-Mar, que era a discoteca mais famosa na altura. Fomos todos. Eu até era um rapaz sossegado, não bebia álcool, era raro. Mas lembro-me que o Brassard estava completamente embriagado, estávamos frente a um balcão e ao nosso lado estavam umas raparigas a beber o seu copo. Começamos a conversar com elas, eu mais tímido, e o Brassard a certa altura começou a meter-se com elas, a abraçá-las e a tentar beijá-las. Elas disseram-me: “Diz lá ao teu amigo que não gostamos destas coisas". Agarrei no Brassard, aquilo acalmou. Mas antes de acontecer isso elas disseram o que faziam. A Ana, que é hoje a minha mulher, trabalhava nas Amoreiras, na loja da Chevignon.
No dia seguinte foi à Chevignon. Acertei?
(risos) Fui. Comprei umas calças e lá estava ela. Eu pedi-lhe desculpa pelo que tinha acontecido. Passada uma semana voltei a lá ir, comprei outra coisa qualquer e convidei-a para sair. E foi assim que começou.
Daí até ao casamento passou quanto tempo?
Quatro, cinco meses. Eu já vivia sozinho, quando fui para o Belenenses pedi logo um apartamento para mim porque queria sair de casa dos pais, ser independente.
O seu primeiro contrato foi com o Belenenses?
Não, foi com o Oriental e ganhava 10 contos (50€).
Comprou alguma coisa com esse dinheiro?
Não. Lembro-me de o meu pai dizer-me "Quando ganhares o teu primeiro ordenado guarda esse dinheiro para o resto da tua vida, porque é o teu primeiro ordenado". Guardei o dinheiro.
Já tinha carta de condução?
Não. Quando fui para o Campomaiorense, uma da coisas que pedi foi a carta. O clube oferecia alojamento e alimentação e eu disse-lhes que gostava de tirar a carta. Perguntei se podiam pagar também. Disseram logo que sim, ainda por cima um dos directores era dono de uma escola de condução (risos). Mas nunca fui. Quando venho para o Belenenses é que tiro. O Belenenses alugou-me um apartamento na zona dos Prazeres, e curiosamente, a Ana vivia também nos Prazeres. Era vizinha do Cavaco Silva, ele mora no 1º andar e ela morava no 3º. Entretanto, depois de tirar a carta comprei um Peugeot 106 XSi vermelho, que na altura era o carro da moda.
Voltando ao José Romão...
No ano em que ele entra, a minha mulher fica grávida e eu vou casar, já casei com ela grávida. Deixei de jogar, não fazia parte dos planos para a próxima época no Belenenses e tinha mais um ano de contrato. O treinador foi muito direto, disse-me na cara: "João não conto contigo mas se quiseres ficar podes ficar, só que, digo-te já, não vais ter oportunidades, é um assunto entre ti e o presidente. Faz o que entenderes". Foi muito difícil para mim porque ia casar, ia ter um filho, não sabia para onde é que eu ia. Falei com o presidente Matias, que por acaso tinha convidado para ser meu padrinho de casamento. Disse-lhe que gostava de continuar independentemente do treinador não contar comigo. E foi assim. Casei nas férias e voltei ao clube.
O seu filho nasce quando?
O João Ricardo nasce em dezembro. Antes disso, a época começou, eu não jogava, mas as coisas começaram também a não correr bem para o treinador, porque não havia resultados. E aparece uma luz, o João Alves. Quando chegou mudou muita coisa. Pôs-me logo a jogar. Viu a forma como eu trabalhava e depois tem uma coisa muito boa, gosta da juventude, dá oportunidade a jovens, não tem medo, arrisca. Mas atenção, ele ajuda-nos mas nós também temos de trabalhar. Comecei a jogar, começaram a vir os resultados, o meu filho prestes a nascer. Num curto espaço de tempo tudo vira outra vez e acontecem-me coisas fantásticas. Lembro-me que quando vi o meu filho a primeira coisa que marquei foi que ele tinha um sinal no joelho. Senti-me um homem muito feliz quando o meu filho nasceu. Estava tudo a correr bem, tinha 21 anos, aparecia nos jornais. Em dois meses começo a jogar a titular, nasce o meu filho, o João Alves dá-me a braçadeira de capitão, aparece-me o empresário e surge o interesse dos três grandes.
Quem era o empresário?
José Veiga. Era o homem do momento, que trabalhava com todos os clubes. contacta-me, conversámos e torna-se meu empresário. Mas nunca assinei nada com ele. Estive 10 anos a trabalhar com ele. Se alguma coisa os meus pais me deram foi educação. Fui sempre um homem de palavra. Ele veio com contratos para assinar e eu disse-lhe: "Desculpe, mas eu não assino nada. Para mim o mais importante é a palavra, foi aquilo que os meus pais me ensinaram. Se você quiser acreditar em mim tudo bem, se não quiser também compreendo perfeitamente. Se quiser trabalhar comigo são estas as condições. É a palavra. Você ajuda-me, eu ajudo-o". Passadas duas semanas ele ligou-me.
Qual foi o primeiro dos três grandes a mostrar interesse?
Sporting. O Veiga liga-me para eu ir jantar com ele. Durante a viagem para o restaurante não me disse nada, perguntou-me só onde é que eu gostava de jogar. Disse-lhe que num grande qualquer, que o meu clube de coração era o Benfica, mas que queria era jogar. Quando chegamos ao restaurante, quem é que lá estava? Sousa Cintra.
O que lhe disse?
Sentámo-nos. Na mesa já estava marisco, ele parte um marisco ao meio com as duas mãos e pergunta-me logo directo: "Então, queres vir para o Sporting?". Eu não estava preparado. Até me engasguei. Mas disse que sim. E ele, sempre a comer, continua: "Vamos já tratar disso". Durante a conversa ele conclui: "Só tens de dizer quanto é que queres ganhar". Despedi-me dele e quando ia a despedir-me do Veiga disse-lhe: "Liga-me, diz-me quanto é que eu quero ganhar para prepararmos estas coisas". Passados dois ou três dias liga-me o Veiga: "João vem ter comigo, vamos almoçar a Belém que quero falar contigo". Vamos lá.
Quem é que lá estava dessa vez?
(risos). António Simões. Eu só pensava: "Isto não está a acontecer". Ele com um discurso completamente diferente, muito calmo. O Simões é um gentleman do futebol. Muito sereno, parece que as palavras estão todas ajustadas. "Então, gostavas de ir para o Benfica?". A mesma história. Disse-lhe que o Benfica é o meu clube de coração. Ele sempre muito tranquilo: "Ainda bem, não sabia. Sabes, nós já te observamos há algum tempo. Desde o ano passado, depois deixaste de jogar..." Um discurso muito mais cauteloso. Mas já não perguntou quanto é que eu queria ganhar. Não, simplesmente disse que poderia ser uma hipótese para a próxima época, que só queria falar um bocadinho comigo, saber como eu era e que estavam a avaliar-me. Disse-me para continuar a trabalhar.
Depois veio o FCP, suponho.
Na semana seguinte, o Veiga liga-me novamente: "Amanhã depois do treino vais para o Porto". Disse-me só isto. Perguntei-lhe logo se era o Pinto da Costa. Disse-me que não, que era outro clube, era um bom clube. Não me quis dizer nada. E lá fui para o Porto.
A pensar que era o Boavista?
Pensei que podia ser o Boavista ou outro clube do norte de Espanha, porque Vigo é muito perto. Podia ser o Celta de Vigo ou o Tenerife. Chego lá, ele diz-me para ir ter com ele ao café Velasquez, porque toda a gente sabe onde fica. Entro no carro dele, a minha mulher, que tinha ido comigo, teve de ficar. Em três minutos estava dentro do estádio do FCP. E ele continuava a negar: "Nada disso. Já vais ver para onde é que vais". Subimos no elevador e quando saímos, só me lembro de ter entrado num gabinete que parecia sala de cinema, muito grande. Era muito grande, com uma secretária enorme. Sentei-me. Quando se abre a porta atrás de mim e vejo o Pinto da Costa vir na minha direcção... Estamos a falar de uma figura que tinha uma mística à volta dele enorme, era uma figura emblemática. Cumprimentar o Pinto da Costa ou falar com ele não era para qualquer pessoa naquela altura.
E ele?
Muito educado. Perguntou-me se a viagem tinha corrido bem. Depois veio a pergunta da praxe: "Gostavas de vir para o FC Porto?". "Claro que sim". E ele "OK. Então tenho isto aqui para ti, quatro anos de contrato. Este é o teu contrato". Deu-me o contrato para a mão. Olhei para aquilo e era muito dinheiro. Olhei para o Veiga: "O que é que eu faço? Isto é mesmo para eu assinar? Isto é mesmo verdade?". Disse mesmo assim. Toda a gente sabia que o presidente era muito brincalhão. E o Pinto da Costa: "E tens mais isto". E dá-me um envelope para a mão, com dinheiro. "Este envelope é para tu gastares no que quiseres. Olha, vai comer camarão". Lembro-me perfeitamente: "Isto é para ires comer camarão".
Era muito dinheiro?
Era. Para aquela altura era. Não sei fazer bem as contas, mas acredito que aos olhos de hoje o que estava dentro do envelope era um valor de mais ou menos 2000, 2500 euros. Não me lembro do valor, lembro-me que era muita nota. Olhei para o contrato e eu não percebia nada daquilo, só queria ver era os números, queria saber era o ordenado. O Veiga olhou para mim: "Estás à espera de quê". "Eu? Nada". Pedi uma caneta ao presidente e assinei. A única coisa que ele me disse foi: "João, isto não é para sair cá para fora. Isto é segredo. Aqui na minha casa é tudo segredo, é tudo blindado. No dia em que quiseres falar para a comunicação social, eu é que te digo quando é que deves falar. Sou eu que te digo quando é que podes comunicar que és jogador do FC Porto". Foram as palavras dele. E assim foi.
Uma abordagem diferente dos rivais.
A forma como o FCP trabalhava na altura era muito diferente dos outros, por isso é que contratava os melhores. Chegavas ali e não havia cá conversa. A conversa era ou queres vir para o FCP ou não queres vir para o FCP. Se queres, está aqui, nem discutiam. E tu olhavas para aquilo e o que é que pensavas? Eu não posso estar dependente de um clube como o Benfica ou como o Sporting, que não sei se vou ou não, mostraram interesse, mas não disseram: "Embora, está aqui, vamos já assinar".
Aquilo que foi ganhar para o FCP era muito mais do que ganhava no Belenenses?
Quatro ou cinco vezes mais. Lembro-me que no Belenenses já tinha um ordenado de mais de 700 contos/mês, mas no FCP fui ganhar muito mais.
Qual foi a reacção da sua mulher quando lhe disse que iam para o Porto?
Quando cheguei ao carro, dei-lhe o envelope para as mãos, ela perguntou o que era e eu disse-lhe "Assinei pelo FCP". Ficou contente.
Ela já não trabalhava nessa altura?
Não. Foi uma das coisas que lhe pedi quando decidimos casar. Eu tinha condições para nos sustentar e queria que ela deixasse de trabalhar. Ela assim fez, respeitou. Embora ao princípio não quisesse, porque gostava de trabalhar e tinha os seus amigos, eu disse-lhe que compreendia mas que ela tinha de perceber que agora estava comigo e que tinha condições para os dois.
Por que razão não queria que ela continuasse a trabalhar?
Os jogadores gostam da sua privacidade, gostam de ter a sua mulher ao seu lado, sem ninguém saber, queria que ela só se concentrasse em mim porque era uma mulher bonita e qualquer homem podia interessar-se por ela, ou ela podia interessar-se. Eu tive o cuidado de dizer: "Vem para junto de mim, cuidas de mim, cuidas da casa, estás grávida e acho que é nisso que tens de estar concentrada e não em ires trabalhar". Se pergunta se fiz bem ou mal, acho que fiz o certo porque ela ficou contente. Ela não percebia nada de futebol e quando lhe disse que ia ficar no FCP ficou muito feliz. O meu pai era benfiquista, o meu sogro sportinguista (risos).
Como é que foi a recepção no FCP, foi praxado?
Fui. Ainda hoje o fazem, atiram o famoso balde de água. O FCP tinha uma super equipa, um grande treinador, Bobby Robson, os adjuntos eram José Mourinho e Inácio. Era uma equipa fantástica. Vítor Baía, Aloísio, Jorge Costa, Bandeirinha, José Carlos, Secretário, João Pinto, Semedo...
Quais foram as suas primeiras impressões?
Positivas. Uma equipa de outro calibre. Um povo fantástico, nunca dei tantos autógrafos, dei mais autógrafos num dia do que nos anos em que estive no Belenenses. É um clube com uma massa associativa que adora futebol e os seus jogadores. Rapidamente juntei-me aos jogadores mais fortes e carismáticos da equipa. Eram jogadores importantíssimos e eu estava no meio daqueles tubarões todos, a aprender, a observar. E fui bem recebido.
Começou logo a jogar?
Não, não. Era difícil. Eu tinha três grandes centrais, Jorge Costa, Aloísio e José Carlos. O Jorge Costa ainda não jogava a titular, para ter uma ideia. Quem jogava era o Aloísio e o José Carlos, o Jorge aparece nesse ano, começa a jogar depois porque o Bobby Robson tirou o José Carlos e meteu-o a ele. O José Carlos não aceitou muito bem, deixou de ser titular e foi embora, logo em dezembro ou Janeiro. Abriu uma porta para mim, uma possibilidade, porque eu era o quarto central. E ser convocado para mim já era...
Que marcas lhe deixou Bobby Robson?
Era um gentleman. Naquela altura qualquer jogador que não jogava ficava triste e chateado, mas com o Bobby Robson era impossível. Ele era muito energético, falava com todos os jogadores, a forma como comunicava era engraçada. Meio português, meio inglês. Os processos e métodos de trabalho eram sempre bons, era futebol ofensivo. Não havia cá futebol defensivo. Ele nunca trabalhava o futebol defensivo porque nós tendo bola marcávamos sempre três ou quatro golos. Só trabalhávamos cruzamentos, remates, um autêntico inglês.
No final da época ele foi embora para o Barcelona. Veio António Oliveira.
Foi bom. Foi muito bom, mas acho que qualquer treinador que viesse naquela altura para o FCP era campeão, porque tínhamos os melhores jogadores. O Benfica entrou numa crise financeira e era o Sporting que podia fazer-nos um pouco de frente ou mesmo o Boavista. Mas o Oliveira deu-me oportunidade de jogar porque o Jorge Costa teve uma lesão grave, uma ruptura de ligamentos, a meio da época. Era muito difícil eu jogar tendo o Aloísio, tendo o Jorge Costa, que nessa época assume completamente o balneário. Quando cheguei ele já lá estava, mas não era titular, só que não jogava no FCP mas jogava na selecção, era jogador de selecção, já era uma pessoa com aquela postura forte nos treinos, dobrava a língua: "Tens que pôr o pé, temos que os comer, temos que isto e aquilo". E o Jorge começa a jogar, depois tem a lesão e o Oliveira põe-me a jogar.
Seguem-se mais duas épocas com Fernando Santos.
Na primeira época com ele ganhamos o pentacampeonato. E a minha segunda época foi muito difícil, talvez o momento mais difícil na minha carreira.
Já lá vamos. Das primeiras quatro épocas no FCP, qual é a primeira coisa que lhe vem à memória?
O Bobby Robson. Foi um homem que fez e mudou um bocadinho a história do futebol. Ele fez de mim ponta de lança. Depois muitos treinadores fizeram o que ele fez. Mas ele punha-me muitas vezes a jogar a ponta de lança. Muitas vezes estávamos empatados e eu ia para a frente e fazia golos. Isto vem-me sempre à cabeça. Muitos jogadores ainda hoje dizem: "João, sempre que tu entravas, já sabíamos que ias marcar".
Gostava de jogar a ponta de lança?
Sim. Era uma missão impossível. Como é possível um jogador como eu, um defesa central, ser ponta de lança? Eu dava o meu melhor, claro que não podia ser melhor do que o meu ponto de lança que lá estava porque ele tem essas características, eu não tenho. Era uma missão impossível. Mas dava resultado.
No meio disso tudo nasce o seu segundo filho.
Sim, aí já não estive presente porque estávamos a fazer um digressão no final da época 1996/97, na Tailândia. Recebi uma notícia triste porque o meu filho Hugo nasceu com muitas dificuldades respiratórias. Muito grave mesmo, teve de ser entubado, a minha mulher a chorar e eu sem poder fazer nada. Falei com os directores para me deixarem regressar mais cedo, mas eles disseram: "João, nós também vamos embora dentro de dois dias". Íamos ter uma final com o Inter de Milão. Nesse torneio eram quatro equipas, o Boca, nós, o Inter de Milão e a selecção da Tailândia. Nós íamos jogar a final, e era importantíssima para o clube em termos financeiros, porque quem ganhasse recebia muito dinheiro. Quando cheguei e encontrei o meu filho entubado foi muito difícil.
As complicações resolveram-se?
Sim. Tive de comprar máquina de oxigénio, ele ainda foi algumas vezes internado com falta de ar, foi complicado. Principalmente para a minha mulher porque as mães têm uma sensibilidade diferente, uma ligação muito forte aos filhos, diferente do pai. A mãe tem aquele sentimentalismo, são as mulheres que os carregam e trazem ao mundo, cuidar deles faz parte da sua natureza, por isso só ela sabe o que sofreu. Mas felizmente esses problemas foram ultrapassados, o coraçãozinho dele lá fechou, porque ele tinha sopros e dificuldades em respirar e tudo passou.
Entretanto na segunda época joga pouco com o Fernando Santos. Porquê?
O Fernando é um grande treinador, foi dos melhores com quem trabalhei mas ele gosta muito de experiência. Gosta muito de ter experiência em campo. Ele falava comigo, dizia-me para continuar a trabalhar, mas eu sabia que era muito difícil com Aloísio e Jorge Costa na equipa. E na última época então foi terrível.
O que aconteceu?
Era o meu último ano de contrato com o FCP. O presidente veio ter comigo e disse-me: "João temos aqui um clube para ti, no estrangeiro, pode ser importante para ti, é uma liga muito boa, o clube é bom". Era a liga inglesa e o clube era o Sheffield Wednesday. Antes disto, na época anterior já havia uma guerra profunda entre José Veiga e Pinto da Costa.
Que guerra?
A guerra tinha a ver com negócios de empresário e jogadores. Mas vem um bocadinho do filho do presidente, que na altura começa a trabalhar com o Veiga. É que primeiro houve uma guerra entre pai e filho, por causa da mãe. O Alexandre não aceitou que o Pinto da Costa tivesse deixado a sua mãe, a grande mãe de que tanto gosta. A relação entre pai e filho partiu-se completamente e gerou-se uma guerra, depois o filho começou a trabalhar com o Veiga, entretanto Pinto da Costa soube que o Veiga desviou alguns jogadores do FCP para os rivais e não perdoou. Já se sabe que quando Pinto da Costa põe uma coisa na cabeça não há ninguém que consiga desviá-lo do que pretende. Ele começou a pôr os jogadores do Veiga de lado. No final da época senti já não estava muito confortável, sabia que ia sobrar para mim. Tanto que eu, o Panduru, uma série deles, fomos recambiados para a equipa B por causa dessa guerra. Começámos a época e senti que o Fernando Santos não contava muito comigo.
Porque tinha recebido ordens?
Possivelmente. Sabe que um presidente e um treinador unem-se... mas não quero falar porque não sei. O que sei é que o presidente é uma pessoa muito inteligente, que percebe muito de futebol, que escolhe os seus jogadores para a época desportiva. Escolhe os treinadores e jogadores certos. Logo nos primeiros anos senti que quando o Pinto da Costa não gostava de um jogador, era posto de parte. Comecei a sentir-me desconfortável no final da época, um bocado longe, eu até me dava muito bem com ele, ele chegou a dizer-me: "Eu é que vou ser o teu gerente de conta, vou controlar a tua conta bancária". Ou seja, havia uma ligação forte, que depois se estragou por causa de uma guerra que começou entre pai e filho, este depois junta-se ao Veiga, o Veiga também desviou alguns jogadores para os rivais, o presidente não aceitou bem isso…
O que fez?
Tivemos um jogo treino da equipa B contra uma equipa da Maia e fui o único que fui jogar pelos juniores. Pensei: “Bom, já percebi onde é que eu estou, para onde é que eu vou e aqui só tenho um caminho". O Reinaldo Teles entretanto liga-me para ir ter aos escritórios da SAD. O presidente foi muito directo. “João tenho um clube para o qual podes ir já, o Sheffield Wednesday de Inglaterra ou então vais para a equipa B". Tudo muito simples. Ele não se expunha, não falava sobre a vida dele ou se tinha problemas com o Veiga, mas nós sabíamos o que se estava a passar.
O que respondeu?
Disse-lhe que ficava triste por estar a descartar-me porque achava que tinha sido sempre uma pessoa importante no clube, tinha criado amizade com todos os jogadores, fui feliz no clube, dei muitas glórias aos adeptos, dei muitos pontos ao clube e respondi-lhe: "Eu sei que vou embora porque há aqui uma guerra e eu não sou o responsável por isto. Mas você e o treinador entendem que não tenho lugar, muito bem, vou ter de pensar e vou ter de falar com o meu empresário". E ele logo "Sim, sim. Fala com ele. Fala com ele. É o que tu tens aqui e diz-nos rapidamente porque temos de tomar um decisão". Liguei ao Veiga, e ele também foi directo "João, se quiseres ir para o Sheffield vais. Prometo-te uma coisa, se aguentares este ano todo na equipa B, para o ano estás numa equipa grande aqui em Portugal. Garanto-te que em Janeiro tenho um contrato para ti. Até lá não, porque não é legal, só a partir de Janeiro é que podemos fazer isso. Mas se aguentares estes quatro meses sem nada, e sei que vai ser difícil para ti... agora é uma decisão tua".
Foi uma decisão difícil?
Sim. Falei com a minha esposa. Fui ver quem era o clube inglês, não era um grande clube, mas é sempre prestigioso jogar na primeira divisão inglesa. Liguei ao Veiga e disse-lhe "Se você me promete, eu aguento". Ele voltou a prometer que em Janeiro eu estava ou no Benfica ou no Sporting. Assim aconteceu. foram quatro meses difíceis. O meu treinador era o Ilídio Vale, que hoje é treinador adjunto do Fernando Santos.
A seguir vai para o Benfica.
Antes há outra história. Estive então a treinar na equipa B, nem jogava sequer pela equipa B. Fui para lá eu, o Panduru, o Folha e outros jogadores. Foi muito difícil porque parecia que estava a voltar à estaca zero. Foi tudo tão bonito até aí, os campeonatos que ganhei no FCP, eu ganhei tudo no FCP. E de repente parece que caiu o mundo. Estar um ano sem jogar foi muito complicado e ainda por cima houve uma altura em que o presidente deixou de pagar, durante três ou quatro meses.
E tinha de acreditar que o Veiga arranjava um clube em quatro meses.
Pois. Entretanto passou o ano novo e ele liga-me, diz-me para ir a Lisboa ter com ele. Fui com a minha mulher e filhos. Vou ao escritório dele e quem lá estava? O vice-presidente do Sporting, Luís Duque. O treinador era o Inácio, com quem falei depois e estava muito contente por eu ir para o Sporting. Assinei pelo Sporting por quatro anos e havia uma cláusula muito grande no caso de alguém corromper o contrato assinado. E passado pouco tempo o Inácio é despedido, a direcção do Sporting sai e fiquei preocupado. Eu tinha um contrato assinado com o Sporting mas... Falei com o Veiga, perguntei-lhe se estava tudo bem. Ele diz que sim. Passado uma semana o presidente do FCP ligou-me. "Vem aos meus escritórios que quero falar contigo". Fui.
O que aconteceu?
Ele muito calmo, muito tranquilo, como sempre, disse-me só isto. "Olha, se tu pensas que vais para o Benfica ou para o Sporting estás muito mal enganado porque não vais nem para um nem para outro". Eu fiquei calado. Eu não conseguia reagir, porque ele no fundo já sabia que eu tinha assinado o contrato, ele já sabia. A verdade é que passadas umas semanas sai um acordo entre o Sporting e o FCP que dizia que nem os jogadores do Sporting iam para o FCP, nem os do FCP para o Sporting. Aí é que me caiu tudo. Liguei ao Veiga. "Calma, calma, que vou resolver isto". Acaba a época e o único contrato que tinha assinado era com o Sporting. Disse ao Veiga: "Vou de férias, foi um ano muito difícil para mim, quero sair daqui. Vou uma semana, quando voltar, se não tiver isto resolvido, se o Sporting não me quiser, muito bem, tem toda a legitimidade de não querer, é uma nova direcção, mas eu tenho um contrato e alguém vai ter pagar o valor que lá está".
E ele?
Só me dizia para ter calma, que ia resolver o assunto. "Eu acreditei em sim, estive um ano parado por sua causa. Eu é que fui a vítima. Acreditei em si e podia ter ido para Inglaterra. Se quando chegar de férias não tiver algo de bom, até pode ser no estrangeiro, eu arranjo um advogado e alguém vai pagar este dinheiro, provavelmente será o Sporting. Eu sei que é muito amigo do Luís Duque, não quero estragar nada, nem arranjar confusão com ninguém, quero é a minha vida resolvida. Não me querem, paguem-me". Nessa altura tinha 26, 27 anos, não era fácil um clube bom vir ter comigo, até porque eu parecia o desaparecido em combate porque estive um ano parado.
Quando regressa...
...Voltei passada uma semana, sem nenhuma chamada do Veiga. Liguei-lhe, não me atendeu. Fui ao escritório dele. Disse-me que estava a tratar do assunto. Faltava uma semana para começar o início da época das equipas. Ele pediu-me uma semana. E assim foi. Na véspera da apresentação do Benfica, liga-me: "Amanhã vais ter comigo ao estádio da Luz. Estacionas o carro mesmo ao lado da estátua do Eusébio". Cheguei, ele estava à minha espera, fui ter uma conversa com o presidente da altura, Vilarinho. Já estava em funções também o Luís Filipe Vieira. Estávamos os quatro na mesa. E acho que também o Simões. Disse-lhes que representar o clube do coração é sempre algo de especial e um orgulho. Falámos e acertámos o contrato. E há algo que nunca mais vou esquecer.
Conte.
Eu vinha de um clube ganhador, com Jorge Costa, Aloísio, João Pinto, com pessoas de carisma, emblemáticas que te ensinam como é que te mexes no balneário, como é que podes ganhar. Tentei introduzir isso no Benfica. E lembro-me que na primeira intervenção que tive, nesse mesmo dia quando assino o contrato, fiquei completamente desiludido, frustrado. Viro-me para o Vilarinho e digo-lhe: "Este ano temos de formar uma boa equipa para sermos campeões. Temos de ser campeões". E a resposta dele: "Não, João, nós não podemos ser campeões". "O quê, não podemos? Você não quer ser campeão?". "Não, João, não podemos". "Mas não podemos porquê?". "Porque nós não temos dinheiro para pagar prémios de jogos". Eu fiquei... Não podia ser pior. Veja a grande crise que estava instalada no Benfica desde o Vale e Azevedo.
Ao dizer isso está a insinuar que os jogadores não se esforçam se não tiverem prémios de jogo?
Acho que foi uma forma de dizer que o Benfica não estava bem financeiramente. Foi uma forma de dizer que íamos tentar fazer pelo menos o 2º lugar para entrarmos nas competições europeias, às quais o Benfica já não ia há muito tempo. Nós não tínhamos equipa para o Sporting e para o FCP. O Benfica estava de alguma maneira a tentar reorganizar-se e preparar o futuro. Não era fácil arranjar jogadores porque toda gente queria ir para o Sporting e para o FCP, porque eram os clubes com melhores condições financeiras. Acho que foi isso que ele quis dizer, que íamos tentar fazer um campeonato melhor do que o ano anterior, só que disse de uma forma errada. E foi assim que tudo começou, o Luís Filipe Vieira começou a levantar o Benfica aos poucos.
Mas nessa altura ficou bastante desiludido.
Não espera ouvir aquilo. No FCP habituei-me a ganhar e nunca houve estas expressões, por causa de não pagar prémios não queres ser campeão. Quem é que não quer ser campeão? Mas aquilo foi uma forma de mostrar que não tínhamos capacidade nem estrutura para sermos campeões.
Quando chega ao Benfica quem era o treinador?
Toni. O Toni era daqueles treinadores que era impossível chatearmo-nos com ele, ou ter algum problema. Porque estava sempre tudo bem com ele, não se chateava com ninguém, é uma pessoa que ama muito o Benfica, que não consegue bater o pé. O Toni pode ser despedido 50 vezes e se for preciso volta outras 50. Ele até pode ser contratado para jogar uma semana, fazer um jogo, e vir outro, que ele não se importa porque ele adora o Benfica. É uma pessoa carismática, com um grande coração.
Como é que correram as duas épocas no Benfica e a readaptação a Lisboa?
A adaptação foi boa, Lisboa é uma cidade linda que eu adoro.
Ficou a viver onde?
Já tinha comprado casa em Cabanas, perto de Azeitão, quando estava no Porto. O Benfica perguntou se precisava de casa, mas disse-lhes que não, que tinha cá casa, foi menos uma despesa para eles. Foi uma época muito difícil no Benfica, nunca faltou nada, é verdade, éramos apoiados pelos benfiquistas, tínhamos sempre muita gente atrás de nós. Mesmo nos treinos havia muita gente a assistir. Mas o clube estava caótico, eu à vezes olhava para as paredes e a água escorria. Viam-se as fissuras no balneário, no estádio da Luz. O Luís Filipe Vieira foi levantando aos poucos, a primeira época foi razoável, a segunda já foi melhor, já fomos à Liga dos Campeões.
Qual é a melhor memória que tem do Benfica?
O dia em que conheci o Eusébio pessoalmente e quando me foi dada a braçadeira de capitão, logo no primeiro ano. Nunca pensei jogar logo a titular porque tinha estado uma época parado e havia bons centrais no Benfica.
E coisas menos boas ou estranhas?
Tínhamos o Argel, que era completamente louco.
Como assim?
Às vezes era bruto, era muito agressivo quando abordava as bolas, ninguém podia dizer-lhe nada, ninguém podia chamar-lhe a atenção. Lembro-me de uma zaragata que ele teve com o Porfírio, só porque o Porfírio lhe disse para ter mais calma. Ele passou-se completamente, foi direito ao Porfírio e deu-lhe um soco que lhe abriu o lábio. Levou um processo disciplinar e foi para a equipa B. O Argel perde o lugar na equipa por causa disso.
Foi capitão no Benfica.
Sim. O Enke quando é capitão deixa de jogar, não quis assinar pelo Benfica e acho que acabou por ir para o Barcelona e como ele não quis assinar pelo Benfica, o Jesualdo Ferreira resolveu tirá-lo da equipa, não sei se foi ele ou se foi o Luís Filipe, não me interessa, tirou-o e meteu o Moreira. Quem ficou com a braçadeira fui eu. Lembro-me das palavras do Eusébio: “Bem vindo a casa grande capitão. São precisas pessoas como tu, com a forma como trabalhas”. Ouvir isso do Eusébio que fez tanto pelo nosso país é uma coisa que marca. Foi uma época desportivamente muito boa para mim, porque me deram a braçadeira, uma segunda época muito boa, ficámos logo na frente com quatro jogos, quatro vitórias, fui chamado à selecção nacional... O primeiro jogo que faço pela selecção foi logo contra a Inglaterra. Mas depois as coisas não correm bem.
Porquê?
O Jesualdo foi mandado embora. Eu que ainda era um dos capitães, liguei ao Luís Filipe Vieira, tive uma reunião com ele, falámos muito tempo para segurar o treinador, falei com o Jesualdo também, mas era mesmo uma altura de mudança. O Luís Filipe Vieira foi buscar o Camacho mas antes ainda é o Chalana que assume o jogo. O Camacho estava na bancada. O Chalana tirou-me da equipa sem me dizer nada. Sempre fui uma pessoa que nunca pediu satisfações, aceitei. Não joguei frente ao Braga em que ganhámos 3 ou 2-0. Fizemos um grande jogo. A partir daí o treinador que viu aquela equipa chegou ao pé de mim e disse: “João, eu sei que és o capitão, que és um exemplo e um grande profissional, mas eu vou manter a equipa que jogou neste domingo”. Aceitei e disse-lhe: “Mister, independentemente de jogar ou não, eu vou continuar a trabalhar e estou cá”. Mesmo no banco dava indicadores daquilo que achava que não estava a funcionar bem. Sempre gostei de apoiar porque acima de tudo eu amava o Benfica, não era só por ser o capitão. De alguma maneira são estas coisas boas que ficam quando fui embora do Benfica.
Mas acaba por deixar o Benfica. Não lhe renovam o contrato?
Não, eu tinha mais um ano de contrato. Tive uma reunião com o Veiga e com o presidente. O mister estava a renovar a equipa, o presidente estava a tentar satisfazer os desejos dele e do clube e disseram-me que o treinador não contava comigo. E saí. Só que saí depois daquela conversa com o presidente e já não me apresentei no início de época. Soube mais tarde que o Camacho perguntou por que não fui falar com ele. Não fui porque me tinham dado ordens de que não valia a pena, que o treinador não contava comigo. Depois soube que afinal o treinador não tinha dito isso. E para o meu lugar veio o Luisão que é um grande central e um grande capitão. A liderança é uma coisa de que gosto muito e que faz parte de mim. Gosto de ser líder. Se reparar bem, no FCP também fui algumas vezes capitão, no Oriental fui capitão, quando acabei a minha carreira no FC Sion era capitão. As pessoas pediam-me para ser capitão não por ser bonito, mas porque era um líder.
Sentiu-se enganado naquela altura?
Não sei se me senti enganado ou se alguém não me queria ali. Isto de ser capitão é muito difícil. Numa equipa como o Benfica, em que toda a gente quer ser capitão, há gente com inveja. Eu não sei se foi o treinador, o presidente ou se foram alguns colegas meus. Em relação ao Camacho, e podem dizer que ele não contava comigo, acredito que era mentira. A forma como ele trabalhava comigo, como falávamos os dois, tinha uma boa relação com ele. Dizerem que ele não contava comigo… Mas tive de acreditar e como não quero arranjar confusão com ninguém... O que sei é que tinha uma boa relação com o presidente e com o treinador. Tinha lá um ou outro jogador dentro da equipa que... Não vou falar nomes. Acima de tudo sou amigo do clube e ainda hoje sou convidado para ir a festas, porque também fiz parte daquela família. Eu saio do Benfica bem, independentemente de ter mais um ano de contrato.
E como é que surge o Murcia? Como é que vai parar a Espanha?
Quando saio ainda tenho um ano de contrato com o Benfica, portanto ainda tinham de pagar-me esse ano ou passavam-me para a equipa B, mas isso eu não queria. Tive uma reunião com o Veiga, perguntei-lhe como é que era a minha situação e disse-lhe: “Mais uma vez passou-se alguma coisa esquisita. Não quero falar disso mas você deve saber, porque você trabalha no Benfica”. Mais tarde veio a saber-se que o Veiga era director geral do futebol do Benfica com o Luís Filipe. Bem, perguntei-lhe como é que era, se me arranjava clube ou não. Disse-lhe até que gostava de ir para o estrangeiro para conhecer outra culturas e para jogar. Ele ligou-me, eu estava de férias, se não me engano no Brasil, “João, já tenho clube para ti. É o Charlestown, um clube inglês”.
Mas não vai para Inglaterra.
Quando chego de férias e vou ter com o Veiga, ele começa a dizer que afinal as coisas não tinham corrido bem com o Charlestown, que eles tinham desistido, mas que já tinha outro clube para mim. Fiquei chateado. “Então o Charlestown volta atrás e você não me diz nada? Arranja outro clube e não me diz nada?”. Entretanto bateram à porta e quem entra? O presidente do Sp. Braga, cujo treinador era Jesualdo Ferreira. Cumprimentei-o educadamente, começámos a falar e ele: “João sabes que sempre te admirei, já quando estavas no FCP. E sabes que o treinador é o Jesualdo e que vamos ter um estádio novo”, foi naquela época do Euro 2004 e dos estádios novos. Fiquei sem saber o que havia de dizer. Só que se há uma coisa de que não gosto é de mentiras. Não gosto, sempre fui leal, direto e sempre disse ao Veiga para nunca me mentir. Resultado, virei-me para o presidente do Sp. Braga: “Presidente fico muito orgulhoso de saber essas coisas e que você está interessado em mim, mas eu preciso de pensar. Vou ser muito franco, não estava à espera. Não é nada contra o Sp.Braga, que é um excelente clube, está em crescimento, a cidade também, mas neste momento também vou ser muito sincero, a mim foi-me dita outra coisa. Não é, senhor Veiga?”. Disse mesmo assim. O presidente Luís Filipe Vieira ainda me diz: “João pensa bem, vais lá para cima, tens mais dois ou três anos com o Sp. Braga, que é um bom clube, e tu também já estás numa idade que não podes pensar muito...” Agradeci o cuidado, despedi-me, pedi ao Veiga para vir comigo e meti-o dentro de outra sala: “Você nunca mais me faz isto. Eu só não disse 'não' à frente dos presidentes por respeito. Mas eu não vou para o Braga. Não é que o Sp. Braga não seja um grande clube e amanhã até posso estar muito arrependido de não ter ido mas não vou acima de tudo porque você falhou comigo, não teve palavra comigo. Como você me mentiu, como não teve princípio comigo, eu não vou”.
Qual foi a reacção dele?
Começou a dizer que não tinha mais ninguém, que estava difícil, que o futebol estava a mudar… Depois apareceu-me com um clube francês, o Saint-Étienne. Disse-lhe que podia avançar. Mas não avançou com nada. Entretanto estive alguns dias com o presidente do Braga sempre a ligar-me a tentar convencer-me a ir, ligou o Jesualdo Ferreira também a tentar convencer-me, mas insisti na minha: “Mister, custa-me muito dizer não e até posso dar um passo para trás, mas não posso aceitar o que fizeram comigo”. Hoje confesso que estou arrependido e que devia ter ido.
Mas como é que aparece então o Murcia?
Através do Futre. Sou amigo dele. Estivemos juntos na selecção e o Futre é um companheiro fantástico. Estive lá seis meses, mas não foi muito bom. Fui sozinho, a família ficou cá porque tinha os miúdos na escola e por seis meses achamos que não valia a pena mudar. Depois do Murcia aparece o FC Sion, da Suíça.
Como? Através do Veiga?
Não, já não estou com o Veiga nessa altura. Conheci um empresário italiano quando estava no Benfica e é ele que me faz esta proposta. Associei o FC Sion ao Carlos Manuel que esteve lá, e assinei um contrato de três anos. Cheguei lá e foi um bocadinho como no Porto. Apresentaram-me um contrato muito bom, realmente é uma realidade diferente, a gente pensa que a Suíça não faz grandes contratos, mas neste caso foi muito bom para mim, ainda por cima em final de carreira, 29, 30 anos. Depois acabei por assinar mais um ano.
A família foi consigo?
Foi, foi toda comigo.
Como é que foi a adaptação, à língua, um país diferente?
Foi uma experiência muito boa. Uma cultura fantástica. Adoro Portugal, mas viver na Suíça é outro mundo. Não podemos comparar. Há um respeito muito grande. Ao início fazia-me confusão, as pessoas deixavam a chave do carro na ignição e iam para o café descansados. Todas as pessoas na rua diziam “Bonjour”. Tem a ver com a educação. Quanto à língua, foi difícil no primeiro ano, a minha sorte é que tinha dois brasileiros na equipa que sabiam falar francês e que iam traduzindo. O clube também arranjou um professor e começamos facilmente a falar francês. Os miúdos adoraram lá estar.
Foram para a escola inglesa ou francesa?
Francesa. As crianças têm uma capacidade fantástica para aprender. Em dois ou três meses já falavam francês. Eu só ao segundo ano é que comecei a falar algumas coisas.
Desportivamente foi bom?
Sim. Levei alguns jogadores para a Suíça. Perguntaram-me sobre o Carlitos e eu disse “tragam já o Carlitos que é um grande jogador e vai dar-nos uma grande ajuda”. Depois trouxe também o central, o angolano Kali. Muitos jogadores que foram de Portugal para lá, fui eu sempre que dei o aval, mesmo até jogando na minha posição. O meu segundo ano foi uma época fantástica, ganhámos a Taça da Suíça. Foi a primeira vez na história do futebol da Suíça que uma equipa de 2ª divisão ganhou. Mas o presidente não era fácil de lidar. Só para ter uma ideia, em três anos, tive 12 ou 13 treinadores. É um presidente apaixonado, mas é um louco e quando não há resultados em três ou quatro jogos vem outro treinador. Toda a gente conhece o Christian Constantin, é uma pessoa com uma personalidade muito forte. É um homem que gosta muito do clube e faz muito pelo clube.
Mas é na Suíça que tem a sua primeira grande lesão?
É, na minha terceira época parti a anca e estive sete meses a fazer recuperação. Voltei para a minha última época. As coisas começaram a correr bem, não sentia dores, mas depois aquilo tornou a agravar e eu disse “basta”. Tive uma reunião com o presidente e disse-lhe: “Eu não quero enganar ninguém, temos que arranjar aqui uma solução”. A solução que ele arranjou rapidamente foi: “João vais ser treinador da equipa dos sub-21”. E fui.
Já tinha curso de treinador nessa altura?
Não, não tinha. Ele meteu-me como delegado ou outra coisa qualquer e eu fui treinar. Faltavam sete ou oito meses de contrato.
Custou-lhe pendurar as chuteiras?
Custou mas acho que custava mais se estivesse em Portugal. Depois vim para Portugal, onde comecei a tirar o meu curso de treinador e fundei uma Academia de Futebol.
Onde?
Quando regressei fui passar umas férias com os meus pais, que são de Tarouca, e fui desafiado pelo presidente da Câmara Municipal. E durante quatro ou cinco anos tive uma Academia por aqueles lados. Ajudei muitas crianças, foi um trabalho muito bonito. Enquanto estava com a Academia fiz os meus cursos de treinador e fui treinador principal no Cinfães. Depois voltei à Suíça e treinei um clube suíço, Martigny-Sports. Mas fui sozinho. Depois fui para o Brasil. Recebi um convite para ir para a Portuguesa dos Desportos ser o coordenador da formação toda e também um dos directores desportivos. Só que as coisas não correrem bem porque estavam numa crise profunda financeira, os diretores começaram a demitir-se um a um. Antes de partir para o Brasil, um director demitiu-se, quando vou a caminho, no avião, há outro que se demite e quando lá chego só sobrava o presidente que era quem me tinha contratado e que depois também se demitiu. Fiquei numa situação muito complicada. Vim embora. Estive lá uma semana e um dia.
Quando regressa vai logo para o Algarve?
Eu já estava no Algarve, já tinha casa em Tavira, onde vivo. Fui desafiado por uma pessoa do Moncarapachense. Ouvi a história do clube, que não era muito boa porque já há mais de 40 anos que não estava nos nacionais, tinha um campo de futebol sintético, é uma vila muito pequenina... O Algarve ainda está em crescimento em termos de futebol, há pouca gente a ir ver futebol. Mas aceitei o desafio.
Conheceu outra realidade, a dos jogadores/trabalhadores...
Sim, isso custa, tinha essa noção de que ia trabalhar à noite, porque os jogadores trabalhavam. Depois não conheces ninguém. Mas as direcções foram espectaculares, ajudaram-me muito. Começámos a trabalhar em Abril para a época seguinte. Eu adoro trabalhar, seja no Benfica como no pior clube do mundo, mas vou tentar fazer o melhor.
E correu bem?
Correu bem mas foi muito difícil porque o alvo a abater era eu. O Moncarapachense é o único clube do Algarve que não tem bancadas. Se calhar muita gente não queria que estivesse na divisão dos nacionais. Não tem condições, campos relvados, campos com história, com uma estrutura mais elevada e mais profissional.
É por isso que chorou quando ganhou o título?
Foi muito difícil. Eu senti, principalmente no último mês, a minha equipa muito cansada. Comecei a sentir a equipa muito abatida, ou melhor, a ser abatida por parte de alguns árbitros. Sentia que estávamos a ser prejudicados, sentia que tínhamos dois ou três clubes rivais fortíssimos com outra estrutura a quererem o nosso lugar.
Quem são esses clubes?
O Ferreiras, que este ano subiu, tem uma boa estrutura, tem um bom campo e uma boa equipa. O Quarteirense, uma equipa onde se fez um investimento brutal. São só jogadores colombianos, é uma equipa muito jovem, mas com alguma experiência.
Ganha mas vem embora, Porquê?
Porque, como disse, foi uma época muito sofrida, de muito trabalho. Sabe o que é passar uma época toda em 1º lugar e chegar à última jornada e ir para 2º lugar? Sabe o que é isso? Imagine essa semana o que é que tive que fazer com os meus jogadores para acreditarem, para os meus directores acreditarem. Ninguém acreditava, ninguém. E eu tinha que fazer alguma coisa. Por curiosidade, íamos jogar o último jogo em casa contra o 1º. Era uma final e tínhamos que ganhar. Para eles bastava empatar. Começámos por marcar 1-0, depois eles empataram, faltavam 20 minutos para acabar. Ganhei 3-1 porque tive que mexer no jogo e correu bem. Aquele choro... Parece que eu tinha algumas 50 pessoas em cima de mim e, quando ganho, veio tudo cá para fora.
Sai porquê?
Porque a época a seguir não começa bem. Não sabia se ia ficar, se ia sair, começámos a preparar a época um bocado tarde e fiz o primeiro jogo mais cedo, porque íamos ter a Supertaça do Algarve. Não nos preparámos, não tínhamos equipa. Eu deixo o clube a meio da época. Saio bem, não saio chateado, só que infelizmente o clube desceu de divisão.
Quando sai vai logo para o Lusitano?
Sim, duas semanas depois recebo um telefonema do director desportivo do Lusitano, fui. Quando cheguei ao clube tinha quatro pontos com dois meses decorridos e foi complicado, mas consegui ganhar jogos, só que depois meteram-se problemas internos, parecia que já toda a gente queria ser treinador, e pensei “espera aí que já devo estar aqui a mais”. Acredito que a melhor opção foi ter saído.
Mas sai pelo seu pé ou porque eles o mandam embora?
Porque eles disseram: “Se calhar João...” E eu: “Ok, saio já”.
Está desempregado?
Neste momento não tenho clube, estou à espera de projectos. Tive a proposta de um clube mas não posso cometer os mesmos erros.
Neste momento os seus filhos estão com que idade e fazem o quê?
Com 22 e 20 anos. O mais novo, o Hugo, está a jogar no FC Sion. O mais velho está na restauração, é cozinheiro e gosta muito.
Ao longo dos anos onde é que ganhou mais dinheiro?
No FCP.
Além da academia meteu-se em mais algum negócio?
Meti-me num negócio de vestuário e confeitaria. Mas já não tenho. Entretanto fui para a Suíça, deixei entregue a pessoas que pensei serem de confiança e deram-me cabo daquilo tudo.
Os seus filhos nunca reclamaram por “andar com a casa às costas”?
Não. Se hoje for perguntar-lhes onde é que gostaram mais de viver, foi na Suíça. Têm lá grandes amigos.
Quais foram as amizades maiores que fez no futebol?
Foi com o Andrade, com quem ainda hoje mantenho contacto. Falo muito com o Jorge Costa, aprendi muito com ele, somos muito amigos. O Domingos. Acho que são estas pessoas.
Dos títulos todos que conquistou, qual foi o que gerou uma emoção maior?
Todos têm um momento, todos têm uma história. Mas para mim especial mesmo acho que foi como treinador, quando subi de divisão, porque é diferente, tu vives uma pressão tremenda, é muita gente à tua volta. Quando é uma equipa que ganha e és jogador, estás focado. Uma equipa são muitos jogadores lá dentro. Agora o grande responsável e o grande sofrimento é do treinador. E eu hoje sei o que é. Muitos treinadores diziam: “Um dia se forem treinadores, vão perceber o que a gente sofre aqui. O que a gente trabalha”. E é verdade. Por isso quando me pergunta qual foi o momento mais especial, para mim foi como treinador. Porque foi muito difícil, foram desafios muito grandes e tu tens que arranjar soluções.
Qual é a sua maior ambição a nível profissional?
Treinar, a minha missão é treinar e chegar a um patamar alto. Seria hipócrita e estúpido dizer que não gostava de treinar um clube da 1ª divisão. Mas também não posso dizer que não gostava de treinar o Benfica. Claro que gostava, mas tenho que saber em que nível é que estou. Agora a minha ambição máxima é treinar uma equipa da 1ª divisão.
Qual foi a maior loucura que fez com dinheiro?
Comprei um Porsche.
Ainda o tem?
Não. Eu ganhei algum dinheiro, mas não me saiu o Euromilhões. Hoje a indústria do futebol é um bocadinho diferente. Hoje é fácil ganhar-se muito dinheiro. Quando eu tinha 18, 19 anos não se ganhava o que os miúdos hoje ganham. Portanto a maior loucura que fiz foi ter comprado um Porsche. Lembro-me de um brinquedo que o meu pai me deu, um Porsche verde do tamanho do meu dedo. Era o carro dos meus sonhos, desde pequenino.
Dos tempos do Porto, é verdade que os jogadores são hiper controlados pelas pessoas da cidade? Sentiu isso?
Claramente. O presidente e os directores não precisavam de sair à noite. As próprias pessoas dentro das discotecas, os donos das discotecas informavam, não havia hipótese.
Viveu alguma situação chata?
Não, porque nunca gostei muito de sair ou quando saía, saía com a mulher. Um atleta tem que perceber qual a altura certa e o momento certo para sair. O gajo que não foi convocado ou que não joga e vai sair à noite, está a dar um tiro nos próprios pés porque é sempre mais fácil bater nos mais fracos.
Tem algum hobby?
Não. Gosto de ouvir programas desportivos. Adoro cinema.
Tem algum filme de eleição?
A “Lista de Schindler”. O meu actor preferido é o Anthony Hopkins.
Qual foi a situação mais caricata que viveu no futebol?
Talvez tenha sido quando o presidente do FC Sion bateu num árbitro mesmo à minha frente. Foi num jogo fora, que precisávamos de ganhar. O árbitro não esteve muito bem nesse jogo, é verdade, mas quando o árbitro apita o final do jogo, vai ao centro do terreno e vejo o presidente a entrar pelo campo adentro em direcção ao árbitro e... Eu nunca vi ninguém bater tanto num árbitro, no chão, a dar-lhe tanto pontapé. Eu era o jogador que estava mais perto, mas não consegui ter reacção. Fiquei colado ao chão. Não conseguia reagir. Depois veio a polícia e acabou com aquilo. Claro que ele foi castigado. Mas tenho outra história engraçada, no Belenenses e que mete o Ronaldo, o Fenómeno.
Conte.
Foi num jogo de apresentação do Belenenses, com o clube brasileiro Cruzeiro. Na noite antes do jogo foi comunicado que ia haver uma chuva de estrelas, uma coisa inédita. Eu na altura tinha 20, 21 anos, já tinha namorada, peguei nela e fui para a Fonte da Telha, para ver a chuva de estrelas. Ficámos lá toda a noite acordados à espera da chuva de estrelas e nada, nem uma. No dia seguinte, antes do jogo com o Cruzeiro, onde jogava o Ronaldo, o Fenómeno, o Abel Braga veio falar comigo: "João, atenção vais jogar contra um miúdo que tem 17 anos, mas que é um fora de série, muito rápido e muito tecnicista. É preciso ter alguma atenção." Eu, sinceramente, não liguei muito, embora ele falasse num miúdo que já tinha provas dadas no Brasil. Eu não sabia quem ele era e não liguei. Depois de uma noite em que quase não dormi nada, só dormi um pouco durante o dia, pensei que ia ser tranquilo. No aquecimento até perguntei quem era o tal miúdo. Olhei para ele, era franzino. Entretanto o jogo tem início e só sei que quando chegou ao final da 1ª parte eu já não sabia para onde havia de me virar. O Abel Braga vem ter comigo: "Então pá?" "Ó mister, o gajo realmente é muito rápido" (risos). Tive muitas dificuldades em segurar o miúdo, porque era um fora de série. "Eu avisei-te, disse que era assim. Por isso, vais sair." E saí, não joguei mais nessa partida. Perdemos 2-0, ambos marcados na 1ª parte, se não me engano, ele marcou o 2º golo e eu tive alguma responsabilidade. Estive alguns jogos sem jogar, porque eu desvaslorizei aquilo que o treinador disse, comprometi a equipa, mas acima de tudo foi uma lição para mim."