domingo, 13 de maio de 2018

Fama de maluco para ter sucesso

"O presidente do Sporting, Bruno de Carvalho, confessou, em singular entrevista ao Expresso, seguir, com sucesso, uma estratégia de comunicação assente em «criar fama de maluco» e «depois mantê-la».
É, aliás, o próprio Bruno de Carvalho quem assinala, prazenteiro, a eficácia desse seu tão inusitado lema.
Há, porém, um problema nessa reconhecida eficiência. Um acto, gerado por um maluco ou por um falso maluco tem iguais consequências malignas para quem sofre os efeitos desses actos. A única diferença estará no estado de inconsciência do maluco, que não sabe que o é, nem se apercebe do que faz, e no estado que apenas quer criar fama de maluco e que tem uma perfeita e total consciência dos seus actos e das suas perigosas consequências.
Em qualquer das circunstâncias, ser-se maluco ou querer fingir que o é, não me parece que possa ser admitido como uma característica positiva de um presidente de um clube de futebol. Claro que se pode argumentar, como Bruno de Carvalho argumenta, que o futebol não é ópera e, como tal, a linguagem usada deva ser básica e reles, podendo, daqui, induzir-se que se o futebol português for um mundo de doidos, pois, então, que toda a gente se finja de doida para poder sobreviver e conviver sem angústias existenciais.
Não é essa, por enquanto, a ideia que faço da perturbada realidade do futebol em Portugal, apesar de, por vezes, também me sentir tentado a achar que o futebol português caminha a passos largos para uma gaiola de loucos onde gente resistir na lucidez e na defesa da inteligência, certamente, não irá ter lugar."

Vítor Serpa, in A Bola

100.º artigo igual ao 1.º

"O nosso 1.º artigo neste espaço foi dedicado às 'Novas Leis do Futebol'. Neste centésimo artigo o tema é o mesmo, uma vez que a International Football Association Board (IFAB) procedeu a outra relevante revisão às Leis do Jogo, introduzindo várias alterações que vigorarão já a partir da época 2018/19.
Umas não assumem grande relevância no modo como a partida se desenrola, como é o caso da proibição de publicidade no local onde se encontra instalado o videoárbitro e a publicidade no equipamento dos jogadores. Outras têm enorme importância dentro do terreno de jogo, como por exemplo a norma relativa às substituições (não há limite para as camadas jovens do futebol e os regulamentos das competições podem prever uma 4.º substituição no prolongamento), a alteração à regra do fora de jogo, entre outras.
Algumas alterações terão, contudo, um impacto significativo também fora das quatro linhas. Por exemplo, passa a ser sancionado com livre directo um jogador morder qualquer outra pessoa, seja ou não um jogador da equipa adversária.
Tal como no 1.º artigo que escrevemos, entendemos que algumas destas novas regras, irão suscitar, no futuro, questões relevantes do ponto de vista de justiça desportiva. Desde logo, sendo Leis do Jogo, a sua aplicação será contestada junto das instâncias jurisdicionais federativas (por serem normas directa ou indirectamente ligadas à prática do desporto) ou gerar-se-ão ainda mais casos de fronteira, sendo dúbio se casos como estes podem ser submetidos a julgamentos no TAD por aplicação de normais semelhantes previstas nos Regulamentos Disciplinares?
«Eis um exemplo de que, ao falar de leis de jogo, também se fala de Direito do Desporto»."

Marta Vieira da Cruz, in A Bola

Eleições em ano de Copa

"Nos protestos que, sob as motivações do impeachment de Dilma Rousseff e da Operação Lava-Jato, preencheram a Avenida Paulista, a orla de Copacabana e centenas de outras praças do Brasil nos últimos anos, a maioria dos manifestantes escolheu ir para a rua com uma camisa verde e amarela da selecção vestida.
Sinal de que a relação entre política e futebol na história do século XX, que de tão próxima já mereceu textos, livros, teses e considerações, várias, também se revela, claro, no país pentacampeão do mundial.
Desde logo em 1970, quando aquele que pode ter sido o melhor esquadrão canarinho de sempre e um dos melhores da história global do futebol, motivou reacções contraditórias no povo. Afinal, pensavam os brasileiros críticos do regime ditatorial militar então em vigor, devemos torcer a favor ou contra Pelé e companhia?
É que os generais no poder haviam sequestrado a selecção para eles: o refrão “noventa milhões em acção, pra frente Brasil do meu coração”, cantado por todos, era considerado a versão futebolística do slogan da ditadura militar “Brasil ame-o ou deixe-o”, detestado por tantos.
Claro que a emoção venceu a razão e ao quarto golo de Carlos Alberto na final com a Itália os então 90 milhões de brasileiros, mesmo os que se opunham ao regime, festejaram enlouquecidos sem pensar nas consequências políticas do remate cruzado do lateral direito.
Já no Inglaterra-1966, quando o Brasil voltou a casa eliminado e humilhado logo na primeira fase, a ditadura militar, imposta no país apenas dois anos antes, se havia apropriado da selecção: a derrota, sentenciaram os generais, deveu-se à deficiente condição física dos jogadores brasileiros por oposição aos fortes e atléticos europeus; logo, concluíram eles, um futebolista tem de passar a treinar-se como um soldado.
Os tenebrosos militares não foram os únicos a usar o futebol, e a selecção, como manifesto político: outro ditador, Getúlio Vargas, que ascendeu ao poder em 1930, ano do mundial uruguaio, e suicidou-se em 1954, ano do mundial suíço, entendeu imediatamente a força política que começava a conquistar os corações de milhões de brasileiros.
E o fenómeno, como se sabe, não é exclusivo das ditaduras brasileiras - o General Videla estava desesperado para vencer o Mundial da Argentina em 1978 e Honduras e El Salvador iniciaram uma guerra após uma partida entre as duas selecções.
E nem exclusivo da América Latina - em 1934 o regime de Benito Mussolini ameaçou de morte os jogadores da selecção treinada por Vittorio Pozzo caso não vencessem o Mundial em casa. Venceram, ufa.
E nem exclusivo de tempos longínquos – afinal, hoje em dia, os vizinhos brasileiros Uruguai, Chile, Paraguai e Argentina têm no poder, democraticamente eleitos, políticos ligados ao futebol.
O argentino Maurício Macri largou as calças do pai milionário e resolveu disputar eleições no Boca Juniors, onde ganhou títulos, aprendeu o essencial da intriga política, habituou-se a gerir as emoções das classes operárias e acabou eleito presidente da Câmara de Buenos Aires, primeiro, e presidente da Argentina, depois.
Antes de ser presidente, o paraguaio Horacio Cartes levou o Libertad de novo à primeira divisão e ajudou-o a ganhar quatro títulos e a chegar às meias-finais da Taça dos Libertadores; no Chile, o homem mais rico do país, Sebastián Piñera, antes de ser presidente tornara-se o dono do popular Colo-Colo; nascido em La Teja, bairro de Montevideu, Tabaré Vásquez levou o pequenino clube local, o Progreso, ao título de campeão antes de se arriscar na política e chegar à presidência.
Em ano simultâneo de Mundial e de eleições, como reagirá então o Brasil? Os resultados da selecção serão determinantes para o voto dos eleitores? Eles separarão política de futebol?
Em 2002, ano da última conquista brasileira, na Copa do Oriente, os brasileiros em vez de manterem o statu quo – votar em José Serra, herdeiro de Fernando Henrique Cardoso, ambos do PSDB, de centro-direita – optaram por uma mini-revolução – a eleição do então eterno derrotado, sindicalista, metalúrgico e miserável migrante nordestino Lula da Silva.
Em 2006 e 2010, apesar dos dissabores na Alemanha e na África do Sul, continuaram a apostar no PT, via Lula, novamente, e via Dilma, pela primeira vez.
E no fiasco de 2014, com massacre dos 7-1 da Alemanha e derrota impiedosa para a Holanda por 3-0 no jogo de consolação pelo meio, num Mundial jogado em casa, o povo decidiu votar na continuidade: Dilma foi reeleita apenas três meses após o apito final do árbitro.
É verdade que um instituto de sondagens colocou o nome de Tite entre os candidatos e o seleccionador nacional recebeu mais votos do que muitos políticos profissionais. Mas parece que no super-emocional Brasil afinal o futebol é o futebol e a política é a política. Aliás, ao contrário de Portugal discute-me muito mais, e com muito mais paixão, a segunda do que o primeiro.
No fundo, o título está errado: no Brasil já não são as eleições, outrora um evento secundário, que caem em ano da hiper-prioritária Copa, é a Copa que cai em ano de eleições."

Dualidade de critérios — quando o futebol nos esmaga

"Os clubes são importantes para a economia do país e desempenham uma função social importante. No entanto, não devem merecer tratamento diferenciado.

Declaração de interesses: gosto muito de futebol (aquele que se joga dentro do campo), mas não sou um fã incondicional, daqueles que tudo perdoam ao desporto-rei ou às suas figuras, sejam elas dirigentes, jogadores ou adeptos.
O futebol é hoje muito mais do que uma simples modalidade. É um negócio, com tudo o que de bom e de mau rodeia os grandes negócios, mas aqui o que me interessa mais é falar da diferença de tratamento dado (pelas autoridades e não só) ao comum cidadão e às gentes do futebol. Alguns exemplos verídicos, uns que presenciei, outros que me foram contados.
Um cidadão comum vai almoçar fora no seu automóvel e, depois de muito procurar, estaciona o carro num lugar com parquímetros. Usa a aplicação da empresa municipal de estacionamento para pagar a conta e vai tranquilamente à sua vida. Quando regressa ao automóvel, hora e meia depois, espera-o uma coima, atenciosamente colocada num envelope no pára-brisas. Afinal, o lugar onde estacionou era reservado a moradores daquela zona. Distracção do condutor ou errada colocação do sinal? Não interessa. Prevaricou, pagou. Não vale de nada telefonar a dizer que pagou o parquímetro.
Um adepto de futebol vai ao estádio ver um jogo da sua equipa. Depois de muito procurar, e à falta de lugares livres, estaciona em cima do passeio, em frente às escadas de acesso a um prédio e a bloquear duas garagens desse mesmo edifício. Indignado com aquele carro estacionado naquele sítio, e com outros estacionados em cima da relva do jardim e nos vários passeios da rua, um morador daquele prédio chama a polícia. Primeiro, vem um carro com dois agentes, mais tarde o reboque da polícia municipal. Mas só rebocam o carro se houver um denunciante. O morador queixoso diz sim, senhor: “Faço a queixa.” Eis que o agente da polícia responde que se rebocar aquele carro vai ter de multar vários outros que estão na rua, incluindo de moradores, porque tecnicamente estão mal estacionados. Esses veículos tecnicamente mal estacionados, numa praceta sem saída, não estavam em cima do passeio, nem a tapar garagens, nem cima da relva. Estavam somente estacionados em paralelo ao passeio, como há décadas se faz no local, sem incomodar ninguém. Mas para aquele agente tanto faz um carro em cima da relva, do passeio, a tapar garagens como aqueles outros veículos que nada nem ninguém incomodam. O queixoso, claro, não quer ver os justos a pagarem pelo pecador e desiste da queixa. Três horas depois, o dono do automóvel regressa e volta tranquilamente para casa. Zero euros de multa.
Um cidadão comum insulta outra pessoa, atira pedras ou parte uma montra. O que acontece? É detido, julgado e obrigado a pagar os estragos.
Certos adeptos de futebol, especialmente uns quantos com tratamento especial ao abrigo do eufemismo “membros da claque”, insultam pessoas e destroem bens. O que acontece? Nada. Continuam a ter direito à tontice-mor de serem conduzidos aos estádios dos adversários, com escolta adversária, como se fossem para uma batalha.
Os exemplos que dei são muito concretos e comezinhos. Mas significam algo. São um retrato da mesma diferença de tratamento que vemos quando os bancos perdoam dívidas aos clubes mas hipotecam a casa ao desempregado que não pode pagar.
Os clubes são importantes para a economia do país e desempenham uma função social importante. No entanto, não devem merecer tratamento diferenciado. Podem e devem ter apoios transparentes e, acima de tudo, dependentes de darem bons exemplos à sociedade. Os apelos à violência, a boçalidade, a falta de fair play deviam ser impeditivos de terem qualquer ajuda do Estado. Assim talvez o ar do nosso desporto ficasse um pouco menos poluído.insulta outra pessoa, atira pedras ou parte uma montra. O que acontece? É detido, julgado e obrigado a pagar os estragos."