quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Tragicomédia e um olhar de futuro

"1. Sou e serei sempre um optimista: no que toca ao futebol, por cada (ir)responsável que tente dar cabo dele, haverá sempre um responsável pelo jogo que nos devolva o sorriso. Tanto pode ser um treinador como um jogador. Basta fecharmos os olhos, pensarmos um pouco e tentar avaliar algo tão simples quanto isto: vale mais um post, um tweet, um instastory ou um golo do Soares ou um defesa de Rui Patrício? Para quem não tem dúvidas, a resposta é óbvia: é daqueles que gosta de bola e que desejaria mais jogos entre os grandes; para aqueles que estão com um olho na televisão e outro no smartphone, tablet ou PC para aliviar a bílis... lamento, mas o seu diagnóstico é reservado.
Mas o clima anda efectivamente mau. E não me refiro ao frio, antes à loucura que anda por aí à solta. Quem navegou pela net estes dias fartou-se de rir com um excerto de um daqueles relatos nas televisões dos clubes em que estão dois tipos a olhar para uma televisão e a dizer-nos o que estão a ver e cujo final tem um daqueles punch line ao nível dos melhores sketch de humor e com uma narrativa surreal: é golo/não é golo porque o assistente anulou/anulou mal porque não está fora de jogo/afinal foi bem anulado/o árbitro e os seus assistentes são mesmos maus porque não viram aquele fora de jogo. Foi cómico mas igualmente trágico porque é verdadeiramente revelador do estado de pura esquizofrenia a que chegámos.

2. O Benfica antecipou-se a vários tubarões e contratou um menino sueco de 11 anos. A primeira reacção será de espanto mas há algumas semanas o Mónaco pagou €25 milhões ao Génova por Pietro Pellegri, um jogador de apenas 16 anos, recorde de transferências de um menor. Isto transporta-nos para uma nova realidade: o scouting é cada vez mais um exercício de futuro."

Fernando Urbano, in A Bola

O equilíbrio no país judicial

"O segredo da democracia está, acima de tudo, na acreditação das válvulas de segurança que controlam o poder político, com a justiça à cabeça

O grande segredo da vitória dos modelos democráticos (de inspiração republicana e liberal) depois da tragédia europeia da II Guerra Mundial fundou-se manifestamente na ligação parlamentar e executiva das escolhas populares. O cidadão votante apreendeu que o sentido maioritário tinha expressão - ainda que com diferentes métodos de apuramento e reflexos conjunturais - em presidentes, em deputados, em governos, em representantes regionais, em operacionais autárquicos. Por outras palavras, interiorizou que a sua participação na gestão do “bem comum” ia para além da participação eleitoral e se estendia às decisões vitais da sociedade em que se inseria e das quais dependia. A liberdade implicou compromisso e assunção, conferidos pelo nexo de representação política nos eleitos e nos designados. Essa consistência do poder maioritário veio, por outro lado, banir os estados de excepção, os golpes militares, as situações de força maior que desafiavam a legalidade normativa e a normalidade institucional. Veio tornar seguro o sistema, num edifício de vasos comunicantes entre a rua e o poder que permitiu a ascensão de um Estado social de direito na Europa, a competitividade económica, a construção da CEE, o abate do Muro de Berlim e a aproximação dos povos de leste. Essa representação política passou a ser o baluarte do crescimento, da estabilidade e da cidadania. E o apoio essencial para a certificação e a diversificação dos direitos e das garantias a um número potencialmente ilimitado de pessoas (o primado da universalidade), desde que assistidas pelo financiamento dos bens e dos serviços que alimentam a resposta às expectativas. É neste difícil trapézio, por isso, que se encontram as crises e as rupturas da Europa dos últimos 20 anos.
Diga-se, porém, que essa legitimação só é certa se for assegurada pela implementação de uma arquitectura de equilíbrio com o poder extrapolítico (mesmo que internamente). Acima de tudo, trata-se de assegurar plataformas de vigilância e fiscalização endógenas e de heterofiscalização do exercício do poder atribuído pelo “povo”. Este termina a função no momento do voto; outros terão de garantir a prevenção e a punição do risco de despotismo e de autocracia. A separação de poderes e, acima de tudo, o exercício exógeno do poder judicial está (também, mas não só) ao serviço dessa autotutela deste sistema democrático complexo que, no mais simples, visa proteger os representados (todos nós, portanto) e o interesse global (ou “público”, num sentido mais restrito e parcial).
No entanto, quando se trata do poder judicial garante, há uma grande diferença para o poder político garantido: não estão a justiça e os seus agentes ao serviço de qualquer agenda - ainda que, como agora se diz e se pratica, comunicacional - de satisfação ou de concretização dos interesses (mesmo que supostos) dos representados e garantidos. O que é compreensível para a conquista e a manutenção do poder político não é aceitável nem saudável no poder das autoridades judiciárias, enquanto baluarte do sistema. Se assim não for - a não ser em casos extremos de alarme social -, está aberto o caminho para a demagogia, para uma espécie de tirania, para a opressão e para uma certa forma de exclusão. Em suma: para se concretizar o risco de adulteração dos princípios democráticos da igualdade e da legalidade. E, pelo caminho, para se ampliar a voz dos arautos dos populismos radicais e das jurisdições de pelourinho, que têm na ressonância mediática a viabilidade do seu programa e a caução de uma ideologia perigosa para a credibilidade das válvulas de segurança do sistema. Em conclusão, estará feito o desenho fatal para, seguindo a cabeça de Camus, falecer a conciliação entre liberdade e justiça.
Por estes dias, olhando para o nosso país “judicial”, talvez seja útil ponderar nisto e tomar medidas."

As Flores de Manchester

"6 de Fevereiro de 1958, Munique. O relógio aponta data e local.
Sir Alex Ferguson Way. Passadeira, nova morada. A estátua de sir Matt Busby, numa rua com o nome dele. À esquerda, a United Trinity: Best, Law, Charlton. E o relógio. A apontar data e local.
Ali está ele, no cimo da South East Corner, mesmo antes do túnel de Munique.
Old Trafford é lugar mágico em cidade de pouco interesse. Um palco em que o novo dá a mão ao antigo, onde a glória e o sucesso têm memória de um pesadelo. Lugar final dos rapazes do The Cliff, antes, e dos de Carrington, agora.
O Manchester United é um clube enorme.
Ouvimo-lo repetidamente. Lemos e até o vemos. Na TV, na página da wikipedia com a listagem de troféus, em Bryan Robson, Cantona, Ronaldo, na class of 92 ou num outdoor publicitário no meio do Vietname.
O Manchester United é um clube enorme por tudo aquilo. Mas é um gigante entre gigantes porque percebe o que raramente se percebe: que a herança sentimental de um clube deve ser preservada, não apenas nas datas próprias, mas no dia a dia e longe do olhar público.
A 6 de Fevereiro de 1958, em Munique, um desastre aéreo vitimou 23 pessoas, oito jogadores do clube de Old Trafford.
Pogba, que é francês, publicou sobre as Flores de Manchester. Paul, um desses rapazes de Carrington...
Juan Mata, que é de Burgos e cresceu entre as Astúrias, Madrid e Valência, também prestou homenagem.
E Marcus Rashford nasceu quase 40 anos depois daquele trágico dia. Tem 20 anos. Que pode saber ele, que pode ele sentir sobre Munique? Que pode um tipo qualquer que chega ao United vindo de outra parte do mundo, como por exemplo as Astúrias, perceber o significado das Flores de Manchester?
Deixem que um miúdo, de 20 anos, natural da cidade vos diga.



«Quando tens 7 ou 8 anos, há pequenas coisas em redor que começas a perceber. Aos 16 ou 15 anos, foi aí que o Paul McGuinness [antigo treinador da académica] nos começou a chamar a atenção. Víamos imensos vídeos dos jogos deles, especialmente na Taça de Inglaterra das camadas jovens. Por isso, pudemos ver imagens daqueles jogadores quando eles eram novos. É muito perto de nós, toca-nos o coração e ajuda-nos a perceber, mesmo que não tenhamos estado lá. Foi um evento muito triste, ninguém merece que este tipo de coisas aconteça. Mas, infelizmente, aconteceu e o clube tem sido admirável no modo como tem formado jogadores desde essa altura, da mesma maneira que criámos os Busby Babes. Coisas destas nunca abandonarão um clube familiar como o United. Não interessa quantos jogadores novos comprem, ou qual a idade deles. Não interessa quantos treinadores ou técnicos vêm, todos eles vão entender o que significa ser deste clube.»
Um dia, quando for a Old Trafford pela primeira vez, você vai olhar para um relógio. Terá hora, mas você reparará na data e local: 6 de Fevereiro de 1958, Munique.
E ouvirá o eco eterno das Flores de Manchester."