terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

"Es um fenómeno!"

"Teria feito 76 anos no passado dia 25 de Janeiro. Eusébio! Pode recordar-se tudo sobre Eusébio, que ele merece. Sobretudo a noite em que espatifou o Real Madrid.

Em Lisboa, no dia 24 de Fevereiro de 1965, o grande Real Madrid, o fabuloso Real Madrid, monstro dos monstros do futebol da velha Europa, foi reduzido a farrapos, a uma massa inerte de jogadores incrédulos: nunca tal sucedera em nove anos de existência da Taça dos Campeões. Por nove vezes estivera o Real Madrid na prova: por sete vezes chegara à final; por cinco vezes a vencera. Em Belgrado, em 1956, tinha sido derrotado por 0-3. Recuperara em Madrid: 4-0. Em Amesterdão tinha sofrido cinco golos do Benfica: mas Puskas marcara três. Desta vez contra os golos de Eusébio(2), José Augusto, Simões e Coluna, só Amâncio conseguira responder por uma vez.
- Eusébio es um fenómeno!, grita Martín Navas, da Rádio Nacional de España, aos microfones. O grito ouve-se por toda a Península Ibérica, se calhar por todo o continente.
- Eusébio es um fenómeno!
E o Eusébio ecoava por uma Espanha conformada, desiludida, acabrunhada frente aos ecrãs da televisão, de monco caído junto aos rádios a pilha.
E o Eusébio ecoava pelas redacções dos jornais da Europa e do mundo, cruzara as fronteiras, saltitava nos fios telefónicos, corria na volatilidade do éter.
- Eusébio es um fenómeno!
Aos 9 minutos já o Benfica vai ao seu próprio meio-campo receber um passe de Raul. Parecia que esse seu recuo, atrás da linha que dividia o relvado, tinha como intenção tomar balanço, ganhar meros por onde pudesse lançar-se, imparável, na sua passada negra de pantera.
Eusébio solta-se. Leva consigo a bola colada aos pés, amarrada aos pés com o fio de ouro fino do seu talento. Eusébio está solto como as chitas nas infinitas savanas do Tsavo. Pará-lo, segurá-lo, travá-lo, é como interromper as margens de um rio quando as cheias avançam, inquietas e inexoráveis.
Eusébio corre. Que digo eu?! Não corre: voa por entre adversários e companheiros de equipa. Os seus pés têm as asas do deus Mercúrio, o seu peito alarga-se e ele respira em rabanadas de vento de dobrar árvores, de arrancar telhados, de devastar cidades inteiras.

A velocidade da luz
Eusébio sopra a mais trezentos quilómetros por hora.
Há um centésimo de segundo de silêncio.
70000 pessoas em silêncio profundo.
No momento em que pressentimos que a obra de arte está para nascer, respeitamos o silêncio absoluto da criação.
Aposto que houve um centésimo de segundo de silêncio antes de Deus criar o mundo!
A seguir houve o grito uníssimo: golo!
E houve o grito particular de um espanhol a caminho da rouquidão:
- Eusébio es um fenómeno!
Eusébio estava ainda longe da baliza de Betancort, mas pouco se importou: rematou na mesma.
A bola saiu do seu pé direito a uma velocidade de para aí trezentos mil quilómetros por segundo.
Entrou junto a um poste: parecia que sabia exactamente em que lugar deveria entrar.
- Eusébio es um fenómeno!
Treze minutos depois voltou a ser fenómeno.
Péridis deu para José Augusto; José Augusto correu pela direita, como era seu hábito, e centrou, como também era seu hábito; Torres tocou de cabeça para trás, para a entrada da área.
Até aqui tudo normal.
O fenómeno dá-se agora: a bola vem caindo, de mansinho, na frente de Eusébio, e Eusébio não a quer. Com o peito do pé, com uma violência inaudita, nega-lhe o caminho da sua chuteira.
Trezentos mil quilómetros por segundo: a velocidade da luz.
Nenhum guarda-redes é capaz de contrariar a velocidade da luz."

Afonso de Melo, in O Benfica

"A mais brilhante reunião de atletas portugueses"

"A 10 de Junho de 1944 inaugurava-se aquele que era o maior monumento ao Desporto e aos desportistas portugueses: o Estádio Nacional!

Era antiga a promessa da construção de uma infra-estrutura que honrasse o Desporto nacional e o dia da sua inauguração não foi escolhido ao acaso. A 10 de Junho de 1044, 'dia de comemoração da raça portuguesas e dum dos maiores poetas do mundo - Camões', realizou-se 'o festival de inauguração do Estádio Nacional' revestido 'de apoteótica e inédita solenidade', que contou com 'a maior assistência de todos os tempos e a mais brilhante reunião de atletas portugueses'.
'Com o Estádio repleto de multidão impaciente abrasada por sol glorificador que veio juntar-se à consagração, o cerimonial começou com o hastear da bandeira nacional no mastro de honra, situado no tôpo Sul do campo', seguida de uma parada de atletas da Mocidade Portuguesa, da FNAT e de todos os clubes portugueses convidados. Primeiro surgiu o atletismo, 'depois o hipismo, atiradores, esgrimistas, tenistas, automobilistas, remadores,velejadores, nadadores, ginastas, praticantes de pesca, de ténis de mesa, handball, basketball, volleyball, patinagem, hoquistas, rugby, ciclistas e futebolistas, desfilaram por todo o campo até se concentrarem no relvado, em tôda a sua extensão'. A inauguração do Estádio Nacional, com a presença de todos os clubes nacionais, confirmou a popularidade do Benfica, uma vez que o seu estandarte, conduzindo por Leonel Costa, foi um dos mais ovacionados pelo público: 'o nome do Benfica andava de bôca em bôca e à passagem dum dos seus grupos ouviam-se «vivas», soavam aplausos significativos e o nome dos seus atletas mais conhecidos eram vitoriados entusiasticamente'.
Para terminar a cerimónia inaugural foi proferido um discurso de agradecimento de todos os atletas portuguesas ao Governo, fortemente aplaudido pela multidão.
A coroar a inauguração do Estádio Nacional esteve um desafio de futebol que colocou em disputa a Taça Império, entre o Benfica, vencedor da Taça de Portugal, e o Sporting, campeão nacional. Ao fim do tempo regulamentar, as duas equipas estavam empatadas a uma bola mas o prolongamento acabou por dar a vitória aos 'leões', por 2-3.
A inauguração do Estádio Nacional foi destaque na capa de O Benfica e pode ser vista na exposição temporária Jornal O Benfica - 75 anos de Missão, no Museu Benfica - Cosme Damião."

Marisa Manana, in O Benfica

Vitimização e chantagem

"O Sporting vive momentos de grande conturbação.

Não restam dúvidas de que estes últimos dias foram vividos sob o mau signo para as bandas de Alvalade. Primeiro foi a assembleia geral nada pacífica realizada no pavilhão João Rocha; seguiu-se o jogo com o Estoril, um rude golpe nas aspirações leoninas, a ausência maciça dos responsáveis do clube nesse encontro da Amoreira e, para fechar de forma também desastrada, a comunicação do presidente aos sócios, ontem à tarde no estádio José Alvalade.
Tudo somado, e não é pouco, reflecte na perfeição o momento de grande perturbação que se vive para aquelas bandas, perfeitamente evitável, sobretudo numa altura em que os atletas leoninos vinham de conquistar mais dois títulos europeus de corta-mato, e em que a equipa de futebol enfrentava uma prova de fogo susceptível de poder atenuar os tempos pouco fáceis que se avizinham.
Não obstante tudo isto, que é mesmo muito, Bruno de Carvalho mandou isso às urtigas e desatou numa corrida desenfreada contra o precipício. Ou, como diz a lenda, à beira do precipício resolveu dar um passo em frente.
Num discurso estilo castrista, que durou uma hora, dividiu as suas ideias em dois sentidos: vitimização e chantagem.
Dizendo-se perseguido por todos, pessoas individuais e grupos (alguns nem sabíamos da sua existência) disparou em todas as direcções, recuando até 1906 (ano da fundação do SCP), ano em que, reforçou, surgiu o primeiro “grupelho” a fazer o jogo dos contras. Não escapou ninguém no âmbito interno, mas sobre os adversários externos faltaram-lhe as palavras.
Chantagem ao fazer o anúncio de nova Assembleia Geral e com ele colocar os sócios entre a espada e a parede, na presunção de que estes, para evitar mal maior, venham a escolher a parede.
Sendo essa nova reunião magna no próximo dia 17 significa que poderemos vir a ter mais dez dias de folclore, com a abertura de novas frentes de palavroso combate.
O Sporting não merece isto, e a situação actual do seu futebol em nada o recomenda.
Veremos então se o bom senso e a lucidez se apoderam daqueles que se têm encarregado de promover a desestabilização, com o presidente do clube à cabeça, ou se preferem continuar a deitar gasolina na já incandescente fogueira."

A chantagem de Bruno de Carvalho aos sócios do Sporting

"Bruno de Carvalho foi legitimamente eleito por quase 90% dos associados do clube para um segundo mandato de quatro anos. O Sporting ganharia em que se centrasse no essencial: governar bem o clube. Insistir neste protagonismo em que se vitimiza por coisas nas quais ninguém repararia se ele não falasse, é apenas ridículo.

Bruno de Carvalho, obviamente, nunca se pensou demitir. Na verdade, fez apenas uma pequena birra porque a maioria dos sócios presentes na última assembleia geral, depois de terem votado todos os pontos anteriores da forma como o presidente do clube queria, lhe negaram o “sim” naquela parte que configurava um aprofundamento do poder pessoal. Mais do que acabar com o Conselho Leonino e substituí-lo por um grupo de amigos fiéis, Bruno de Carvalho anseia pelas alterações disciplinares que lhe permitam castigar, suspendendo ou expulsando, os sócios maus, ou seja, aqueles que exercem a propósito do Sporting a liberdade que a Constituição lhes garante no País.
A conferência de imprensa em que anunciou a continuação, há pouco, voltou a ser delirante e incompreensível. Quase uma hora a falar para lançar uma chantagem aos sócios: ou aprovam o que ele quer, em outra AG, no próximo dia 17, ou, então sim, demite-se.
Confirma-se: o presidente do Sporting convive mal com a crítica, seja em que domínio for. Só nos últimos dias, fez uma lista de nomes de sócios considerados inimigos. Decretou um castigo a um grupo vocal. Insultou sportinguistas que lhe pretenderiam dar conselhos públicos com a melhor das intenções.
Bruno de Carvalho parece desconhecer que a unidade de um clube, como sempre, não se faz pela vontade do líder – acontece pelos (bons) resultados desportivos, nomeadamente no futebol e pela transparência da gestão.
Como presidente, Bruno de Carvalho pode reivindicar algumas coisas importantes no Sporting. Devolveu competitividade à equipa de futebol, mesmo que ainda não tenha conseguido um título de campeão nacional. Escolheu bem qualquer dos três treinadores, Leonardo Jardim, Marco Silva e Jorge Jesus, cada qual com o seu estilo, mas bem mais competentes do que era norma em temporadas anteriores em Alvalade. Incrementou o ecletismo, ressuscitando várias modalidades. Construiu o pavilhão João Rocha. Mas também tem tido um percurso errático em muitas matérias. Contratou dezenas de jogadores sem capacidade para jogarem no clube, e que, é claro, não triunfaram (algo que também ele criticava no passado, e com razão). Começou por reduzir para metade o orçamento do futebol (que considerava exagerado) e agora levou-o para o dobro do que encontrou. Lançou uma guerra aos fundos financeiros e está já hoje a contratar jogadores da mesma maneira. Perdeu a cruzada com a Doyen, à qual teve de pagar com juros. Comporta-se demasiadas vezes publicamente com uma falta de cultura e educação que não são compatíveis com o estatuto de presidente do Sporting Clube de Portugal, e de que são exemplos gritantes os seus terríveis e delirantes posts no facebook. Nada disto faz sentido.
Bruno de Carvalho foi legitimamente eleito por quase 90% dos associados do clube para um segundo mandato de quatro anos. Deveria focar-se no seu trabalho, na união do clube, não pela força mas pela razão. Alguém lhe deveria explicar como é ridículo fazer-se de vítima pela derrota da equipa de futebol no Estoril, quando esse é um drama comum de qualquer presidente de clube de futebol no mundo.
Quando venceu as eleições, Bruno de Carvalho apanhou uma conjuntura favorável. Herdou uma reestruturação financeira que só precisava de uma última discussão com a banca e beneficiou da luta que Domingos Soares Oliveira e o Benfica travaram contra a ditadura de Joaquim Oliveira e da SporTV nos direitos televisivos – e por isso conseguiu fazer um excelente contrato com a NOS. O Sporting ganharia em que se centrasse no essencial: governar bem o clube. Insistir neste protagonismo, em que se vitimiza por coisas nas quais ninguém repararia se ele não falasse, é apenas ridículo."

Ridicularização informativa

"Terminou a semana em que a comunicação social portuguesa se debruçou incessantemente sobre as notícias do caso do pedido de bilhetes para assistir a jogos do Benfica por parte do ministro das Finanças e presidente do Eurogrupo Mário Centeno, e também sobre a Operação Lex, o que possibilitou assim o julgamento premeditado por parte da sociedade civil.
Quanto ao pedido de bilhetes de Centeno, começando pelas notícias que surgiram logo após as buscas no seu gabinete, por indícios de eventuais recebimentos indevidos de vantagem - mas vantagem de quê? Assistir a um jogo de futebol? Desde a pressão sobre o primeiro-ministro para se pronunciar acerca do caso, sendo que o mesmo se aplica ao Presidente da República. É óbvio que o caso acabaria arquivado pois, se assim não fosse, aí sim, seria escandaloso. A comunicação social fez questão ainda de associar tal pedido a uma eventual isenção de IMI ao filho de Luís Filipe Vieira, não fazendo qualquer sentido, pois são os municípios responsáveis por tal.
É também penoso que as notícias sobre a Operação Lex sejam também associadas a um clube de futebol, neste caso ao Benfica. Pergunta-se: a quem foram devolvidos 80 milhões? Quem é o maior investidor individual do Sporting? É facto que estamos a falar de Álvaro Sobrinho. É facto também que, a confirmar-se este caso de corrupção, a justiça portuguesa, principalmente a magistratura, não mais será vista com os mesmos olhos. Como se costuma dizer, “há pessoas más em todo lado”, bem como corrupção, ainda para mais em Portugal, onde ser amigo implica favorecer. Há também que apurar a verdade absoluta dos factos e assim condenar aqueles que realmente forem corruptos, e deixar claro à sociedade civil que o crime não compensa, mesmo que se tenha de legislar para que tal aconteça.
Faz-se muito bom jornalismo em Portugal, isso é de salientar, mas também muito mau, e em determinados casos como os acima referidos é de deixar claro que já cheira mal!"

Sem fanatismos, sem medo, com honestidade intelectual: Duarte Gomes diz o que é preciso dizer sobre o videoárbitro

"É tão inegável quanto elogiável que, por esta altura, já foram evitados cerca de 30 erros graves devido ao bom uso do VAR. Mas também é inegável que muitos outros (não sei se mais ou menos, em quantidade) ocorreram em circunstâncias em que seria expectável que a tecnologia interviesse  

Desafiaram-me para fazer um balanço às arbitragens e, de um modo geral, às actuações dos árbitros até à data. E aceitar esse repto significa incluir nessa análise aquela que foi a grande novidade desta época desportiva: o projecto videoárbitro.
A palavra “projecto” faz ali todo o sentido. Para quem não se recorda, esta é uma ferramenta ainda em fase de testes. Fase de testes que durará cerca de dois anos (de 2016 a 2018), tempo considerado suficiente para que se recolha e analise a informação recebida das competições que aceitaram experimentar esta tecnologia.
Mas uma opinião que se preze não pode ser dissociada de duas ou três verdades que é justo aqui recuperar:
Esta ideia foi aprovada em sede de assembleia geral da Liga Portugal pelos clubes de futebol profissional. Não foi, portanto, uma imposição. Foi uma escolha. Uma escolha deliberada e consciente do futebol português. De todo o futebol português;
Essa opção pressuponha conhecer o âmbito e os limites do que estava em causa: testar uma tecnologia capaz de auxiliar os árbitros em situações relevantes do jogo, mas sujeita a um rigor protocolar e de intervenção tremendos. Porquê? Porque o receio de fragilizar o jogo – com interrupções excessivas e demoradas – foi tanto que se optou, num primeiro momento, por apertar a malha em vez de permitir consultas excessivas, estéreis e prolongadas.
Hoje não faltam vozes a querer o fim daquilo que, durante anos a fio, tanto exigiram ao futebol. Não é falta de coerência. Nós, todos nós, somos assim.
Também é verdade que nunca ninguém vendeu o “videoárbitro” como a cura para todos os males. Pelo contrário. Não faltaram avisos, repetidos até à exaustão, que este seria o “ano zero” de um meio auxiliar e que não terminaria com todos os erros de arbitragem.
Na altura, à distância, todos pareciam entender essas limitações. Clubes, adeptos, árbitros, jogadores e treinadores, imprensa… assinaram uma espécie de pacto moral de apoio, onde imperava, além da enorme expectativa, a tolerância e a razoabilidade.
A verdade é que a proximidade com o erro e a sensação de prejuízo directo logo fez ruir a utilidade desta ferramenta e hoje não faltam vozes a querer o fim daquilo que, durante anos a fio, tanto exigiram ao futebol.
Não é falta de coerência. Nós, todos nós, somos assim: vítimas da nossa latinidade e tantas vezes incapazes de separar o acessório do essencial, o casuístico do geral. Ver à distância? Só a casa dos outros. A nossa não.
Dito isto, importa agora olhar para factos e analisar o que está bem e o que não está. Com a tal distância que se exige a quem entende que a crítica, elevada e correta, é uma das melhores formas de evolução e não uma destruição oca, invejosa e maldosa do que está a ser (bem) construído.
Ao contrário do que possa ser dito pelos números que vimos recentemente divulgados (taxas de acerto a rondar os 99%), é minha opinião que as coisas não estão a correr tão bem quanto seria desejável e expectável.
O problema não é apenas da tecnologia em si, é também do homem, do árbitro que a manuseia.
É tão inegável quanto elogiável que, por esta altura, já foram evitados cerca de 30 erros graves devido ao bom uso do VAR. Mas também é inegável que muitos outros (não sei se mais ou menos, em quantidade) ocorreram em circunstâncias em que seria expectável que a tecnologia interviesse.

Tem havido 'erros limite', verdade, muitos, até
Todos já percebemos que os árbitros que desempenham a função de VAR devem obedecer à máxima da “mínima intervenção, máxima eficácia”. E todos sabemos também quais são as quatro situações de jogo em que podem atuar e em que circunstâncias o devem fazer.
Mas é precisamente a essas que nos referimos.
Não se consegue defender perante ninguém ou explicar a quem quer que seja como é que um árbitro que dispõe de tantas (ou mais, muito mais) imagens do que o adepto consiga cometer erros de acção ou omissão quando em causa estão lances protocolados que, aos olhos de toda a gente (de toda a gente mesmo), são claros e evidentes. Muito claros e muito evidentes.
Não se consegue explicar mesmo.
E isso é angustiante para quem olha para as coisas com distância, sem emocionalidade e sente -se impotente, porque incapaz de justificar algo que não tem justificação.
Tem havido “erros limite”. Verdade. Muitos, até. Os tais de intensidade, do contacto ou meio contacto, da queda facilitada ou provocada, do empurrão ou meio empurrão, que por muito que se opine – que se ache que foi ou não faltoso – percebe-se, com exercício normal de honestidade intelectual, que não exista videointervenção. Nesses convém relevar sempre a loucura momentânea dos adeptos ou a cegueira apaixonada dos intervenientes.
Mas falamos aqui de todos os outros. Daqueles que são flagrantes e logo à primeira repetição. Daqueles que se vê do sofá, com o plasma a quatro metros, uma cerveja numa mão e o controlo remoto na outra. Sem se ser especialista nem doente da bola:
“A bola bateu só no peito, nunca na mão! A camisola foi toda esticada e o agarrão foi ostensivo, não foi uma questão de intensidade ou de interpretação! A pisadela foi declarada e violenta, não foi involuntária! O jogador acertou em cheio na cara e derrubou, não foi um mero choque de duas alminhas no ar! O fora de jogo foi mais do que duvidoso, não justificava intervenção!”
São a estas que nos referimos. As tais que, por serem tão fáceis de ver, são impossíveis de perceber. 
Será que fará sentido um jovem árbitro ser VAR do um árbitro bem mais experiente e categorizado? E será que o jovem árbitro não será mais influenciado pela opinião de um VAR de estatuto superior? 
Fui árbitro anos a fio e, em matéria de erros, tirei mestrado e doutoramento. Sei que, lá dentro, tudo é rápido, rapidíssimo. Quase nunca se vê os lances tal e qual como acontecem. Ou é o jogador que passa à frente no pior momento ou escorre o suor pela cara que queima os olhos ou o holofote cega momentaneamente ou há alguém que chama e distrai… tudo perturba, tudo pressiona, tudo acontece em milésimos de segundo.
Isso percebo. Senti-o na pele.
Mas agora tudo isso tem uma ajuda suplementar, única e privilegiada: um árbitro que não tem essa pressão, que não está sujeito a esses contratempos, que está sentado diante de várias ecrãs e que vê tudo. Detecta tudo. E pode dar toda essa informação a quem está no relvado, a lidar com as diabruras do imediatismo.
Quando as falhas evidentes acontecem, levantam-se logo dezenas de perguntas: será que viram a imagem que vimos todos? Será que falhou a comunicação (já aconteceu)? Será que teve receio de intervir porque o subconsciente lhe disse para estar calado? Será que as imagens de que dispõe têm a mesma qualidade que as imagens que toda a gente vê em casa? Será que, quando amplia uma repetição para ver com maior nitidez, a definição não permite ver mais do que uns borrões? Será que o VAR recomendou a mudança e o árbitro não aceitou? Será que o árbitro esperou pela voz e o VAR não falou? Será que a mente não pregará partidas na hora de tomar uma grande decisão? Será que fará sentido um jovem árbitro ser VAR do um árbitro bem mais experiente e categorizado? E será que o jovem árbitro não será mais influenciado pela opinião de um VAR de estatuto superior?
Fica sempre a dúvida.
Daquilo que não fica é da certeza que esta é uma excelente ferramenta e que veio para ficar (como se verá em Março, após a reunião do IFAB).

Arbitrar em campo sempre foi fiferente de analisar imagens em poucos segundos
Também não fica nenhuma dúvida que os árbitros são pessoas íntegras, honestas e bem intencionadas e que desempenham a sua missão – as suas duas missões – com o maior profissionalismo possível. 
Mas podia ser melhor, podia estar a ser quase perfeito.
E o melhor mesmo é nunca nos refugiarmos em estatísticas ou no argumento de que tudo isto é muito novo, porque é precisamente esse erro que nos impedirá de evoluir e de melhorar.
Insista-se na formação e informação. Na deles (dos árbitros) e na nossa (de todos nós), que estamos sedentos de saber e perceber mais, para suspeitar menos.
Melhore-se continuamente e dentro do limite do possível a tecnologia: a qualidade do sinal, das imagens, dos zooms, da comunicação, das linhas de fora de jogo, etc.
E comece a filtrar-se a qualidade. Como em tudo na vida, há quem tenha mais e menos sensibilidade para cada função: arbitrar em campo sempre foi bem diferente de analisar imagens em poucos segundos e decidir em função delas. Que o processo seja feito por quem o faz melhor.
O caminho é este, as pedrinhas… umas fazem parte, outras nem por isso."

O pior do futebol é o topo

"Bruno de Carvalho exagera o cerco que lhe fazem dentro de um clube onde foi eleito com mais de 86% dos votos. É um demagogo com discurso confuso mas não pode ser acusado de ser timorato: exigiu ontem um plebiscito. Se não lhe derem tudo - ele disse-o, e claramente -, nada! Demite-se. É certo que é no futebol e tudo se esquece na próxima jornada, mas há sempre um risco. O que ele disse e repetiu e repetiu, sentado em conferência de imprensa e à saída, a jornalistas para gagos das orelhas, microfones estendidos para confirmarem o que fora dito há três minutos, só tem uma leitura. Bruno de Carvalho disse o que talvez lhe seja atirado à cara se não cumprir, ele disse e balizou quantitativamente sem margem para dúvidas: se na próxima assembleia geral do Sporting três em quatro votos não estiverem com ele em todas as votações, demite-se e não volta a candidatar-se. Nunca mais.
Mas é futebol e, neste, nunca pode dizer-se sempre. Em todo o caso é um risco. Um risco que só ele hoje pode correr, e nenhum dos dois outros presidentes dos três grandes se podia permitir. O do Sporting pode, por falta de comparência de alternativas e por ele, Bruno de Carvalho, dar esperança aos sócios. O mais frágil dos três clubes grandes, apesar da contumaz fragilidade desportiva e da crise directiva que agora rebentou, acaba por ter uma estabilidade interna que nem Pinto da Costa nem Luís Filipe Vieira têm garantida. Aquele por estar usado pela idade, este por suspeitas judiciais (e não desprezem o caso dos e-mails) - nem um nem outro estariam hoje capazes de ameaçar com "eu ou o dilúvio."
Tudo somado não augura nada de bom para uma das mais fortes paixões nacionais. Tudo somado deixa-nos perplexos como tanta mediocridade consiga ter maior audiência do que uma conversa entre Miguel Esteves Cardoso e Bruno Nogueira (olhem, hoje há outra, na RTP 1) e sirva de cortina para esconder a beleza de William de Carvalho a esconder uma bola (olhem, todas as semanas há um concerto)."

Bruno de Carvalho, o stand-up não é para si

"Olá, Bruno, como está? Dormiu bem? Espero que com todos os olhos fechados. Ora, segundo interpretei das suas palavras na conferência de imprensa desta segunda-feira, o Bruno, no improvável cenário de ser corrido do Sporting, considera enveredar por uma carreira no mundo do espectáculo. Sinto-me na responsabilidade - como profissional da área, ser humano solidário e vítima de vergonha alheia - de o desaconselhar veementemente.

“Eu podia ser o homem mais popular de Portugal, um one-man show”, diz-nos. É assim, Bruno, eu não teria tanta certeza. Temos de concordar de que o público do circo futebolístico não é o mesmo que alegadamente lhe encheria salas de espectáculos. Pode tentar, mas o caminho vai ser difícil. É verdade que as televisões lhe concedem de bom grado, a qualquer altura, um espaço na grelha para o seu solo de stand-up comedy, mas audiência não significa qualidade, Bruno.
Parece-me a mim que ao Bruno lhe faltará uma consciência de si próprio, uma capacidade de autocrítica, uma fluência na autoironia que, dado o seu ego do tamanho de Myanmar, não consegue ter. O seu humor passa muito pelo bashing gratuito. É um estilo? É. Mas agora, com a pressão do politicamente correto sobre a produção cultural, julga que tiradas como aquela em que insinua que o comentador Rui Santos tem um “piquinho a azedo” lhe granjearão reconhecimento na comédia? Difícil, Bruno. Homofobia, enfim, é um caminho. Mas sem punchline não vamos lá. Procure criar um humor mais relacionável e pessoal, como as vicissitudes de ser pai, os dramas de um viciado no Facebook ou as desventuras e angústias de organizar uma puta de uma gala.
A verdade é que os exemplos de trabalho humorístico que nos vem apresentando, não lhe asseguram o sucesso, pelo menos para já. Com um acting forçado e zero ritmo, o sketch em que anuncia que vai ser pai, é o cringe no seu estado mais puro. Mas atenção, talvez o problema esteja no formato. Aliás, caso se venha a confirmar a sua saída do Sporting – e se pretender efectivamente optar pela criação de conteúdos como saída profissional - talvez não fosse descabido inaugurar um canal de YouTube, daqueles que apelam a um público infantil. Tem algumas coisas em comum com tais YouTubers, como a disponibilidade para fazer qualquer coisa por atenção, estar constantemente aos berros ou a falta de espírito crítico dos seus seguidores. Só não acredito que ingira pastilhas Tide, apenas porque vêm nas cores que representam os rivais. De resto, fico à espera do react à conquista da Taça da Liga e da diss track ao Madeira Rodrigues.
Em todo o caso, não me interprete mal: o facto de eu considerar que o Bruno não irá suceder como criador de comédia, não me impede de vê-lo como uma excelente personagem humorística. Como é sabido, há profícuos argumentistas da área que o apoiam fervorosamente, pelo que não me surpreenderia que, daqui a uns anos, se viesse a saber que tudo isto não teria passado de uma sofisticada performance satírica, executada a partir de um guião extremamente competente. Seria discutivelmente a obra maior da comédia nacional – e um grande alívio para os apreciadores de futebol.
Por agora, caso esteja empenhado nesta mudança de vida, resta-me sugerir-lhe que trabalhe um pouco o texto. É que “eu quando durmo, durmo com os três olhos fechados”? Um pouco escatológico demais, não considera? O público português, hoje, está mais exigente. Essa abordagem está desactualizada. Humor sobre orifícios? Já não se faz desde 2002. Sabe o que é que também não se faz desde 2002? Oh, não. Fogo. Piada fácil. Vou-me coibir, Bruno. Vou-me coibir.

PS: Despeça o Jesus e vá buscar o Henrique Calisto, que treinou na Tailândia. Quem já jogou com monções não culpará o vento pela derrota."

O medo, os servidores e os indícios de uma tragéfia

"O futebol não deixa de nos enviar mensagens e apelos para fazermos todos os esforços que evitem a sua “morte anunciada”.
Pelo menos do futebol jogo, desporto, arte, que alcançou a dimensão de língua e sentimento universal – Esperanto. A história da Humanidade é sempre um exemplo de aprendizagem e uma prevenção contra servilismos às ordens de Donos de Ocasião.
Alberto Pimenta num dos seus livros, sempre fantásticos e intemporais, denuncia com a sua provocação poética, como se alimentam os ogres do poder.
Injustiças, alheamentos, indiferenças e egoísmos, não constituem defesas mas unicamente fragilidades e receios… Fragilidades porque ser frontal e coerente implica coragem e persistência num esforço contínuo e intenso.
Receios porque as dependências esperam sempre benefícios, pagamentos, bónus, “as 30 moedas”, que vão consumir o carácter e o prazer/privilégio de uma vida, por ausência de liberdade.
Mas não faltam candidatos para servir, para caluniar, para destruir sementes de desenvolvimento, de tolerância, de inclusão fraterna.
O futebol, a nível mundial, como “indústria de sucesso planetário” (usar “indústria” ligada a futebol, para além de oposição serena mas contínua, recorda Chaplin em “Tempos Modernos”) está a avançar no inverso dos fundamentos da inteligência artificial.
Em vez de benefícios, a ponta do iceberg já não esconde a imagem “vampírica” da enorme parte submersa. Corrupção, viciação de jogos, movimentação de avultados capitais com rumos indecifráveis, “batota”, conflitualidade, acima de tudo para servir um negócio de ocasião muito vantajoso nos lucros.
Não se cumprem regulamentos, deslocam-se jovens talentos para outros continentes (saltando leis), potenciam-se fluxos monetários que se movimentam em paraísos, essencialmente às ordens de quem mais lucra com os direitos das transmissões televisivas e ainda com as polémicas anestesiantes do VAR.
Neste momento, sugiro verem um filme/vídeo de família: Space Jam, com o basquetebolista Michael Jordan a “contracenar” com desenhos animados …. Certamente ficarão satisfeitos e com vontade de não se deixarem enganar. Ao longo dos últimos anos, paulatinamente, a hidra vai aumentado o número de cabeças: contratando antigas estrelas a quem provavelmente convencem de forma persuasiva, pois as mudanças são radicais: destrutivas para o futebol que promoveram e onde contribuíram para aumentar a paixão pelo jogo, mas agora ainda muito lucrativas em termos pessoais. Reparemos no poema do alemão Bertolt Brecht (1898-1956), que perseguido pelos nazis nos deixou, entre muitas obras, um pequeno poema bem “enorme”:
“Intertexto
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.”

A compra da liberdade está sempre ao virar de cada esquina. Por burrice ou simples medo de encarar a realidade, há sempre quem ache “o poder” redentor, como principal sentido para a existência. E têm direito a essa liberdade de pensar! Alguns revelam tiques de quem se julga com especial e divina missão.
Voltemos ao campo do jogo que adoro designar por mágico. Nos anos idos, os vencedores dos Campeonatos e das Taças de futebol de cada país estavam seleccionados, naturalmente e por direito próprio, para participarem nas provas internacionais: na UEFA, Taça dos Clubes Campeões Europeus e Taça dos Vencedores das Taças, entre outros torneios.
Os melhores marcadores, de entre todos os campeonatos, disputavam a Bota de Ouro (troféu para quem marcasse mais golos em cada época). Havia ainda mais exemplos mas estes já são suficientes. 
Com o crescimento da “indústria do futebol” passamos a ter a “Champions League” onde participam clubes de vários países, em função de um coeficiente de valorização de cada Campeonato/Liga, assim com na Liga Europa, onde se integram clubes que não são vencedores de algum campeonato ou taça, porém com representações alargadas e significativas para as Ligas mais “ricas”.
Em termos de Bota de Ouro, os golos não valem todos o mesmo: conforme a importância económica das Ligas, há ponderações, coeficientes e assim um golo em Inglaterra ou Espanha vale mais do que um golo em Portugal, na Suíça, na Roménia, ou na Escócia…
Primeiro vieram as transmissões televisivas, depois a publicidade e o marketing, e não nos importamos com isso. Depois os investidores, a cumplicidade política, os negócios da China e já ninguém se importa (o importante é descobrir um caminho ou viela que permita lucrar “qualquer coisita”) com o futebol, encantamento de gerações, arte e “inteligência em movimento”, desporto onde os impossíveis se sucedem e envolvem sentimentos, emoções, paixões…
Com “essas prendas” associou-se a violência e toda uma cultura que desvaloriza pessoas, o jogo, e o utiliza de forma contrária ao seu ADN e ninguém se importa, ficando somente a avidez do consumo viciante de atitudes e episódios lamentáveis.
Agora vão-nos levando para um absurdo sem sol, sem astros como Pelé e muitos outros, mas com muitas “estrelas cadentes”.
Surgiu agora mais uma criação inovadora e que marcará o futebol do futuro, segundo os seus criadores: a Liga das Nações.
Tudo muito bem delineado, muito bem apresentado, com cerimónia oficial luxuosa, com imenso “glamour”, aí está o futuro próximo.
Plateias seleccionadas, muito profissionalismo e uma imagem “perfeita”, colorida e bela.
Mas, para reflectir fica a “arrumação” das selecções por poder económico:
- primeiro os ricos/poderosos até um limite onde caibam sempre mais quatro países para manter imagem de fluidez, de abertura e de inclusão, idêntica em todos os grupos;
- depois os que aspiram a tornar-se mais ricos, os da ambição mais ou menos desmedida;
- a seguir, os remediados que procuram evoluir com alguns recursos e, quem sabe, espreitando um vento favorável ou bilhete de lotaria;
- por fim, os mais pobres, os que mais precisam de investimento para evoluir mas a que ninguém liga (uma grande Liga nunca liga a pequenas ligas).
E assim, formalmente, se organiza a democracia destes tempos onde “gurus” que nunca sentiram na face o vento do futebol, são contratados para gerir um negócio que dá milhões, como se fosse mais um produto de exportação.
“Pode o belo sonho futebolístico chinês tornar-se no nosso pior pesadelo?” (título do artigo de Álvaro Magalhães, O Jogo/28.01.2018).
O futebol é sempre muito mais.
Acredito que vai vencer mais este jogo muito difícil (com vícios fortes), graças à valiosa herança civilizacional que acabará por acordar mais gente, mais adeptos, evitando novas “barbáries” que nunca se devem repetir, por mais disfarçadas que se apresentem.
Que a inteligência artificial e a evolução social ajudem a preservar e a reforçar os valores da Humanidade. Assim se contribuiu também para limitar condições de prepotência e vícios desviantes de poder pelo poder. Egoísmos infantis em idade adulta é patologia muito grave! Viva o futebol e a emoção do jogo mágico e imprevisível."

A grande interrogação

"Foi no contacto com alguns treinadores desportivos, que fizeram o favor de ser meus amigos, que aprendi, mesmo antes dos meus estudos da “filosofia da práxis”, que… não sabe quem não faz! E fui repetindo, ano após ano, a quem me ouve: quem não pratica não sabe! Hoje, digo o mesmo a esquerdistas e a direitistas, a crentes e ateus, aos meus amigos e aos que me detestam. Mas passo a palavra a quem mais sabe do tema do que eu: “A primeira revolução industrial ocorreu entre 1760 e 1840, aproximadamente. Desencadeada pela construção de caminhos de ferro e pela invenção da máquina a vapor, deu início à produção mecânica. A segunda revolução industrial, que começou no final do século XIX, prolongando-se pelo início do século XX, tornou possível a produção em massa, impulsionada pelo advento da electricidade e da linha de montagem.
A terceira revolução industrial começou na década de 1960. É habitualmente chamada revolução dos computadores, ou revolução digital, porque foi catalisada pelo desenvolvimento dos semicondutores, da computação mainframe (década de 1960), dos computadores pessoais (décadas de 1970 e 80) e da Internet (década de 1990). Ciente das várias definições e argumentos académicos, usados para descrever as primeiras três revoluções industriais, acredito que estamos hoje no começo de uma quarta revolução industrial. Esta revolução começou na viragem deste século e baseia-se na revolução digital. Caracteriza-se por uma Internet muito mais móvel e omnipresente, por sensores mais pequenos e mais potentes, que se tornaram mais baratos, pela Inteligência Artificial e pela Aprendizagem Automática. As tecnologias digitais, centradas em hardware, software e redes de computadores não são novas, mas estão a criar rupturas com a terceira revolução industrial; tornaram-se mais sofisticadas e, como resultado, estão a transformar as sociedades e a economia global” (pp. 9 e 10).
Esta citação, que não foi breve, do livro A Quarta Revolução Industrial (Levoir, Marketing e Conteúdos Multimédia, Lisboa, 2017) da autoria de Klaus Schwab, presidente executivo do Fórum Económico Mundial, diz-nos que um mundo novo entrou de nascer. Mas voltemos ao livro. A sua premissa principal “é que a tecnologia e a digitalização revolucionarão tudo” (p. 12). Donde se infere que estão a idealizar-se e a nascer novas formas alternativas da prática desportiva. Podendo evocar, como ninguém, o clima encantatório da sociedade britânica vitoriana e portanto a consolidação, como força social, da burguesia, o desporto nasce como a corporização dos valores e normas de conduta da primeira revolução industrial. No entanto, embora o amanhecer da burguesia, ainda é a aristocracia a classe social dominante. Poderá, por isso, escrever-se sem receio que, porque nasceu nas public schools e nas universidades, o desporto é, principalmente, de ascendência aristocrática. Deverá sinalizar-se , a propósito, que os reis D. Carlos, em Portugal, e Afonso XIII, em Espanha, foram cultivadores apaixonados da prática desportiva. Como aristocrata era o barão Pierre de Coubertin. Isto, sem esconder que, nas universidades com a maioria de ascendência aristocrática, os “desportos colectivos”, como o futebol e o râguebi, não pareciam adequar-se à bizarra afectação, ao maneirismo postiço de alguma fidalguia (o hipismo, o tiro, a esgrima pareciam satisfazer muito mais os ideais de um gentleman). Foi nas public schools onde os filhos da burguesia predominavam que os “desportos colectivos” em primeiro lugar se desenvolveram, num claro sintoma de uma consensualidade firmada por uma classe ascendente. Entretanto, entre as classes populares (entre o proletariado) o corpo não passava de um mero instrumento de trabalho.
Não é de estranhar, assim, que entre os pioneiros do clubismo desportivo português se contem antigos estudantes de cursos superiores britânicos e pessoas com uma mundividência racionalista “A terceira revolução industrial começou na década de 1960. É habitualmente chamada revolução dos computadores, ou revolução digital”. Durante a década de 30 e 40 e 50, na Europa, as ditaduras estatizaram o desporto. Volto a Espanha e a Portugal: nos países ibéricos, copiou-se, imitou-se, reproduziu-se o sistema desportivo da Alemanha nazi. À Falange espanhola e à Mocidade Portuguesa foi confiado o desporto escolar. Os cursos superiores de Educação Física integravam, não a Direcção-Geral do Ensino Superior, mas a Falange, em Espanha, e a Direcção-Geral da Educação Física, Desportos e Saúde Escolar, em Portugal. O desporto, em Portugal, deveria obedecer à Ordem que Salazar decretara, nas ruas e nos espíritos – ordem fundada na trilogia Deus, Pátria e Família, do discurso de Salazar, em Braga, em 1936, durante as comemorações, ruidosas e festivas, do 10º. aniversário da “Revolução Nacional”. O desporto era portanto controlado pelo Estado e transformava-se em mais um factor de “normalização” do País, “segundo uma representação mental, esquematicamente fundada na religião (Deus), na nação (Pátria) e na obediência (Autoridade)” (Filomena Oliveira e Miguel Real. O Teatro na Cultura Portuguesa do Século XX, Vega, Lisboa. 2016, p. 77). Gustavo Pires, catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e um intelectual que cultiva, como poucos, não o ortodoxo, ou o heterodoxo, mas o paradoxo (aliás, como o faziam António Sérgio e Agostinho da Silva) – Gustavo Pires, no seu livro Olimpicamente – a rutura de Pierre de Coubertin com a Educação Física (F.M.H., Cruz Quebrada, 2014) lembra palavras de Pierre de Coubertin: “A noção de Desporto é hoje, como ontem, a única força verdadeiramente activa e durável, em matéria de educação física. Se ela se apagar e desaparecer, a educação física apagar-se-á também, como um balão que perde o ar” (p. 66)...
A quarta revolução industrial “não se refere apenas a máquinas e sistemas inteligentes e conectados. O seu alcance é muito mais vasto. Ondas de novas descobertas ocorrem simultaneamente em áreas que vão desde o sequenciamento genético à nanotecnologia, passando pelas energias renováveis ou pela computação quântica. É a fusão destas tecnologias e a intersecção entre os domínios físico, digital e biológico que tornam a quarta revolução industrial radicalmente diferente das revoluções anteriores” (op. cit., p. 11). Mas há necessidade de constituir uma galeria de interrogações, nenhuma delas entendida como mónada: é possível planear a quarta revolução industrial, em povos que ainda não viveram a segunda, ou seja, em 17% da população mundial?
E a mesma interrogação é de levantar, diante de mais de metade da população mundial, que ainda não tem acesso à Internet e portanto onde a terceira revolução industrial ainda não se completou ou até iniciou. Antecipam-se inovações verdadeiramente fantásticas que apontam os 100 anos, como média de vida, para as novas gerações. Trabalhos teóricos, densos e sistematizados, garantem o aumento da produtividade, a melhoria da qualidade de vida, a criação de novas empresas; “espera-se que mais de 50 mil milhões de dispositivos estejam ligados à Internet até 2020” (op. cit., p. 130); proclama-se, como inevitável, maior capacidade para viver de forma independente e um competente controlo remoto das nossas casas; serão mais rápidas e eficientes as chamadas de emergência, os avisos, os alarmes; assinala-se, com certeza indubitável, um mais o baixo custo da prestação de serviços, o aumento do acesso à educação, mais e melhor emprego e avanços inesperados na medicina e na cirurgia. Tudo isto implica espantosos desempenhos desportivos (mais espantosos do que os actuais). 
Mas uma grande, imensa interrogação se levanta, no meio da total desteologização do pensamento: e é possível um desenvolvimento verdadeiramente humano, numa sociedade tecnologicamente avançada e moralmente ameaçada? O antropocentrismo radical, num horizonte que recusa Deus, levou-nos ao niilismo dos valores, à falta de significação e sentido para o mundo em que vivemos. Vale a pena viver, sem valores, sem transcendência, sem Deus? Donde viemos? Onde estamos? Para onde vamos? Já ideologizámos o saber científico, já fizemos de todos os desejos uma categoria antropológica, já libertámos todos os “imperativos categóricos” do convívio com qualquer religião. E estão aí, à vista do mais limitado cidadão, que a corrupção, a inveja, o ódio, a violência parecem aumentar ao mesmo ritmo do desenvolvimento informativo, científico e tecnológico. Pode concluir-se, portanto, que a dignidade do ser humano exige mais do que ciência, ou tecnociência, ou tecnologia. A dignidade humana está antes e depois de todas as dimensões em que a nossa existência se manifesta e desdobra. Já li, numa entrevista do Prof. Agostinho da Silva, que “o mundo tem tantas possibilidades que até o impossível parece possível”. Mas o ser humano já sabe que o positivismo comteano e os demais positivismos que a História regista – envelheceram, estiolaram, faliram. E sabe também que uma tecnociência, sem ética, anula a possibilidade, no ser humano, de uma existência em plenitude.
Não, não digo que o pensamento perca a sua vocação provocatória, inovadora e crítica. Sem ela, germina a insuportável rotina e todo um conjunto de impedimentos ao livre curso do pensar. O que digo é que um pensamento, sem entraves, um pensamento livre e libertador, encontra na complexidade humana mais do que tecnociência. O próprio princípio de indeterminação de W. Heisenberg significa, para mim, que me considero um humilde comentarista dos grandes filósofos, que há uma Razão, para além das razões. A essa Razão eu, um não crente fanático, um intelectual não fingidor, que aprendo com os ateus e com os crentes, chamo Deus.
Escrevi acima que “um pensamento livre e libertador encontra, na complexidade humana, mais do que tecnociência”. Ora, porque não há desporto, mas pessoas que praticam desporto, o mesmo acontece necessariamente, na prática desportiva. Há mais do que tecnociência, na prática desportiva. A relação dialética teoria-experiência, facto-interpretação, na alta competição, coloca-nos diante de temas metafísicos e teológicos de que não se fala nos manuais do treino desportivo. Se há pessoa, neste mundo, que tem escutado desabafos de toda a sorte de treinadores desportivos – sou eu! Não há, nesta minha afirmação, um assomo que seja de estúpida vaidade. Pretendo acentuar tão-só que a minha “prática teórica” permite-me alguma “prática” e, por isso, a palavra que honestamente pode conceptualizar e não só emocionar. Por outro lado, resultados recentíssimos de investigação científica desmontaram toda a estrutura de um saber unicamente físico-químico-matemático, no vasto mundo das relações humanas. O nosso parentesco essencial com a matéria, a nossa flagrante animalidade não escondem que somos pessoas dotadas de emoção, de razão e de linguagem; que a ciência e a filosofia não conseguem erradicar, em cada um de nós, aspirações puramente religiosas que vão até onde as indispensáveis ciência e filosofia não chegam.
Em todos os jogos de futebol, há jogadores que rezam, à vista de toda a gente. Porque pensam pouco? Porque não leram nunca, nem Descartes, nem Espinosa, nem Locke, nem Hegel, nem Darwin, nem Marx, etc., etc.? Porque ainda não saíram da segunda revolução industrial? Por esta razão muito simples, se bem penso: porque somos mais do que ciência e filosofia. Nós e… os jogadores de futebol! E um treino desportivo não passará de um erro tremendo, se o esquecer."