quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Dar a volta por baixo

"Sempre associei o termo “chicotada psicológica” ao despedimento de treinadores bigodudos e indistintos em equipas do fundo da tabela. Aparentemente, agora até o José Mourinho está ao alcance dessas chicotadas psicológicas, dessa execução vulgar dos vulgares. Dantes ele tinha as costas largas, protegido pelo talento, pelas vitórias, pela aura triunfante. Agora tem as costas mais largas – tão largas que estão ao alcance de chicotes psicológicos mais curtos.

José Mourinho continua a ser o “melhor treinador” - defende Rui Vitória. Haverá critérios técnicos insondáveis que justifiquem essa asserção, talvez os mesmos critérios que ainda justificam Rui Vitória no Benfica. O meu crivo é outro: se o Mourinho de 2018 aterrasse em Lisboa, será que interrompiam uma entrevista em curso ao Santana Lopes de 2007? Supondo-se que não, questiono seriamente o epíteto de “melhor” treinador.
E se fosse o Mourinho de 2018 a chegar durante uma entrevista ao Santana Lopes de 2018? Neste cenário, a não interrupção teria contornos ainda mais drásticos. Um “Special One” incapaz de roubar tempo de antena ao “not so special anymore” do Partido Aliança, permanece assim tão especial? Ao dar-se este episódio, a grande dúvida para a carreira futura de Mourinho passaria a ser qual o patrocínio do seu boné nas conferências de imprensa (os amigos pacenses não se sintam amesquinhados; estou seguro de que há mais clubes a usar a estratégia do sponsoring achapelado). 
Nos tempos áureos no Chelsea, José Mourinho chegou a referir George Clooney como o actor ideal para retratá-lo no cinema. A escolha pode parecer estranha, tendo em conta que Clooney é um par de anos mais velho que Mourinho, e que uma biografia cinematográfica, à partida, cobriria sempre períodos de maior juventude do treinador (o que requereria muita maquilhagem na meia-idade do Clooney). Mas, tenho de admitir que o casting não é descabido. Faz sentido que, ali em meados da década passada, o grisalho-precoce mais charmoso do futebol inglês se equiparasse ao grisalho-precoce mais charmoso do cinema mundial. Agora que os cabelos brancos do português já não são precoces, e que o desaire profissional desafia qualquer charme, talvez a Mourinho restasse um Diogo Infante cabisbaixo, ou um Luís Esparteiro emperucado.
Ainda sobre cinema, lembrei-me do Manoel de Oliveira – o mais consagrado dos nossos cineastas cabe nesta crónica sobre o mais consagrado dos nossos treinadores. Há a mania de pensar-se em Oliveira como um realizador enfadonho – e esse equívoco é normalmente propagado por quem nunca lhe seguiu a carreira. Com Mourinho, temos o inverso: há a mania de não se pensar que ele é um treinador enfadonho, e só quem lhe tem ignorado a carreira recente é que cai em tal esparrela. À partida, nunca haverá nada de errado em levar-se contenção e aborrecimento para as tácticas de um jogo de futebol, mas o Mourinho (e o Manoel) são a prova de que Portugal é dos países mais inconscientes no capítulo dos bocejos.
Acreditem que a única crueldade deste texto reside no tipo de escrita a que me concedi, como se uma rotina estafada de stand-up se tratasse. A crueldade não está em bater no Mourinho numa semana em que ele se encontra em baixo; basta olhar para os últimos meses do treinador - as atitudes explosivas, os papos nos olhos, a vida anacoreta, o desdém dos seus jogadores, o desapoio institucional - para perceber que esta não é particularmente a semana em que Mourinho se encontra em baixo. Creio até que a semana lhe tresanda a liberdade (e a indemnização avultada).
No fundo, o meu texto vem com o seu quê de terapêutico. Um texto de inoculação. A Mourinho não faltava humildade, faltava humilhação. Foi fanfarrão, arrogante, bully, poço de deselegância, e não há cura para tais maleitas quando se está acobertado por esta condição: ser-se o melhor do mundo. Em tempos, não só Mourinho foi o melhor do mundo como, ainda por cima, estava bafejado pela confiança dos que sabem bem o que são. Há que aproveitar a dúvida, estes momentos de mortalidade, não para bater no ceguinho, mas para surrar o mourinho. Aproveitar para uma moção de censura em jeito de voto de confiança.
José, estou aqui a vaiar-te porque torço por ti. Volta a ser o excitante Mourinho do Leiria, o intratável vitorioso do Porto, ou até o timoneiro por quem os jogadores do Inter de Milão estavam dispostos a morrer. Volta mesmo a ser o escudeiro linguístico dum Bobby Robson. Volta até a perder a cadeira vermelha para sebastianismos em torno do Toni, ou a ganhar sebastianismos que levantem Santana Lopes da cadeira. Mas, por toda a estima que te tenho, não dês a volta por cima. Volta por baixo, rumo ao topo."

1 comentário:

  1. É o KARMA, excelente artigo de opinião…----- Por vezes a vida leva-nos e pede-nos HUMILDADE, se tivermos essa inteligência , damos a volta do fundo para o topo, é uma lição que exige aprendizagem . O melhor para o José Mourinho, TODOS os Benfiquistas e adeptos do futebol e um Agradecimento ao autor do post, pela sua perspetiva dos fatos...Feliz Natal e Votos de um Bom Ano ...

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