"Por favor, doutora.
Por favor.
É um homem a implorar.
A doutora é uma magistrada. Juíza, procuradora, não sabemos; nem o seu nome. Já o do homem, sim. É suspeito de homicídio.
Desde 2013, o Código de Processo Penal decreta que o interrogatório dos arguidos deve ser gravado em áudio ou vídeo. Neste não houve vídeo. Houvesse, e teríamos também, além da voz, a imagem deste homem divulgada às oito da noite, na abertura de um bloco dito noticioso de um canal de TV.
Porque é num canal de TV que ouvimos a voz deste homem a implorar. Num canal de TV, no início de um bloco de notícias.
Mas não, não há notícia nenhuma.
Só voyeurismo. Só comprazimento nesta humilhação. Só o deleite de ter acesso a algo que não era suposto ser conhecido, cuja divulgação é proibida. Um "exclusivo", diz o pivô.
Só a destruição da dignidade de uma pessoa e da sua presunção de inocência.
Sim, eu sei: este conceito, o da presunção de inocência, não é popular. O que é popular é acusar, é exibir, é usar os processos judiciais e as suas peças processuais reservadas, cuja divulgação é interdita, como fonte de audiências, de cliques, de vendas. O que é popular é arrastar pessoas pela lama, já que já não - ou ainda não - podemos desmembrá-las no Terreiro do Paço.
O que é popular é dizer "temos o direito de saber tudo, de ver tudo, de vender tudo".
Porque o que vende é pôr a justiça à venda.
Corromper os seus princípios, usá-la como instrumento de perseguição e linchamento. Fazer da justiça exactamente o contrário do que ela é suposta ser.
Usar os seus recursos ao serviço de interesses privados, de lucros privados. E os seus intervenientes como actores de novela - uns com gosto, certamente, outros como coisas.
Não há nenhuma diferença entre esta indignidade - a da divulgação da voz deste homem que implora - e a da célebre fotografia dos foragidos do Porto tirada por um polícia e posta a circular como troféu. O abuso de poder é igual, o propósito de humilhação idêntico. E tudo ilegal.
No caso da fotografia tivemos a imediata reacção do ministro que tutela as polícias. Reputou de inaceitável a divulgação e ordenou um inquérito para descobrir os culpados. Tivemos o Presidente a fazer coro com o ministro. Tivemos a certificação de que há Estado de Direito em Portugal e de que abusos de poder não podem ficar impunes.
Sobre a divulgação dos áudios, porém, nem um 'ai'. Nem da ministra da Justiça, nem do PR. Nem sequer da Procuradoria-Geral da República, que, além de ser a detentora da acção penal em nome do Estado, é também a detentora - a dona, portanto - do processo de onde vieram aqueles áudios.
Temos, pois, de concluir que o que é inaceitável nas polícias aceita-se, bico calado, olhando para outro lado, na justiça.
Ou seja, na justiça o inaceitável torna-se aceitável.
Talvez devêssemos então dar-lhe outro nome. Justiça é que não pode ser."
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