"Não interessa o que se passou no court de ténis. Para saber que Carlos Ramos é culpado basta ter dois dados em conta: 1º, Serena Williams é uma mulher negra; 2º, Carlos Ramos é um português branco.
Uma das melhores coisas de me ter tornado um colunista regular é que, de vez em quando, me oferecem uns livros. Um dos que recebi recentemente foi o de Camille Paglia, “Mulheres Livres, Homens Livres”, há pouco editado em Portugal. Alguém que gostou dos meus artigos sobre a guarda partilhada de crianças teve a incrível simpatia de mo enviar pelo correio. Camille Paglia é uma feminista lésbica que se tem revoltado contra algumas das novas correntes do feminismo. O livro, desafiador e perturbador, é uma colectânea de vários textos, que vão desde os bastante eruditos aos que pouco mais são do que insultos a feministas de quem Paglia não gosta. Não concordo, de todo, com tudo o que escreve, mas acerta na mouche quando diz que algumas correntes feministas infantilizam as mulheres, isentando-as de quaisquer responsabilidades sobre o que fazem. De certa forma, é como se as tratassem como inimputáveis. Pudemos ver isso no fim-de-semana passado com a Serena Williams e a forma como ela se passou com o árbitro português Carlos Ramos.
Antes de avançar, gostaria de deixar claro que o grosso das minhas críticas não se dirige a Serena Williams, mas sim a grande parte das pessoas que a defenderam, acusando Carlos Ramos de sexismo (e racismo). Serena Williams é das melhores tenistas de sempre (na minha opinião, está no top 3 da história do ténis, conjuntamente com Martina Navratilova e Steffi Graf). A verdade é que, quando se joga a um nível tão elevado e está tanta coisa em jogo, às vezes, acontece os atletas passarem-se. Quem não se lembra de como o jogador português Pepe atacou de forma selvagem um adversário do Getafe, em 2009, ou de como João Vieira Pinto deu um murro no árbitro, no mundial da Coreia, ou dos lamentáveis protestos no Euro 2000, quando um árbitro marcou um penalti a favor de França e contra Portugal nas meias-finais do torneio, ou de como Zidane deu uma cabeçada no adversário, numa final de um campeonato mundial. Em todos estes casos, estamos a falar de grandes jogadores que, num momento, se passaram dos carretos. Depois de devidamente penalizados (alguns meses de suspensão em todos os casos, excepto no de Zidane, que fazia o último jogo da sua carreira), todos puderam continuar as suas carreiras. Também Serena Williams o fará. É perfeitamente compreensível que o facto de no passado ter sido vítima de racismo e de sexismo (e foi) a leve a sobrerreagir quando sente que está a ser vítima de uma injustiça e estando tanto em jogo. Como grande campeã, perceberá que a atitude de diva em decadência da semana passada não a leva a lado nenhum e regressará como uma pantera para alcançar o recorde que vai deixar como legado.
O que me incomodou foi mesmo a necessidade de tanta gente atacar Carlos Ramos para desculparem o mau momento de Serena. Como se o facto de ser humana (com uma história de superação de obstáculos) e de ter sucumbido à pressão não fossem explicação mais do que suficiente.
Relembremos os factos. Depois de ter perdido o primeiro set, Serena Williams é advertida por estar a receber instruções do seu treinador (o que é ilegal). Essa advertência não tem quaisquer consequências de maior. Ela protesta com o árbitro. Nada acontece. Uns minutos depois, depois de perder um jogo de serviço, permitindo que a adversária empate o segundo set, com a irritação partiu a raquete. Isto é perigoso, porque as cordas podem saltar e magoar alguém, e recebeu segunda advertência (desta vez por comportamento anti-desportivo). Como era a segunda penalização, perdeu um ponto e nada mais do que isso. Voltou a reclamar e o árbitro nada fez. O jogo continuou, a partida não lhe estava a correr de feição e no período de descanso seguinte, voltou a reclamar. Na sua reclamação, berra com o árbitro, chamando-lhe mentiroso e ladrão. Este deu-lhe uma terceira penalização (por abuso verbal). A terceira penalização tem como implicação imediata a perda do seu jogo de serviço. Depois de muitas reclamações e da entrada em campo dos organizadores, a adversária lá serviu para ganhar o jogo, o set, o encontro e o torneio.
Como Serena, quer na discussão que teve com o árbitro quer, mais tarde, na conferência de imprensa, se queixou de ter sido vítima de sexismo, logo meio mundo se agarrou a essa acusação. A discussão quer nas redes sociais quer na imprensa foi pontuada por uma enorme desonestidade intelectual. Para acusar o árbitro português de sexismo, foram buscar vários casos que ele teve com tenistas homens para dizer que ele não tinha aplicado o mesmo padrão. A verdade é que uma análise cuidada desses casos mostra que ele tem sido incrivelmente consistente. Já penalizou Djokovic, Nadal, Andy Murray por diversas vezes e por situações similares: instruções do treinador, partir raquetes, insulto ao árbitro. E, diga-se, de tudo o que pude ver, nada se comparou ao comportamento de Serena Williams. Ou seja, simplesmente, não há qualquer base para o poder acusar de sexismo. Mas, claro, nada disso interessa a quem é imune a factos.
O melhor artigo sobre este assunto talvez tenha sido o de Martina Navratilova no New York Times. Nesse artigo, Navratilova assume que o problema do sexismo no ténis existe e que é grave. Serena Williams foi vítima dele no passado (e de racismo também, diga-se). Mas, neste caso concreto, reconhece que não há quaisquer bases para acusar o árbitro português de não ter agido correctamente.
Sendo Navratilova uma das melhores tenistas de sempre, sendo mulher e tendo sido também vítima de sexismo, seria de esperar que tivesse uma grande autoridade para falar do assunto. Mas, como alguém lembrou na secção de comentários ao seu artigo, ela tem um problema. É branca. Como é branca não pode perceber as queixas de Serena. Mas logo alguém deu uma resposta à altura. É verdade que é branca, mas, em compensação, é homossexual.
Veja-se o absurdo a que chega a discussão: uma mulher, por ser branca, não tem autoridade para discutir o que se passou com Serena Williams, mas como é homossexual já pode. Pois, ser homossexual nos anos 70 e 80 (os seus anos áureos) era difícil, pelo que teve de aturar muita discriminação.
Nisto, fico com pena de o árbitro Carlos Ramos não ser homossexual. Aí teríamos dois campos em batalha: os que acusariam Serena Williams de ser homofóbica e os que acusariam Carlos Ramos de ser machista e racista. Seria interessante ver quem ganhava.
Mas voltemos ao início e ao discurso vitimizador. Não faltam dados e exemplos que mostram que o sexismo e o racismo são um problema na nossa sociedade. Inventar sexismo onde nada indica que exista apenas tira força à causa: a próxima vez que uma mulher se queixar, com razão, de ter sido vítima de sexismo, haverá mais pessoas a questionar-se se tal será verdade. É triste, mas é assim, é essa a principal consequência deste tipo de vitimizações absurdas.
Há ainda um outro problema, que é o reverso da medalha. Se os méritos concretos do caso não interessam, se o que interessa é o contexto social e histórico dos envolvidos, então pode-se fazer o mesmo relativamente ao alegado agressor, neste caso, Carlos Ramos. Foi exactamente isso que fez Crystal Marie Fleming, professora na Stony Brook University, com um currículo académico muito interessante, que inclui um doutoramento em Sociologia na Harvard University e que já tem alguns artigos e livros publicados. Lendo alguns dos escritos da professora Fleming, rapidamente se percebe que ela faz parte do grupo de feministas que Camille Paglia tanto critica no livro que referi no início.
Vale a pena ver o que ela escreveu sobre Carlos Ramos. Começa por explicar que ele é português e europeu. Portugal, que é uma sociedade altamente sexista e racista, que foi criada com a colonização e a escravatura. Depois, para explicar como o sexismo português é grave, dá o exemplo dos juízes portugueses que usaram a Bíblia para justificar que um homem batesse com uma moca com pregos numa mulher. Depois, fala da incapacidade dos portugueses de lidarem com o seu passado esclavagista. Com base nisto, a conclusão só pode ser uma: “Carlos Ramos nasceu em 1971, em Lisboa — debaixo de uma ditadura patriarcal ultra-ortodoxa. O seu sexismo na final tem de ser entendido, não só no contexto global de misoginia, mas também no sexismo extremo que existe em Portugal”.
Qual a conclusão disto? Os factos não interessam. Não interessa o que se passou no court de ténis. Como escreveu Rebecca Traister na New York Magazine, as regras que Serena violou são irrelevantes. Para saber que Carlos Ramos é culpado basta ter dois dados em conta: 1º, Serena é uma mulher negra; 2º, Carlos Ramos é um português branco."
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!