segunda-feira, 23 de julho de 2018

“Nos anos 90 compravam-se árbitros como se compram tremoços. Trios de arbitragem, não era só o árbitro”, Parte II

"Para quem se torna jogador-treinador, descalçar em definitivo as chuteiras pode ser mais difícil do que parece. Mas a insistência e o conselho sensato do irmão mais velho ajudou Manuel José a abraçar em definitivo a carreira de treinador que, diga-se teve mais sucesso do que a de jogador. Contador de histórias nato, recorda episódios vividos com presidentes fortes como Valentim Loureiro, Mesquita Machado, Pimenta Machado, João Rocha, Manuel Damásio ou Sousa Cintra num percurso que acaba por ficar muito ligado ao Egipto onde se tornou uma espécie de "Deus" pelas conquistas no Al-Ahly. 

O início da carreira de treinador foi mais difícil do que estava à espera?
Não foi fácil, por variadíssimas razões. A minha primeira experiência como treinador é numa situação atípica, porque era treinador e jogador. Aqueles que eram os meus pupilos, eram ao mesmo tempo os meus colegas. Eu treinava e fazia as mesmas coisas que eles faziam, parava os treinos e corrigia, E chegávamos ao jogo, eles olhavam para o banco e não estava lá ninguém, porque o treinador estava dentro do campo com eles. Os resultados começaram a ser maus e as ordens que dava começaram a não ser cumpridas. Então, propositadamente, comecei a incompatibilizar-me com quase todos. Dava-lhes cada bronca para criar uma certa animosidade... E ela foi crescendo, não chegou ao ponto em que era insuportável, porque não deixei. No momento certo, juntei o grupo e disse: “Meus amigos, acho que têm a obrigação de já ter percebido que sou o treinador e as minhas ordens são para cumprir, quem não cumprir não joga. Só há um que joga sempre desde que eu dê essa ordem, sou eu. Eu é que mando. Ainda por cima só me falta ser presidente. Sou jogador, capitão de equipa e treinador. Gosto de todos vós, mas a amizade é da porta para fora. Mas, se andarem a fazer asneiras lá fora, ponho-vos na rua. Vocês são profissionais. Se aceitei isto é para ter sucesso, mas não de qualquer maneira, sem vocês não consigo ter sucesso. Agora, se vocês quiserem continuar a jogar na 2ª divisão, tudo bem, digo ao presidente e fico só como jogador, contratam outro treinador e se calhar vocês ficam todos satisfeitos, mas eu não, porque acho que tenho capacidade para vos liderar, para subirmos de divisão e para nos valorizarmos todos”. A partir dessa conversa, juntamente com aquele livre que deu em golo salvador, fomos por aí acima. Mas sabe que naquela altura não era permitido ser treinador e jogador.

Então como é que fez?
O senhor Lusitano Gil, que já faleceu, e que foi um jogador histórico do Sporting de Espinho, e treinador também, deu o nome dele para haver um treinador. Mas no fundo era eu. Quando subimos de divisão, no dia da festa, convidei-o para estar no banco, era justo.

Na época seguinte passou só a treinador?
Sim, o presidente, Carlos Padrão, queria que eu continuasse só como treinador. Ainda lhe disse que gostava de jogar, mas ele disse que eu só ficava como treinador se deixasse de jogar. A decisão era minha. Liguei ao meu irmão que normalmente era o meu conselheiro, por ser mais velho e sensato. “Com 33 anos estás à espera do quê? Vais jogar mais dois ou três anos e depois? Vens para aqui ter comigo? Se há essa possibilidade... Já subiste de divisão, já é um sucesso, deixa de jogar, aguenta”. E foi o que fiz.

Foi muito difícil deixar de jogar?
Eu tenho o chamado sono reparador, durmo entre 5 a 6 horas, não durmo mais, mas durmo que nem uma pedra. Aliás, tenho um episódio engraçado no Egipto à conta disso. Vivíamos no 18º andar, no Hotel Marriott, tinha treino no dia seguinte às 10 horas e eram três e meia da manhã e estava a ler a Odisseia de Homero, que tem 600 e tal páginas e eu ainda ia nas 400 e tal. Olhei para o relógio, a minha mulher a dormir. Fechei o livro, apaguei a luz e "desapareci", que é o que acontece quando adormeço. Eram umas 5 e meia da manhã, a minha mulher: “Acorda, acorda, acorda”. Estava em pânico. “Um tremor de terra, um tremor de terra?!”. Eu olhava e não via nada. “Olha tudo a tremer, tudo a tremer”. Eu olhava e zero. “Isso foi algum pesadelo que tu tiveste”, disse-lhe, e voltei a dormir. No dia a seguir não falou comigo um minuto sequer. Segundo dia, zero, tão zangada que estava comigo. A seguir fomos jogar fora, a Porto Said, onde aconteceu aquele assassínio. Vou jantar com os meus adjuntos egípcios e diz um: “O mister sentiu o tremor de terra?” E eu: “Qual tremor de terra?”. Eles começaram a relatar [risos]. Liguei para a minha mulher: “Desculpa, tinha acabado de adormecer, não senti coisa nenhuma”. Três dias depois voltei a pedir-lhe desculpa. Durmo assim, "apago".

Mas estava a dizer que quando deixou de ser jogador...
Quando deixei de ser jogador, sonhava que estava a jogar futebol, sonhava que estava no jogo e que fazia isto e aquilo. Levei uns anos... Quando comecei como treinador punha um bloco de notas e uma esferográfica na mesinha de cabeceira porque às vezes estava na cama e lembrava-me de alguma coisa para fazer no treino. Preocupações que não tinha como jogador. Antes chegava à cama, amanhã há treino, logo se vê e dormia. Como treinador tinha que organizar o que ia fazer, como é que tínhamos de funcionar no treino, a preparação para o jogo, então volta e meia estava meio a dormir e de repente lembrava-me de uma coisa, acendia a luz e escrevia.
A Fez de Espinho a sua base. É onde vive actualmente.
Tenho uma atracção muito grande pelo mar, desde criança, habituei-me à pesca.

De onde lhe vem o gosto pela pesca?
Numa terra de pescadores como era Vila Real de Santo António, que tem rio e mar, aprendi a nadar aos seis anos, sozinho. Já mais tarde, aos 16, 17 anos, ia com amigos para um sítio onde antigamente entravam os carregueiros no Guadiana, para um sítio chamado muralha, e fazíamos uma coisa de doidos. Perguntávamos aos miúdos de cinco, seis anos: “Sabes nadar?” E eles: “Não.” E nós: “Queres aprender?” E eles: “Quero”. Agarrávamos neles e atirávamos para dentro do rio. Depois mergulhávamos todos atrás deles. Passado um quarto de hora já estavam a nadar, mas primeiro apanhavam um susto desgraçado [risos]. Era uma irresponsabilidade tremenda, aquilo era alto.

Ia à pesca com o seu pai?
Não, ele nunca gostou de pesca, nem sabia nadar. A pesca vem de ir com um tio meu que era motorista numa traineira de pesca de sardinha. Tinha filhos, um pouco mais velhos do que eu, e ao fim de semana, o meu tio que era doido por pesca e tinha um bote, levava-nos para a foz do Guadiana à pesca. E eu com sete, oito anos ia com ele apanhar robalos, era um espectáculo. Ele é que me meteu o vício da pesca. Ainda hoje gosto mas não tenho companhia para ir. Fiz esta costa toda até à Costa Nova, em Aveiro, até comprei um jipe quando não era proibido andar de jipe na praia. Ia pela praia e quando encontrava uma enseada, pumba. Se não dava nada, metia as canas no jipe e lá ía por aí fora. Pescava por todo o lado. Fui dez anos à pesca para os Açores, no verão. Passava os dias na pesca. Tenho lá amigos que têm barcos e íamos a 15, 20 milhas da costa aos tubarões. Fui à pesca em Moçambique, em Cabo Verde, em Maceió, no Brasil. Aqui era uma constante, era só ter um dia livre e lá ia eu.

Além da pesca o que gosta mais de fazer nos tempos livres?
De ler. Leio 40, 50 livros por ano. Acho que foi o ter de deixar de estudar tão cedo. E o esforço que o meu pai e a minha mãe fizeram para que eu estudasse. O meu irmão infelizmente não pode, teve que ir trabalhar e eles fizeram um grande esforço para que tivesse outro tipo de educação. A paixão que o meu pai tinha por mim e pelo raio do futebol, ele gostava mais do futebol do que sei lá o quê. Ele tinha sido jogador, jogava e trabalhava, foi amador, primeiro no Lusitano, depois como não resultou foi para o Glória. Acompanhou-me sempre o esforço deles e o ter deixado de estudar... A culpa não foi minha, mas foi uma burrice, uma criancice. Marcou-me. O meu irmão também gostava muito de ler quando era jovem. Comprava aqueles livros do Sandokan, o Tigre da Malásia e eu devorava aquilo tudo.

O que é que lhe dá mais prazer ler?
Sei lá, já li tanta coisa. Devido à vida que tinha como treinador, e que infelizmente agora não tenho, aprendi que o futebol é caracterizado por um mediatismo tremendo. Um indivíduo passa de herói a cobarde ou a vilão em hora e meia. A pressão psicológica é tremenda. Costumo dizer que há jogadores que em clubes pequenos são grandes jogadores e quando chegam a um clube grande transformam-se em pequenos jogadores. Tudo porquê? Pela atitude mental. No futebol um indivíduo passa do anonimato a figura pública em três jogos. No meu tempo, muito mais do que hoje, havia uma impreparação tremenda para esse mediatismo, e como quase todos vínhamos de classes sociais menos favorecidas, em que se tinha uma dificuldade maior em lidar com o sucesso ou com o insucesso... É preciso ter um carácter competitivo e profissional fortíssimo e a psicologia tem que estar sempre presente. Por isso li os livros de psicologia todos. Li tudo o que havia, desde a antiguidade até hoje e li todos relacionados com a minha profissão. Para além da formação da equipa e da metodologia de treino, dei sempre muita importância à parte psicológica, porque isso é que comanda tudo.
Das três primeiras épocas como treinador no Sp. Espinho, o que realça?
No primeiro ano em que deixei de ser jogador para ser treinador ficámos em 7º lugar, a melhor classificação desde sempre do Sp. Espinho, que só esteve um ano na 1ª divisão. Mantivemos o clube pela primeira vez na sua história na 1ª divisão. O segundo ano correu bastante bem e no terceiro ano foi uma debandada quase total. O Sp. Espinho estava com dificuldades financeiras, foi mudando de presidente, era o terceiro presidente, não havia dinheiro e os jogadores mais importantes saíram para outros clubes. Lembro-me de termos começado a trabalhar com 12 jogadores, como aconteceu depois no Sporting. Tive de andar a apanhar jogadores “a laço”. Fui buscar jogadores à 3ª divisão, à 2ª divisão, fui buscar jogadores que os outros clubes não queriam. E apareceu-nos um calendário em que nos últimos quatro jogos tínhamos dois clubes grandes, que já não me lembro quais eram... Um era o Sporting, de certeza, mas eram quatro jogos para perder e eu tracei a meta. “Meus amigos, a cinco jogos do fim vamos jogar com o Penafiel em casa - o António Oliveira era jogador/treinador do Penafiel - e se nesse jogo não fizermos no mínimo os 23 pontos, vamos descer de divisão. Os últimos quatros jogos não vamos ganhar nenhum. Com a pressão da descida de divisão, não vamos ter equilíbrio emocional, nem confiança para poder ganhar os jogos”. A cinco jogos do fim jogamos aqui em casa com o Penafiel, ganhámos 3-1, mantivemo-nos na 1ª divisão. Foi um feito heróico.

Como e por que razão vai para Guimarães a seguir?
Já tinha cumprido a minha missão de manter o Sp. Espinho três anos seguidos na 1ª divisão, com um honroso 7º lugar. Pensei: "Não estou aqui a fazer mais nada". Vivo aqui e vou continuar a viver aqui. Entretanto sou convidado para ir treinar o Boavista.

Quem o convida, o major Valentim Loureiro?
Não foi ele que me convidou. Um dia terminei um jogo contra o Boavista aqui, em Espinho, e já em casa estou a ouvir na rádio os resultados dos outros jogos e de repente começam a passar uma entrevista com o major Valentim Loureiro, que informa que o próximo treinador do Boavista é o senhor Hermann Stessl, que estava no FC Porto. Bonito serviço. Tinha combinado encontrar-me com um engenheiro, do Boavista, um homem grande mas que não me recordo o nome, no dia seguinte. Dois dias depois telefona-me o dr. António Pimenta Machado, do V. Guimarães. Acertei contrato com o V. Guimarães, com uma responsabilidade tremenda que era substituir o José Maria Pedroto. E lá fui eu. O Vitória já há 14 anos que não ia às competições europeias e conseguimos ir.

Deu-se bem com Pimenta Machado?
Apanhei uma guerra de primos. Só me tocavam filmes destes [risos]. O primo era Armindo Pimenta Machado, um industrial com muito dinheiro, que foi sempre super simpático comigo, não tenho nada de mal a dizer dele, só não gostava que ele fosse para o banco comigo. Ele era o chefe do departamento de futebol, era vice-presidente e ia para o banco comigo. Eu ia de fato de treino e ele ia de casaco de pele de foca, que custava um dinheirão. Eu ria-me, às vezes brincava com os jogadores: “Só falta levar uns peixinhos para dar à foca” [risos]. Mas foi sempre simpático e oferecia dinheiro aos jogadores.

Oferecia dinheiro como?
Oferecia prémios, aumentava o prémio do bolso dele. Ainda não tinha começado o campeonato, fizemos um jogo de apresentação da equipa em Guimarães, na pré-época, contra o Celta de Vigo, que tinha como treinador o Milorad Pavic, um senhor que tinha treinado o Benfica. Ganhámos e o Armindo no final do jogo foi ao balneário e aumentou o prémio, não sei precisar em quanto. Isto foi num sábado. Na 3ª feira, manhã de treino, estou sentado na rouparia, na galhofa com os jogadores, chega o presidente, dr. António Pimenta Machado e diz alto e bom som, naquele jeito altivo que tinha: “Ó Manuel José, o prémio são 20 contos”. Eu digo: “Ó doutor, estão aqui os jogadores, que são testemunhas, o prémio são 30 contos”. E ele: “Já lhe disse, o prémio são 20 contos”. E eu: “O senhor Armindo Pimenta Machado no final do jogo foi ao balneário e ofereceu mais 10 contos, portanto são 30 contos. Os problemas que o senhor tem com o seu primo isso é um problema seu, não tenho nada a ver com isso e o senhor está aqui a desautorizar-me em frente dos jogadores, portanto, amigos, tudo para o treino”. E deixei-o a falar sozinho. Fomos embora. No final do treino vem ele: “Ó Manuel José, pronto, são 30 contos, mas é a última vez. Aqui quem oferece os prémios, quem diz o que é sou eu, não é o meu primo”. Mas tenho mais histórias com ele.

Conte lá mais uma.
Quando jogávamos em casa fazíamos estágio em Esposende e um dia ele pergunta: “Ó Manuel José, a que horas é que vão para Esposende?”. Isto era numa sexta-feira depois do treino. “Amanhã vamos treinar às 10 horas, deixo os jogadores ir almoçar a casa, às três horas da tarde toda a gente aqui, e vamos embora”. E ele: “Então eu vou convosco”. E eu: “Ó doutor, eu dou uma margem de cinco minutos, quem não estiver, inclusive eu, fica em terra”. E ele: “Não se preocupe”. Três horas e cinco minutos e o nosso amigo Pimenta Machado não estava lá. Digo para o chofer: “Vamos embora”. Depois de jantar apareceu no Hotel do Pinhal, em Esposende, e nem sequer tocou no assunto [risos].

Então davam-se bem.
Honra lhe seja feita, quando se tratava de discutir contratos, aquilo era uma pedreira tão grande, a gente partia pedra e partia, e quando parecia que a pedra estava toda partida, ainda aparecia mais pedra para partir. Fiz duas reuniões em que as coisas pareciam estar acertadas mas depois vinha um jogo em que empatávamos ou perdíamos e voltavam as reuniões. Às tantas vi que íamos ter dois jogos seguidos fora chatos e depois tínhamos o FC Porto, em casa, com o José Maria Pedroto. Jogávamos na Póvoa contra o Varzim, que estava a fazer uma época excelente com o José Torres como treinador. Ele apareceu, esteve lá connosco e por volta da meia-noite peço-lhe cinco minutos. “Ó doutor já percebi que estou a ser julgado pelos resultados. Estou aqui há seis meses, vim substituir o José Maria Pedroto, que é um ícone dos treinadores em Portugal, e o doutor já teve tempo de perceber se tenho ou não capacidade para treinar o Vitória. Os resultados têm sido bons até agora e o senhor está a julgar-me por resultados menos bons. Agora vamos jogar dois jogos seguidos fora, o Marítimo que está para descer de divisão, o Varzim está a jogar muito bem, portanto vai ser assim: depois desses dois jogos vai ter de decidir se quer que eu continue ou não”. Empatámos 0-0 com o Varzim, a seguir vamos à Madeira. Tínhamos jogo no domingo, sexta-feira íamos treinar em Lisboa, suponho que no Atlético ou na Luz, e depois viajávamos para o Funchal. Na 5ª feira à noite recebo um telefonema do Joaquim Rita, que é meu amigo até hoje, era o chefe de redação do jornal “A Bola” na época, e diz-me ele assim: “Manel, olha o Manuel João do Carmo João, presidente do Portimonense, quer dar-te um contrato de quatro anos”. Ninguém fazia contratos de qautro anos naquela época. Fiz uma reunião com o Manuel João, no dia seguinte, acertei tudo para os quatro anos, mas condicionado com a conversa que ia ter com o Pimenta Machado, porque queria ficar no V. Guimarães. Conclusão, na Madeira, na véspera do treino, reuni os jogadores, contei-lhes a história toda e disse que o Pimenta Machado tinha que me dar uma resposta até à 3ª feira seguinte quando fôssemos treinar, se não eu não ficaria na próxima época. Empatámos também a zero com o Marítimo. No final do jogo, já no aeroporto, aparece um director, chamavam-lhe o João Mecânico, e começa aos gritos: “Ó Manuel José, eu também mando. Você não sai daqui, você tem de ficar no V. Guimarães”. Eu tapava-me com o jornal que estava a ler e os jogadores riam-se.

E depois?
Na 3ª feira, no treino, aparece o director de futebol, António Mendes. Pergunto-lhe se já tinha falado com o Pimenta Machado e ele responde: “Ele disse para esperarmos pelo jogo com o FC Porto, no domingo”. E eu: “Então vá dizer ao doutor que quando acabar o treino vou para casa e vou telefonar ao senhor Manuel João, presidente do Portimonense, e vou vincular a minha palavra e aceitar o contrato por quatro anos com eles. E quando eu vincular a minha palavra, acabou, a minha palavra é uma escritura, já não volta atrás.” À tarde veio novamente falar comigo: “Ele continua a dizer para esperarmos pelo jogo do FC Porto”. Ele continua a julgar-me por resultados? Então está bem. Cheguei a casa, liguei para o Manuel João: “Pronto, está feito, vou ser o treinador na próxima época. Agora quero que me faça uma coisa já amanhã. Vá ao Atlético e contrate o extremo esquerdo, o Cabral, e o ponta de lança, o Rui Águas” - que naquela época tinha 25 anos. Eu conhecia os jogadores, nunca contratei jogadores sem os conhecer. Só contratei três jogadores naqueles tempos, por cassete.

Onde?
O primeiro jogador que contratei por cassete estava no Boavista: o Artur, que depois jogou no FCP e por aí fora. O segundo é quando vou para o Benfica. Eu, o Toni e o Pietra estivemos quase quatro horas a ver cassetes. O Toni tinha na ideia um jogador chamado Caju, que era pequenino e depois jogou no FCP. Eu a meio daquilo pergunto: “Quem é aquele pequenino com o número 8? Como é que se chama?”. E eles: “É o Deco”. E eu: “Ele pode vir?”. E eles: “Pode”. O Deco tinha uns 18 ou 19 anos. Fui eu que o trouxe. Já houve versões e mais versões, mas o que é verdade é verdade. O Deco vem para Portugal, mas nunca cheguei a ser treinador dele, porque ele e o Caju foram para o Alverca, do Luís Filipe Vieira, que era clube satélite do Benfica. Foram campeões da 2ª Divisão e subiram. Mas no final de Setembro fui despedido do Benfica e portanto não o cheguei a treinar. E o terceiro foi o Aboutrika, que até aparecer o Mohamed Salah era considerado o melhor jogador de sempre do Egipto.
Voltando ao seu percurso como treinador, acaba por ir para o Portimonense porque o Pimenta Machado nunca mais se decidia.
No último dia, no último jogo, que curiosamente é contra o Portimonense, em casa, era o Artur Jorge o treinador do Portimonense e nós perdemos por 2-1, foi também o dia da festa de irmos às competições europeias, o que não acontecia há 14 anos. Antes do jogo, o Hermann Stessl ia chegar ao aeroporto e o tal director, o Mendes, diz-me: “Temos aqui um contrato com Stessl mas é a si que nós queremos, assine aqui o contrato”. E eu: “Então o homem está a chegar ao aeroporto...” E ele: “Ele chega aqui amanhã, vê um jogo, come um bom almoço, bebe vinho português, que ele gosta, e vai lá para a Áustria que nós não precisamos dele para nada”. E eu: “Não, nem pensem nisso. O que está feito, está feito e acabou”.

Esteve duas épocas no Portimonense.
Sim, fiz um contrato de quatro anos e só fiquei dois, porque o objectivo era ir às competições europeias e ao segundo ano conseguimos a melhor classificação de sempre e fomos às competições europeias. Depois fui para o Sporting.

Como é que surge o Sporting?
Estive no Casino do Estoril, naquelas festas de futebol do final da época, recebi o prémio do treinador do ano - já o tinha ganho também no ano anterior com V. Guimarães -, e pediram-me para ter uma reunião com o presidente do Sporting, João Rocha.

Foi fácil chegar a acordo?
Não era difícil fazer um acordo naquela época com um clube grande. Quem é que pensava no dinheiro? [risos]

Correu bem essa primeira época?
Correu, até seis jogos do fim. Chegamos ao final da 1ª volta em 1º lugar. Só que era uma equipa com uma mescla de jogadores já com muita idade e outros extremamente jovens, portanto havia ali um desequilíbrio muito grande e isso foi-se reflectindo à medida que a pressão foi subindo. Fomos pela primeira vez aos quartos-de-final da Taça UEFA e fomos infelizes contra o Estugarda, que tinha uns três ou quatro jogadores da selecção da Alemanha. Fizemos um jogo fantástico em casa, ganhámos 2-1 e podíamos ter ganho por quatro ou cinco, com tantos golos que falhámos, e depois perdemos lá 2-0. Mas de qualquer forma fizemos jogos notáveis.

Na época seguinte começa com apenas 12 jogadores. Porquê?
Aí entrei em conflito com o presidente do Sporting. Ele gostava de mandar e eu não deixava. Lembro-me de que nesse jogo, na Alemanha, íamos no avião para lá e ele diz, à frente dos jogadores todos: “Se o Jordão jogar aumento o prémio para 300 contos”. À frente dos jogadores e eu no meio deles. Olhei para ele: “Olhe, então ele não joga”. E aí começou o meu conflito com ele. Ao dizer uma coisa daquelas à frente dos jogadores estava a fazer de mim o quê? O Jordão estava ao meu lado a ouvir e não jogou. Depois houve uma série de jogadores que saíram, fiz três listas de dispensas e três de aquisições. As três de aquisições eram diferentes porque entretanto os jogadores que queria tinham sido contratados para outros clubes, porque nós não contratávamos ninguém. Ele estava a fazer de propósito para que me fosse embora. Na última lista, que era de 10 jogadores, disse: “Se oito destes jogadores não forem contratados, demito-me”. Na véspera da apresentação, estive com o Joaquim Rita e o professor Rui Oliveira num bar e chegamos à conclusão que o melhor era sair. Mas fui para casa e perguntei-me: “Demitir-me porquê? Fiz tudo direitinho e agora vou-me demitir! Ele anda a fazer tudo para que eu me vá embora, só porque não deixo que ele se intrometa na equipa, vou sair? Nem morto”.

E?
No outro dia, na apresentação, os jogadores que tinha dispensado estavam lá todos. Foi das coisas que mais me custou. Estava o senhor João Aranha, que ainda hoje é vivo, o Otávio da Rosa, que já faleceu, o coronel Ferreira Camacho, que já faleceu, e digo: “Falem com o presidente, para vir dar as boas-vindas aos jogadores, para poderem começar a fazer os exames médicos, porque entre hoje e amanhã começamos a treinar”. O Aranha foi lá e quando veio diz: “O presidente diz para fazermos nós a apresentação e perguntou pela carta”. Era a carta que eu ia fazer para me demitir no caso daqueles jogadores não terem sido contratos. Fomos todos, menos o presidente, fazer a apresentação da equipa. E foi das coisas mais difíceis da minha vida.

Porquê?
Porque todos os jogadores que tinha dispensado estavam lá. O presidente mandou-os estar lá pensando que me ia embora. Disse-lhes: “Meus amigos, alguém, que não fui eu, induziu-vos em erro, mandou-vos estar aqui, quando alguns de vocês estão dispensados. Uns definitivamente, outros vão ser emprestados”. E fiz uma coisa terrível, foi das coisas mais difíceis, porque apesar de serem jogadores que para mim não valia a pena continuarem, tinha o maior respeito por eles, e por alguns tinha até amizade, menos com o Jordão, com quem não tinha uma boa relação. “Jordão out, tu out, tu fora, tu fora....”, à frente dos outros jogadores todos. Foi horrível.

Porque é que não tinha uma boa relação com o Jordão?
Isso é uma história que levava muito tempo a contar, nem vale a pena contar. Portei-me bem com ele, ele portou-se mal comigo. Só posso dizer isso, mais nada, de resto estar a exumar cadáveres agora, não interessa. Então à frente de todos, tive que por alguns de fora e fiquei com 12 jogadores.
O que fez a seguir?
Subi a sénior o Rui Correia, guarda-redes, e o Zé Carlos, lateral direito. Fui com 14 jogadores para estágio para a Aldeia das Açoteias. Depois disse ao Mário Casquilho: “Ó Mário pegue na máquina de escrever e escreva”. E ele foi escrevendo a carta. À medida que ia escrevendo a carta, eles todos só me diziam: “Ó mister não faça isso”. O que a carta dizia era que em função do prestígio, da grandeza nacional e internacional do clube e as dispensas e aquisições dos jogadores para reforço do plantel não terem sido feitas, a partir daquele momento, eu em vez de me demitir, punha o meu lugar à disposição da direcção. Sabia que ele não me ia demitir, tinha mais um ano de contrato, quando eu queria a reforma e o reforço do plantel. Aquilo ao início foram Lorenin [calmantes], foram copos de água e copos de leite, segundo o João Aranha, o Otávio da Rosa e o Mário Casquilho me contaram. A guerra mantinha-se. Eu pedia um jogador, ele dava-me outro. Alguns dos jogadores que pedi só vieram em Janeiro, foram chegando a conta-gotas e claro que era uma inevitabilidade que aquela equipa não ia durar, não tinha capacidade para ganhar o campeonato. Entretanto o João Rocha sai e entra o Amado Freitas. Chego ao final do campeonato e mesmo sem ganharmos eu era um ídolo para os adeptos do Sporting. Passado um mês já tinha montes de sportinguistas contra mim.

Porquê?
Porque alguém manobrou, não sei quem foi, mas manobraram aquilo tudo.

A nova direcção?
Já quando eu estava com a nova direcção. Assobiavam e chateavam-me e sabe o que é que fazia? Levantava-me do banco e punha-me de pé para eles me insultarem à vontade, aquilo ainda os chateava mais. Até que acontece um feito notável: ganhámos 7-1 ao Benfica [risos]. Jogando em casa e jogando em contra-ataque. Queriam renovar o contrato comigo por mais dois anos e disse-lhes que não.

Porquê?
Disse-lhes: “Isto é irreal, o Benfica é melhor do que nós, isto é um jogo que acontece uma vez na vida”. E até hoje continua a ser o resultado mais dilatado. “Se renovar contrato convosco vocês nesta época vão ter que me despedir, porque não vamos a lado nenhum com esta equipa. Se renovar vão ter que me pagar até ao último cêntimo. Vocês é que querem renovar contrato comigo, eu não quero”. Chamaram-me doido. Quando jogámos em casa, com o Rio Ave, em Janeiro, jogou o Marlon, que tinha acabado de chegar, e o Peter Houtman, o ponta-de-lança, foi o primeiro jogo deles. Empatámos 0-0 com o Rio Ave, em casa, e eu fui despedido. Na 2ª feira fui para Alvalade, era uma contestação muito grande, mas ninguém me tratou mal e até aconteceu uma coisa marcante para o resto da vida. 

Conte.
O presidente chorava, o coronel Ferreira Candeias chorava, o Otávio da Rosa chorava, o João Aranha chorava, o Mário Casquilho chorava, o meu adjunto chorava. E eu ia dando palmadinhas nas costas deles a confortá-los [risos]. Eu, que era a vítima.

Então porque é que o despediram?
Porque a pressão já era demasiada.

Mas de quem?
Deles, dos adeptos. No dia a seguir à vitória sobre o Benfica não quis renovar o contrato e passados dois meses aconteceu isto, porque viraram a imprensa toda contra mim. Alguns da imprensa agarrei-os no ar e encostei-os contra a parede. Quem os comprou, não sei. Mas que os compraram, compraram, porque fizeram ali uma onda tremenda contra mim, puseram os adeptos contra mim.
Como é que surge o Sp. Braga?
Foi o Mesquita Machado, que era presidente da Câmara e do Sp. Braga, que me convenceu a ir salvar o clube de descer de divisão. Isso foi daquelas coisas que fiz com o coração, não fiz com a cabeça.

O Mesquita Machado é outra figura...
É. Apanhei-os quase todos. E lá fui. Salvámos o Sp. Braga de descer de divisão.

Gostou da experiência em Braga?
Não, ainda por cima porque foi na altura de eleições municipais e usavam os resultados menos bons da equipa para atacar o presidente, aquilo estava tudo politizado e eu, em vez de me ir embora, acreditei nele, que eles iam contratar os jogadores que eu queria, mas não contrataram. Foi a única coisa em que ele se portou menos bem, de resto... Ele delegava muito nas outras pessoas porque não tinha tempo.

Esteve no Portimonense, depois Sporting e a seguir Sp. Braga. A família andava consigo de casa às costas?
No Sporting não, no Braga não era necessário porque eu ia e vinha todos os dias, como fazia quando estava no V. Guimarães. A base sempre foi Espinho.

O seu filho nunca reclamou do pai andar sempre de um lado para o outro?
Reclamou, mas era a minha vida. Nunca me disse nada, mas ficou afectado por isso. Ele jogava nos juvenis do Portimonense e no final da época faziam em Lisboa um torneio para ver quem era campeão e estavam lá os clubes todos a ver, o Sporting também. Logo no primeiro ano em que fui para o Sporting, o Aurélio Pereira, de quem sou amigo, disse-me para deixar o meu filho ir jogar com eles um torneio em Espanha. Mas eu disse-lhe: “Deixa-te de histórias, deixa-o estar quieto, vou ser treinador do Sporting e há uma data de anormais que usam o nome do pai porque se calhar os filhos deles não jogam e depois começam a tratar mal o miúdo e vão-te chatear a cabeça também”. Ele insistiu e eu, burro, deixei-o ir. Ganharam o torneio e o meu filho marcou os golos todos. Queriam que ele ficasse, mas eu achei por bem, para o proteger, que não ficasse. Ele nunca mais me perdoou, nunca mais. E eu só tentei protegê-lo.

Quantos anos tinha ele nessa altura?
15 ou 16 anos. Foi uma coisa negativa que ficou para o resto da vida, mas agora não há volta a dar. A decisão foi única e exclusivamente para o proteger.

Voltando a Braga, salvou o clube de descer de divisão. E depois?
Depois fiz uma lista de dispensas e ao contrário daquilo que habitualmente fazia, que era estar sempre em cima do acontecimento, fui-me embora de férias e confiei nas pessoas. Não contrataram ninguém e começámos fragilizados, não era nada daquilo que queria. Num jogo contra o Salgueiros, suponho que em casa, empatámos 0-0, houve uma contestação tremenda, até houve um treino nessa semana em que os jogadores quiseram abrir os portões para andar à pancada com os adeptos. Porque aquilo era tudo uma questão política e mais nada. Ao intervalo do jogo com o Salgueiros disse: “Amigos, percam, ganhem ou empatem, no final deste jogo vou-me embora. Isto está tudo politizado. A bola para vocês não é uma bola, é uma daquelas minas marítimas que são redondas e que parece que vai rebentar nos vossos pés. Vocês têm medo de ter a bola, a pressão é tão grande que vocês não sabem lidar com a pressão. Não aguentam, estão-se a aviltar dentro do campo. Não têm um pingo de tranquilidade para poder jogar, por mais que vos transmitamos isso. Estou aqui a fazer o quê? Vou-me embora, não tenho prazer em dirigir uma equipa que está desta maneira. Vocês são os mesmos jogadores da época passada, que jogavam excelentemente, safámo-nos de descer de divisão, ganhávamos a toda a gente, jogávamos sem medo nenhum, contra o Benfica, o FC Porto, o Sporting, cara a cara, olhos nos olhos, sem medo. Hoje temos medo da bola, quanto mais do adversário”. No final do jogo empatámos 0-0 eles meteram-me debaixo do chuveiro com a roupa e tudo. Mas não fiquei, fui-me embora.

O que aconteceu a seguir?
O Mesquita Machado disse-me: “Vamos jogar à Póvoa, o Valdemar Custódio - que era o meu adjunto - vai dirigir a equipa, você fica uma semana em casa, pensa e para a semana volta”. Eles foram, empataram na Póvoa, mas não gostei nada que o Custódio tivesse ido, ele devia estar solidário comigo e não esteve.

Isso leva-me a outra questão. Como é que se escolhe uma equipa técnica? É o treinador que escolhe, é o clube?
Antigamente era o treinador que escolhia. Hoje não sei. Mas até hoje, excepção feita no primeiro ano em que trabalhei no Al-Ahly, no Egipto, fui sempre eu que escolhi os meus colaboradores, em função das qualidades profissionais e humanas que têm. No primeiro ano no Egipto, deram-me um argumento que fiquei sem resposta. Tinham que ter adjuntos egípcios porque vínhamos da Europa com outro tipo de conhecimentos que lá não tinham e aquilo servia de formação para os adjuntos. Perante isto o que é que eu ia dizer?. Só ao fim de cinco anos é que consegui levar adjuntos portugueses.
No Sp. Braga não volta atrás e depois?
Depois desse jogo na Póvoa fui ter com o Mesquita Machado, ele pagou-me e vim embora.

Fica quanto tempo sem clube até regressar ao Sporting?
Pouco tempo. Aquilo estava a correr muito mal no Sporting. Entretanto entrou o Jorge Gonçalves, de quem era muito amigo há anos.

De onde é que se conheciam?
Conhecemo-nos da primeira vez que fui treinador do Sporting. Ele era um sportinguista ferrenho. Ele é que se aproximou de mim. Era um indivíduo muito agradável, foi sempre impecável comigo, ficámos amigos para o resto da vida, até ele falecer. O Sporting estava em 6º lugar naquela época e ele pediu-me para ir tomar conta do Sporting. Estive até ao final dessa época e depois com o Sousa Cintra, mais ao menos a meia da época, fui embora outra vez.

Porquê?
Porque o Sporting não pagava. Lembro-me que quando regressei ao Sporting, o meu primeiro jogo foi aqui, em Espinho, ganhámos 3-0. Fui para lá para ajudar o Sporting a ir às competições europeias, fi-lo por amizade para com ele e por respeito para com o Sporting. Não tenho nenhuma razão de queixa do Sporting, independemente dos insultos - o que é normal na nossa vida -, costumo dizer que sempre ganhei o suficiente para não ouvir anormais.

Deixa de receber ainda no tempo do Jorge Gonçalves?
Sim, conseguimos qualificar a equipa para a UEFA e a seguir entra o Sousa Cintra que, para pôr as contas em dia, pagou um balúrdio. Nós tínhamos cinco meses de salários em atraso, mais luvas. Uma série de jogadores saíram, um deles extraordinário, fiz tudo para ele continuar, tinha uma óptima relação com ele, mas ele estava tão magoado que não deu.

Quem?
O Ricardo Rocha, da selecção do Brasil, que depois foi para o Real Madrid. Um enorme jogador e era um indivíduo giríssimo, com muita piada. Lembro-me que um dia [risos] o Jorge Gonçalves, coitado, que era o único que dava a cara, vai ao balneário dar a cara por causa da falta de pagamento e o Ricardo Rocha diz assim: “Ó presidente você já viu cobra com perna?”. O Jorge era de Angola e diz-lhe assim: “Não, nem em Angola vi cobra com perna”. E o Ricardo: “É igual ao seu dinheiro, ninguém vê” [risos]. Foi uma risota pegada. Outra vez jogámos no Bessa contra o Boavista, o Sporting nunca ganhava no Bessa e comigo nunca ganhou nos cinco anos que treinei o Boavista. Ele entrou e ofereceu 300 contos de prémio e o Ricardo disse assim: “Senhor presidente, cara, oferece trintinha e paga” [risos].
Já com o Sousa Cintra acaba por vir embora porquê?
Pelos maus resultados. É curioso que houve um jogo fora que correu mal, e eram todos: “Vai ser despedido, vai ser despedido”. Fiquei à espera. Trabalhei a semana toda, íamos jogar com o Académico de Viseu, em casa, dei o treino de sábado com o jogo no domingo, e nesse treino é que o Sousa Cintra vem falar comigo. E porque é que ele me despediu, porque já se tinham demitido dois vice-presidentes, se se demitisse mais um ele deixava de ter quórum, a direcção caía e tinha que haver eleições. Ele tinha que eleger dois vice-presidentes e os vice-presidentes não queriam que eu continuasse. Ele ficou até à última hora a ver se arranjava uma solução, mas não conseguiu e, no sábado, dei o treino de manhã, fiz a convocatória para o jogo e depois do treino ele aparece: “Ó mister Manuel José”, com aquele jeito de cabeça [risos]. Ele é algarvio como eu. Fui-me embora. Cada vez que falo com ele, ele diz: “Ó Manuel José, o maior erro da minha vida foi tê-lo mandado embora”. Ele a seguir contratou o Queiroz e não gosta dele nem um bocadinho, diz-me sempre isso. Mas pronto, é a vida, não lhe levei a mal.

Vem para casa, para o Sp.Espinho, outra vez.
Venho, com o coração e por amizade. É o senhor Carlos Padrão que é presidente do Sp. Espinho outra vez que me convida para tentar subir de divisão. Saio do Sporting para a 2ª Divisão. Não faz sentido nenhum. Uma série de amigos: “Tens de vir, tens de vir”. Era uma direcção de amigos, uns mais velhos, outros da minha idade, e vim por amizade, para tentar salvar o Espinho. Não conseguimos e entretanto aparece-me o Boavista.

São cinco épocas no Boavista. Diz que foram as suas melhores épocas em Portugal, e que queria lutar pelo título mas que o major Valentim Loureiro não. Conte lá isso.
Quando cheguei ao Boavista, o major era aquela figura e eu, que tenho o nariz para cima, fui sempre independente, nunca deixei que presidente nenhum se metesse na minha vida. Não servia, despediam-me e estava o assunto arrumado, quando me contratavam era porque confiavam e acreditavam em mim. Então ele diz-me, com aquele jeito dele: “Isto é assim, é ganhar em casa, tentar empatar fora, jogarmos para a Taça de Portugal, tentar chegar à final e vender dois jogadores para equilibrar as finanças”. Eu digo-lhe: “Ó major, o senhor se tiver orçamento para isso, dê-me os jogadores todos que eu quero e nós vamos jogar para ganhar seja onde for. Se perdermos, despeça-me, chegamos a um acordo e não há problema, eu vou embora, mas isto vai ser como eu quero. O senhor é o presidente do Boavista, eu sou o presidente da equipa de futebol, aqui ninguém entra, percebe?”. Deu-me os jogadores todos que eu queria e pouco antes de começarmos a época diz-me assim: “Já tens os jogadores todos que querias?” E eu: “Tudo direitinho, obrigadinho”. E ele: “Agora ganha”. Está o aviso feito.

E fez uma boa época.
Fizemos uma época absolutamente notável e o curioso é que o calendário, tanto no campeonato como na Taça UEFA, começou da pior maneira. Sai o sorteio, 1º jogo Benfica- Boavista, com o Eriksson a treinador. Primeira eliminatória da Taça UEFA, Boavista-Inter de Milão, que era o detentor da Taça, com o Klinsmann, o Matthaus , o Brehme, o guarda redes Zenga. Bonito serviço, isto está a começar bem. Ganhámos 1-0 na Luz, ganhámos 2-1 ao Inter de Milão, em casa, e depois o notável foi empatarmos 0-0 lá. Jogávamos em 3-4-3, ninguém jogava assim. O ano passado quando apareceu o Conte a jogar no Chelsea em 3-4-3 parecia que era uma coisa... Eu joguei 13 anos assim. Cinco anos no Boavista e oito anos no Al-Ahly. No Al-Ahly ajudei o clube a ganhar 20 títulos, oito títulos continentais inclusive. Três Mundialitos no Japão, um com medalha de bronze. Então, essa época no Boavista ganhámos a Taça de Portugal, ficámos em 3º lugar, ganhámos ao Benfica, ganhámos ao FC Porto, ao Sporting, a toda a gente. Também ganhámos a Supertaça ao FC Porto. O João Pinto foi para o Benfica e veio o Sánchez e o Rui Bento.
O major disse-lhe alguma coisa quando começa a ganhar tantas coisas?
Não. Estava sempre presente. Naquela época para se pregar um prego no estádio do Bessa tinha que se perguntar ao major, era um pouco assim.

O Boavista quase que se confunde com a família Loureiro. É um clã.
Mas o pai é bem melhor do que o filho, não tem nada a ver. Não vou contar as peripécias todas que se passaram com o major, algumas foram feias, mas apesar de tudo gosto mesmo dele. Independentemente de saber as coisas que ele procurou fazer comigo e dei-lhe sempre luta, nunca tive medo dele. Quem mandou no Boavista nos cinco anos em que lá estive fui eu sempre, ele tentou meter-se em tudo, mas levou sempre para trás. Ele é que foi derrotado sempre, ao major ganhei-lhe todas as lutas, mas continuo a gostar dele. E a partir do momento em que tinha mais um ano de contrato, queria de facto jogar para o título. Naquela altura compravam-se árbitros como se compram tremoços, trios de arbitragem, não era só o árbitro. Eu só lhe disse: “Se o senhor gastar 350, 400 mil contos e ficarmos atentos aos árbitros, podemos perfeitamente ser campeões. Esta equipa já tem estrutura mental e joga contra quem for, sem medo nenhum”. Não tínhamos medo de ninguém, jogávamos ao ataque fosse onde fosse, cá dentro e lá fora. A seguir ao Inter apanhámos a Lázio de Roma, que tinha um jogador croata que só ele custava mais dinheiro que o estádio do Bessa. E tinha o Signori, o canhoto italiano da selecção que era um enorme jogador.

Mas o que significava “se ficarmos atentos aos árbitros”?
Significa que aquilo era tudo uma trafulhice pegada. Nas conferências de imprensa tinha um passarinho que pousava aqui no ombro e que me dizia, já morreste, o árbitro vai ser tal. Eu ia para a conferência de imprensa e dizia sempre a mesma coisa: “Amigos, hoje sinto-me como um peru no Natal. De véspera já sei que vou morrer”. E morria, porque a corrupção era de tal ordem que se corrompeu tudo e mais alguma coisa. Tudo o que andava à volta do futebol era corrompido, na 1ª e na 2ª divisões. E aquele meu passarinho nunca me enganava e por isso dizia: “Se tiver cuidado, podemos ser campeões. Não temos medo de jogar contra ninguém”. E transferindo sempre os melhores jogadores que tínhamos, porque ele dizia-me: “Ouve lá, julgas que isto é a árvore das patacas? Isto é um clube de bairro. Temos que vender dois jogadores para equilibrar isto, e ainda queres ganhar o título. És doido ou quê?” Depois disse uma coisa curiosa, com um ano e meio de antecedência [risos]: “Ficas aqui mais um ano”. E eu tinha mais um ano de contrato. “Eu vou para a Liga e tu vais para a selecção”. Isto com um ano e meio de antecedência. Fiquei de 1991 a 1996, tinha mais um ano que era o de 1997. No final de 1996 ou 1997, ele entra para presidente da Liga e fica o filho, que já era adjunto dele, como presidente. Mas quando ele me disse aquilo eu respondi-lhe: “Não, vou-me embora. Vamos rescindir isto amigavelmente e assunto arrumado”.

E foi isso que aconteceu?
Foi porque eu queria jogar para o título e não queria trabalhar com o filho dele. E hoje estou convicto do que fiz, fiz bem. Para mim, o importante de tudo aquilo que se fez no Boavista foi a qualidade do jogo que nós tínhamos. Nós fomos considerados por toda a imprensa o clube que melhor jogava futebol em Portugal, quatro vezes em cinco anos, é obra. E esta mudança de mentalidade é o que leva depois o Boavista a ser campeão, com um treinador que foi meu jogador e de quem sou amigo, de quem gosto muito, que é o Jaime Pacheco. Ele tem essa mentalidade de campeão e deu continuidade a essa desinibição total que os jogadores e a equipa tinham de jogar fosse contra quem fosse.

Quando saí do Boavista vai para o Marítimo, mas pouco por tempo.
São aquelas coisas malucas que fazia de vez em quando. Vou para o Marítimo, com o Marítimo nos últimos lugares, para levar o Marítimo à Europa. Estive lá dois meses e meio e quando saí estávamos a dois pontos dos lugares europeus. Saí para ir para o Benfica. Porque tinha uma cláusula no contrato que me permitia sair para o Benfica, só pus para o Benfica.

Porquê? Era uma meta treinar o Benfica?
Era. Já tinha treinado o Sporting duas vezes e o FC Porto com aquele presidente, nem pouco mais ou menos.

A história do FC Porto e do Pinto da Costa não está bem contada. Quando é a primeira vez que o FC Porto o aborda?
O FC Porto nunca me abordou, o FC Porto mandou recados para ver qual era a reacção.

Quando recebe o primeiro recado?
No U. Leiria. Mas vamos voltar ao Benfica.
É abordado pelo Benfica quando e por quem?
Pelo Toni, que era o director desportivo.

Não hesitou, foi logo?
Não, hesitei sim.

Porquê?
Porque o Benfica era um bocado um circo, tirando o Toni, o resto era tudo muito complicado, depois a equipa que tinha não oferecia garantias nenhumas e por aí fora. Tinha naquela época dois ou três amigos, gente com bom senso, melhor senso do que eu, que me disseram: “Não vás, não vás, não vás. Eles querem-te para salvares o Damásio. Vais-te entalar, isso vai correr mal”. Já havia uma contestação tremenda. Mas tudo começou na minha vida com o Benfica e sei ser agradecido. Era graças ao Benfica que tinha a vida que tinha e tenho a vida que tenho, porque foi com o Benfica que tudo começou quando era uma criança, com 16 anos. Foi a minha forma de dizer “obrigado” ao Benfica, num momento muito difícil para o clube. Não resultou e depois portaram-se pessimamente comigo, esse Damásio.

Foi despedido pela rádio não foi?
Fui. Estava em casa quando ouvi. Perdemos em Vila do Conde e fui despedido pela rádio, veja a coragem daquele indivíduo. Adjectivar o comportamento dele comigo, estaria aqui uma tarde inteira a dizer nomes muito feios.

Ele acusou-o de incompetência. Sabe porquê?
Era tudo para não pagarem. Por isso é que nem perco tempo com isso. O calibre dessa gente que estava à frente do Benfica naquela altura, fizeram o que fizeram do clube, depois ainda por cima chegou o Vale e Azevedo e o Benfica estava entregue a esse tipo de gente que não tinha nada a ver com o Benfica. O Benfica foi sempre conhecido pelo clube do povo e levaram para lá Estoril e Cascais com a mania da elite. Não eram brasonados mas tinham a mania que eram, que estavam acima de toda a gente e comportavam-se pessimamente. O Benfica para eles era uma forma de ostentação, mais nada. No fundo eram uma cambada de medíocres que não serviram para nada, os piores anos do Benfica foram com eles e depois fizeram o que fizeram comigo. Mas o tempo é o melhor mestre como se costuma dizer e estive quatro anos à espera que a justiça funcionasse. Mas a justiça aqui não funciona, leva muito tempo e quando funciona, funciona mal e então resolvi ir trabalhar.

Esteve quatro anos à espera, como assim?
Três anos e tal. Eu fui o primeiro comentador desportivo da Sport TV.

Mas porquê? Ficou impedido de treinar?
Não fiquei impedido de coisa nenhuma, eu é que decidi só retomar a minha profissão de treinador quando a justiça decidisse. Pus o clube em tribunal por me terem despedido sem justa causa e por me despedirem pela rádio inclusive. Aquilo tinha que se decidir e como nunca mais se decidia, entretanto apareceu a SportTV, passados uns meses depois de estar desempregado, a convidar-me para ser comentador desportivo. E fui.

Gostou dessa experiência?
Foi engraçada mas dolorosa, porque estava a assistir aos jogos da bancada [risos], quando devia era lá estar, no banco, mas foi uma experiência gira.
Sai do Benfica em 1997/98 e volta em 1999 para o U. Leiria.
Curiosamente quando anunciei que ia treinar outra vez, porque me cansei dos tribunais, apareceu-me o Sp. Braga outra vez, com o João Gomes Oliveira, já presidente. E aparece o U. Leiria, que estava em último lugar: em 30 pontos possíveis, tinha 10. Disse aos meus adjuntos: “Amigos, vamos para Leiria”. E eles: “Mas dizes que o João Gomes Oliveira é boa pessoa, dás-te bem com ele, o Sp. Braga está muito melhor classificado, está a seis ou sete lugares do fim e o U. Leiria está em último. Dizes que o João Bartolomeu é complicado e agora queres ir para o Leiria?!” E eu disse: “Quero. Vou provar ao Benfica que sou treinador, que não tenho medo de nada nem de ninguém e que tenho qualidade suficiente para ter sucesso seja onde for. É para o U. Leiria que vamos. Se vocês não quiserem vir, vou sozinho ou arranjo outros.” E assim foi. Mantive o U. Leiria na 1ª divisão, na 2ª época conseguimos a melhor classificação de sempre, 5º lugar e com sete vitórias seguidas, que é uma coisa que nunca se tinha conseguido na história do clube. E depois fui-me embora para o Egipto. 

Quando está no U. Leiria fica à frente do Benfica, na segunda época.
[risos] Pois é, curioso. Jogámos o último ou penúltimo jogo em Braga, estivemos a perder 2-0 e depois ganhámos 5-3. E o Benfica perdeu, acho que com o Salgueiros, em Vidal Pinheiro, 1-0 ou 2-1, já não me recordo, e ficámos à frente do Benfica. Havia um filme português: “O destino marca a hora” [risos]. E, de facto, o destino marcou a hora e ficámos à frente do Benfica.

E o Egipto? Tinha vontade de ir para fora?
Já tinha tido vontade de ir para fora. Quando estava no Boavista, convidaram-me para treinar o Manchester City, mas não falava inglês e eles não aceitam tradutores, tinha que levar uma seca para aprender inglês para poder ir. Ao mesmo tempo o major convidou-me para renovar o contrato por mais três anos e pronto, estava em casa, a minha mulher não ia ficar feliz de ir para Inglaterra e resolvi ficar por aqui. Depois apareceu-me o Manuel Barbosa no ano a seguir, já faleceu também infelizmente, a convidar-me para ir treinar o Bordéus, com o Zidane com 18 anos, e uma série de jogadores que depois foram campeões da Europa e do Mundo, como jogadores na selecção francesa. Ainda tive três aulas de francês [risos] e curiosamente o major convidou-me para renovar o contrato outra vez. Foi para lá o Toni e o Jesualdo Ferreira como adjunto do Toni. Mas eu sempre com aquela ideia de um dia ir para o estrangeiro. Então aparece-me um empresário iraquiano a perguntar se queria ir para o Al-Ahly do Egipto. Eu do Egipto conhecia a história milenar, são quase 7000 mil anos de história. Entretanto ele diz-me que o clube tinha sido considerado o clube do século XX em África e era dos maiores clubes do mundo, com 60 milhões de apoiantes, o estádio sempre cheio porque eles têm uma paixão enorme pelo jogo. Pedi-lhe umas cassetes para ver. Mandaram dois directores para falar comigo, estivemos a almoçar no Pinóquio, nos Restauradores, que é o meu restaurante quando vou a Lisboa. Lá me trouxeram as cassetes e só para lhe dar uma ideia, eu já contei isto várias vezes, para ver a primeira cassete adormeci cinco vezes e eu não estava velho naquela altura [risos].
Então porquê?
Aquilo era tudo tão ruim, tão ruim, ai valha-me Deus. Não me vou meter naquilo ali. Mas ao mesmo tempo estava com o bicho a dizer-me: “Vai, tenta, é outra realidade, tenta”. Fui vendo as cassetes e aquilo era horrível, mas eles vieram uma segunda vez e lá fomos para o Pinóquio outra vez. Estava em Leiria, vim ter com eles a Lisboa e cheguei a acordo. E a história é muito curiosa porque vou para o Egipto e vou ver a final da Taça do Egipto para assinar contrato. Num estádio para 100 mil pessoas, quase cheio, a outra equipa era pequena. Começo a ver o jogo e uma coisa que é quase impossível, mas foi verdade: ao vivo era pior que nas cassetes. Só pensava que aquilo era horrível. Eu não vou durar três meses aqui. Isto não vale nada. Mas já dei a minha palavra, agora vou ter de a cumprir. Começo a olhar para a outra equipa, tinha lá um defesa central, o número cinco, perguntei o nome dele a quem estava ao meu lado e diz-me: "Gomaa. Quer?" E eu: "Pode contratá-lo? Então contrate-o já". E diz o tipo: "Gomaa quer dizer sexta-feira". E eu: "Então eu sou o Robinson Crusoe pelos vistos" [risos]. Ele sabia lá quem era o Robinson Crusoe, ainda lhe estive a explicar [risos]. Às tantas diz ele: "Mas tem um ali que é o Sunday, o extremo esquerdo". E sabe uma coisa curiosa?

Diga.
O meu primeiro jogo no Egipto é contra o Real Madrid, um amigável, às 20h. Estavam 100 mil pessoas. Aliás, às 16 horas já estava o estádio fechado, porque estavam mais 20 mil a querer amarinhar pelas paredes para entrar. Isto com um calor de 40 graus. Lembro-me de ir ver o relvado com o Figo. O Figo começou comigo no Sporting, com 17 anos, a treinar com os seniores. Assim que entramos na pista, ninguém me conhecia de lado nenhum porque eu só tinha feito ainda o estágio em Portugal, então começa tudo: "Figo, Figo, Figo". E diz ele: "Eh, mister, isto é que é uma atmosfera. Fantástica." Depois foi à relva e pôs o pé, e a relva era mole como o diabo, era muito cansativa. Eles tinham oito dias de preparação. Marquei treino para a manhã do jogo, foi a primeira vez que os egípcios treinaram na manhã de um dia de jogo. Era só Roberto Carlos, Zidane, Figo, Hierro, Raul, eram só vedetas. Estavam todos malucos com os jogadores, era uma tremedeira desgraçada e então fiz um treino de manhã para eliminar toxinas, ácido lático, adrenalina. E mesmo assim aos 10 minutos houve um que fez uma rotura muscular no lateral direito por causa do medo que tinha deles. A meio desse treino matinal, vem o tradutor: "Mister, mister, sabe onde está o Real Madrid? Está nas pirâmides". Nas pirâmides aquilo é um calor filho da mãe. E eu digo-lhe: "Olha, diz aos gajos para os aguentar lá o máximo de tempo possível. Deixa-os estar lá" [risos]. Curiosamente ganhámos 1-0 ao Real Madrid. Foi o meu primeiro jogo. E foi o Sunday que marcou o golo. Era nigeriano.

Fica uma época e vem embora. Porquê?
Porque quis vir embora. Eles há 14 anos que não ganhavam a Liga dos Campeões africanos, ganhámos a Liga dos Campeões, ganhámos a Supertaça africana, que eles nunca tinham ganho, e perdemos o campeonato na penúltima jornada. Mas tive de formar uma equipa, que a equipa era velha. A minha sorte é que o Egipto jogou o Mundial de sub-20 na Argentina e ficou em 3º lugar. Tinha bons jogadores. O Al-Ahly tinha oito jogadores nessa selecção, entre titulares e suplentes. E foram esses miúdos que na segunda volta do campeonato ajudaram a dar a volta. Tínhamos uma equipa fantástica.

Ou seja, logo no primeiro ano ganha tudo o que havia para ganhar, menos o campeonato.
E fizemos o maior resultado da história dos dérbis. 6-1 ao Zamalek. Já tinha conseguido aquele 7-1 ao Benfica... Por causa disso nessa altura puseram o número de telefone do clube a terminar em 6-1. 

Vem embora porquê?
Chateei-me com o director desportivo. Portou-se muito mal comigo. Envenenou um director que era irmão do presidente, fartei-me, vim embora. Tinha uma relação fantástica com os jogadores, vieram todos ter comigo: "Porque é que vai embora, porque é que vai embora?" Nesse ano contratam um treinador holandês. Entretanto vim para cá, o Belenenses estava em dificuldades e lá fui com o coração outra vez, porque eu tinha jogado no Belenenses.
Como correram essas duas épocas no Belenenses?
Na primeira foi-me pedido para não descer e lá nos safamos. No segundo ano, entretanto, o Al-Ahly estava em estágio e o capitão de equipa telefonava-me para eu voltar para o Egipto e punha-me a falar com os outros 15 jogadores. Os directores telefonavam-me a chorar para eu voltar. Mas eles tinham dado apoio àquele director desportivo e disse que não.

Mas o que é que aconteceu com o tal director desportivo?
Um dia chego ao treino e faltavam cinco jogadores. Pergunto-lhe onde estão os jogadores ele diz: "Ó mister, dei-lhes dois dias de férias". E eu: "Deste o quê? Mas quem és tu para dares dias de férias aos jogadores? À tarde quero aqui os jogadores. Nem que estejam em Budapeste, quero-os aqui, senão vais para a rua. Ou vais tu ou vou eu". E foi uma guerra desgraçada com ele e ele foi envenenando aquela gente toda. Mas eu tinha uma relação fantástica com os adeptos. Antes de vir embora tive oito jantares com adeptos do clube, dos ultras. Esses ultras foram os que fizeram a revolução do Egipto que depôs o Hosni Mubarak, são quase todos filhos da média e alta burguesia. Tive oito jantares com eles, porque não queriam que viesse embora. Na 2ª volta do campeonato, quando eu lá estava, eles iam para o estádio e punham-se a cantar: "Isto não é futebol, isto é música". Depois arranjaram um cântico para mim que queria dizer qualquer coisa como: “Com o Manuel José não tens hipótese”. Era o estádio todo a cantar. Jogávamos muito. Com miúdos. Foi uma data de miúdos que me safaram, porque eram bons jogadores. Quando vim embora os jogadores vieram despedir-se de mim mas os dirigentes... nem um apareceu.

Acaba por voltar. Como o convenceram?
Não queria, estava no Belenenses, não queria, mas aquilo era um massacre desgraçado todos os dias, telefonemas e mensagens todos os dias, vieram cá duas vezes. Acabaram por convencer-me. Pagaram 50 mil dólares ao Belenenses, mais um jogo lá no Cairo. Lá fui eu de novo.

Antes de falarmos da segunda parte da sua aventura no Egipto, vamos falar do FC Porto. É verdade que a seguir ao U. Leiria o FC Porto tentou contratá-lo?
Comigo ninguém falou. Com os meus adjuntos é que falaram. E nunca na pessoa do presidente. Mas alguém deu a ordem. O que é facto é que falaram e fazendo fé naquilo que os meus adjuntos me disseram, o FC Porto queria que eu desmentisse a entrevista que tinha dado em que disse que nunca treinaria o FC Porto.

Porquê?
Por causa do presidente que tem.

O que é que tem contra o presidente se nunca lidou com ele?
Mas sei as coisas que ele fez. Não posso provar, portanto não me vou meter aqui num sarilho de estar a contar coisas que depois não posso provar. O meu entendimento, e é bom que fique claro isto, era que com aquele presidente nunca treinaria o FC Porto. Mas as mensagens foram chegando. Havia interesse. Se eram verdadeiras ou não, isso já não sei, porque comigo ninguém falou, mas era o que os meus adjuntos me diziam. Eu disse sempre a mesma coisa, digam-lhe que eu nunca trabalharei com ele. Depois as coisas que aconteceram na selecção eu já as contei em verso e prosa tantas vezes, que é chover no molhado.

Conte mais uma.
Tive durante três meses e meio um acordo com o presidente da FPF, Gilberto Madaíl, que depois ele desfez, e contratou o Scolari.

Desfez porquê?
Porque alguém mandava nele. Era uma marioneta nas mãos de uma série deles.

Ainda propôs-lhe ser adjunto do Scolari e não aceitou.
Nem pouco mais ou menos.
Diz que esteve para ser seleccionador três vezes.
O que eu disse é que o "Record" por duas vezes tinha feito uma sondagem em que perguntava quem é que o povo português queria que fosse o seleccionador. A primeira eu ainda estava no Boavista e com quase 80% o povo queria que eu fosse o seleccionador. Dessa primeira vez foi o Artur Jorge. Na segunda vez, a mesma sondagem, 78% - mas quem foi o treinador? António Oliveira. Se o Artur Jorge tinha currículo para treinar a selecção? Tinha. O António Oliveira não tinha. Portanto, costumo dizer, fui o treinador do povo. E fui mesmo. Nunca fui o treinador dos dirigentes. E a classe dirigente naquela época não era para brincadeiras. Eram tudo tiranos, pequenos títeres, grandes títeres e grandes tiranos que punham e dispunham e faziam aquilo que lhes apetecesse. Comigo nenhum deles me pôs a pata em cima porque nunca deixei. Mas isso tem um preço. A integridade moral de um indivíduo não tem preço, e para mim não tem, nunca vai ter, serei sempre assim, mas paguei a factura. E não estou arrependido.

Mas gostava de ter sido seleccionador.
Tinha currículo mais do que suficiente para ser treinador da selecção. Vou dizer mais. Eu que não sou vaidades, nem isto é uma vaidade, era uma convicção, se calhar parva, mas com os jogadores que Portugal tinha na época convenci-me: "Vou ser campeão europeu". Hoje quando se diz que Portugal arrisca pouco, que antigamente arriscava mais, pois é, mas se olharmos para o antigamente, nós tínhamos o Pauleta que até há dois anos era o melhor marcador de sempre da selecção, ultrapassou o Eusébio. Tínhamos o Nuno Gomes, o Sérgio Conceição, o Rui Costa, o Figo, o Cristiano Ronaldo, o Deco, o Paulo Sousa, antigo campeão europeu pelo Dortmund e pela Juventus, Fernando Couto, Vítor Baía, e por aí fora. Eu tinha isso naquela altura. E tinha o Ricardo, foi ele que acabou por jogar e não o Vítor Baía, mas isso é outra história, que tem a sua história, mas eu não posso provar nada, portanto é melhor não contar. Mas estava convencidíssimo de que ia ser campeão da Europa. A jogar em Portugal, com os jogadores que tenho, vou ser campeão europeu. Presunção e água benta cada um toma a que quer, mas era a minha presunção. E tiraram-me da selecção.

Sabe quem foi?
Sei de certeza absoluta mas não posso afirmar quem foi. E o que sei é que o presidente era uma marionete nas mãos desses.
Quando volta ao Egipto, fica lá seis épocas seguidas. Desses anos todos o que é que foi mais marcante?
Jogar na África subsariana é uma coisa que só visto. É impensável a qualidade dos relvados, os sítios para treinar, condições absolutamente incríveis para se poder jogar e trabalhar. Tudo muito complicado. E lembro-me de ir jogar à Nigéria, aos Camarões, na Costa do Marfim, na Argélia, que é um sítio complicadíssimo e quando acaba o jogo, vou para ir para o balneário e os jogadores começam a chamar-me para ir ao centro do terreno. A equipa técnica vai toda para o centro, tínhamos ganho lá, e o público estava todo a aplaudir-nos, de pé. Em campos horríveis, em que eu dizia não podemos jogar ao primeiro toque, jogámos ao segundo, não dá ao segundo, tem que ser ao terceiro, mais não. Têm que pensar rápido para executar rápido. Quando cheguei o Al-Ahly era conhecido como a equipa mais defensiva de África. E eu disse-lhes: “Meus amigos, a partir de agora nós vamos jogar para ganhar em todo o lado”. Porque a mania deles era empatar, perder 1-0 e depois em casa tentar resolver o problema. Nos países do Magrebe não tinham ganho nem uma vez ao longo da história. Ganhámos a todos ene vezes. Logo no primeiro ano em que fomos jogar à Nigéria, a equipa era bicampeã africana e há três anos e meio que não perdia um jogo em casa, chegámos lá e ganhamos. Ganhávamos em todo o lado.

Quer dizer que nesses seis anos são essas vitórias que o marcam?
E a qualidade de jogo que tínhamos. Porque jogava como joguei no Boavista cinco anos, em 3-4-3, que é um modelo de jogo de risco, é preciso ter uma cultura táctica muito elevada que os jogadores egípcios não têm, mas que aprenderam, ao fim de muito trabalho. E nós jogávamos em 3-4-3 fosse onde fosse se medo de ninguém.

A sua mulher adaptou-se ao Egipto?
Muito bem, era uma mulher feliz. Vivemos sempre no hotel Marriott, no centro do Cairo.

Conte-nos o que aconteceu em Port Said, no seu último ano no Egito, em 2011/12, já depois da revolução.
Quem fez a revolução no Egipto foi a média burguesia. 60% da economia estava, como hoje, nas mãos dos militares e o governo era militar, e o garante do sucesso da revolução que depôs Mubarak foram os ultras do Al-Ahly e os ultras do Zamalek, que são gentes de boas famílias, que estudam em colégios e universidades estrangeiras, inglesas, francês, italianas, gente que tem um nível intelectual muito acima da média para um país que tem 50% de analfabetos. Foram eles que se cansaram e ajudaram a fazer a revolução. Muitos morreram, iam para aquelas manifestações sabendo que iam morrer. Tenho uma camisola em casa de um miúdo com 15 ou 16 anos que numa dessas manifestações foi morto pela polícia, uma semana depois jogamos em casa e veio um indivíduo dos ultras ter comigo e diz-me: "Mister, importa-se de vestir isto quando for para o jogo? E a equipa técnica toda?". Tinha o nome do miúdo e o RIP.
Vestiu?
Disse-lhe para trazer as camisolas que vestíamos. E assim foi. Eu e os meus adjuntos portugueses vestimos. Era Inverno, eu ia de sobretudo mas quando fomos para o aquecimento estavam ali as televisões todas e eu abri o casaco para se ver a camisola com a fotografia do miúdo e o RIP. Quando vim embora do clube, fizeram-me uma festa enorme de despedida e o presidente diz-me: "Há uma coisa que nunca lhe vou perdoar. Foi você ter vestido aquela camisola. Houve uma pressão enorme do governo, da polícia, de toda a gente, para o despedir por ter feito aquilo". Eu digo-lhe: "Presidente, imaginemos que aquele miúdo era seu filho. Como é que você ficava? Ele só foi ali protestar por uma liberdade que queria ter e que não tinha, e mataram-no. E se fosse o seu filho? Se você me despedisse você sabe muito bem que ia haver outra revolução aqui no Cairo. Porque os ultras rebentavam com isto tudo. Com a relação que tenho com eles, eles rebentavam com isto e você saía do clube. Portanto, se fosse hoje, fazia a mesma coisa, se fosse o seu filho também fazia a mesma coisa". Ele não me respondeu.

Mas relate o que aconteceu em concreto em Port Said.
Tudo indica que aquilo foi orquestrado para matarem os nossos ultras. Nós entramos em Port Said, que é o que faz a ligação do mar vermelho com o mediterrâneo, com um tanque de guerra à frente e outro atrás. Quando entramos no estádio, que é para 35 ou 40 mil pessoas, tinham cadeiras à volta, na pista de atletismo, com policías sentados de frente para o público com um escudo grande, capacete com elmo, metralhadora e um cassetete enorme. Todos de costas para o relvado. Não mexeram uma palha durante o tempo todo que estiveram ali. A equipa foi fazer o aquecimento. Eu vou sempre, porque no aquecimento dá para ver o comportamento dos jogadores, às vezes dá para aferir o que cada um vai render no jogo ou não. Estava fresco, voltei para trás e fui vestir um blusão grande. Quando regressei, estavam as duas equipas a fazer o aquecimento dentro do mesmo meio campo. O guarda-redes deles estava na baliza e o meu estava na linha de fundo da mesma baliza. Perguntei ao treinador de guarda-redes o que estavam ali a fazer ele: "Mister, não se pode estar ali, já atiraram bombas, um estilhaço já feriu a vista de um jogador..." E mais não sei quê. E eu: "Vamos para o outro lado". E eles: "Mas mister...". E eu: "Para a baliza do outro lado, eu vou contigo, não te preocupes". O Pedro Barny e o Fidalgo Antunes estavam a fazer o aquecimento e também disseram que era melhor não, mas eu disse-lhes: "Vamos para ali, todos. Eu não vou para o banco, fico dentro do campo com vocês, nós temos de demonstrar a esses gajos que não temos medo deles, de coisa nenhuma. Nós viemos aqui só para jogar futebol. Vocês estão cheios de medo porquê?". Fui e fiquei ali com eles.
O que aconteceu?
De vez em quando entravam três ou quatro tipos a correr pelo campo. Os polícias que estavam sentados não mexeram o rabo, mas lá vinham outros e levavam-nos dali para fora. Até que começou o jogo, com quase 20 minutos de atraso. Durante o jogo houve mais duas ou três invasões. Comecei a ficar preocupadíssimo quando olhei e vi por trás da baliza deles, uma faixa grande branca pintada a verde e que dizia em inglês: "Hoje vão morrer todos aqui". Em Port Said mais de 90% das pessoas não sabe inglês. A maior parte não sabia o que estava ali escrito e aí eu comecei a ficar preocupado. Marcámos um golo. Marcámos mais dois golos que foram anulados, mal. Com o árbitro valia tudo e mais alguma coisa. Fomos para intervalo, o jogo recomeça outra vez com 20 minutos de atraso. O árbitro em vez de acabar com o jogo, porque não havia condições nenhumas, não acabou. Marcaram, ficou 3-1 para eles. Assim que acabou o jogo, desligaram imediatamente as luzes e ficou escuro como breu. Os nossos adeptos estavam por trás da nossa baliza, do lado sul, e os balneários eram por baixo. Já tinham aberto as portas que davam acesso à bancada, sem ninguém saber. Começo a ver os gajos a correr, a abrirem as portas e a irem directos aos nossos adeptos. Começa tudo a correr. Eu tinha dois indivíduos comigo, se eu começasse a correr, eu era o último a ser apanhado [risos]. Eles eram mais velhos do que eu.

O que fez?
Pensei assim: "Eu tenho fama de que sou um gajo teso, se me ponho aqui a correr, vão-me matar." Vi fulanos a passar com espadas compridas, com punhais e pistolas. Levei um soco na cabeça, deram-me um pontapé nas pernas, eu olhava para trás e eles "Mister José" e riam-se. Vi um a dar um soco no nosso guarda-redes, que se levanta e dá-lhe um soco de resposta e foge. Fui andando nisto, até que quando chego perto dos policias que estavam sentados no chão, vejo que estavam com escudos a proteger das pedradas. Vi fulanos a atirarem os nossos adeptos de cima da bancada para a rua. Eu levei mais uns socos na cabeça, sempre por trás, pela frente ninguém me tocou. Às tantas um fulano, com mau aspecto, agarrou-me com força: "Mister José, come [vem]". Dei-lhe uma palmada: "Tira daqui a mão. Não me levas para lado nenhum". Ele fechou logo a cara. Fui andando nas calmas, até que entrei e levaram-me para uma sala VIP e ali estive. Enquanto o meu telefone funcionou ia estando em contacto com o balneário, com o Pedro Barny e o director desportivo. Já tinham morrido cinco pessoas das nossas. Eles atiravam-nos de lá de cima. Tinham fechado um portão por onde se saía e a multidão ao querer sair, foi esmagando aqueles que estavam encostados ao portão. Houve dois que tentaram abrir o portão por fora e quando o conseguiram, o portão caiu, um fugiu, o outro morreu espezinhado por aqueles que estava a tentar salvar.

Um cenário horrível.
Se foi. Foi uma coisa do outro mundo. Eu fui para aquela sala VIP, estava lá o presidente do clube local e outras pessoas. Às tantas fiquei sem bateria. E digo, eu tenho de ir para junto da minha gente, eu não fico aqui. Só me diziam: "Eles vão matá-lo". E eu: "Se me quisessem matar já o tinham feito". E fui andando sozinho. Depois lá vieram os "velhotes" [risos] atrás de mim outra vez. Levei mais uns socos e pontapés na cabeça por trás, mas também beijos e abraços. Depois meteram-me num carro com vidros fumados, fui para uma instalação militar. Deram-me de comer. Não conseguia comunicar porque não falava árabe, nem falo, e eles não falavam inglês. Estive lá mais de uma hora, até que me levaram para o aeroporto. Nós fomos de autocarro e voltamos de avião. Quando estamos a chegar ao aeroporto, estão a chegar os jogadores dentro de quatro carros de guerra.
Houve algum momento em que sentiu medo?
Fiquei preocupado quando o fulano bem vestido mas com mau aspecto me puxou com força pelo braço. Pensei este gajo vai-me levar para me matar aí em algum lugar. Foi quando lhe dei um empurrão para me largar. É engraçado porque aqueles que me davam chutos, depois ajudavam-me, porque davam beijos e abraços também. Fomos para o Cairo, estava o general que substituiu o Mubarak, era presidente da república, à nossa espera. Levaram-nos para uma sala. O presidente do clube estava à nossa espera também. Pediram-me para me sentar junto deles, disse que não ia. O Presidente começa a falar e o tradutor a traduzir para mim. Começa a dizer que o exército não estava relacionado com aquilo. Mas eu sabia que sim. Aquilo foi tudo montado, eles arranjaram 50, 60 ladrões ou bandidos e mandaram matar o pessoal. E mataram 72.

Isso aconteceu em 2012, mas antes disso foi seleccionador de Angola em 2009 e 2010. Como foi essa experiência?
[risos] Angola era o país organizador do Campeonato das Nações Africanas (CAN) e não é em jogos amistosos que atestamos a qualidade ou carácter, a personalidade competitiva dos jogadores. Portanto é sempre mais complicado e o entrosamento é mais difícil por essa razão. Eu não queria ir para Angola de forma nenhuma, com todo o respeito por Angola.

Então porque é que foi?
É daquelas coisas que acontecem. A minha vida foi feita de tantas coisas que eu não quis fazer... Até o embaixador de Angola foi duas vezes ao hotel, no Egipto, falar comigo para me convencer. Eu já tinha dito lá ao clube que precisava de descansar. Já lá estava há seis épocas. Eu não tinha tempo nem para me coçar porque o calendário competitivo é terrível. Por exemplo, nós jogamos em casa hoje, sábado, e tínhamos que jogar a Liga dos Campeões à quarta-feira. E para ir jogar, por exemplo, à Costa do Marfim, nós levávamos 23 horas. O primeiro ano que para lá fui era assim, os jogadores dormiam no chão do aeroporto se fosse preciso, era uma confusão. Jogávamos na quarta e depois mais 23h de viagem de volta para o Cairo e no sábado já estávamos a jogar outra vez. Então passei a fazer assim. Íamos jogar à Costa do Marfim. Cairo-Frankfurt, Cairo-Paris. Eles gostavam muito de fazer compras. Então chegámos lá marcamos um hotel ao pé do aeroporto, ficámos 10 horas em Paris. Deixava-os andar à vontade, há muitos egípcios em França, eles lá iam ter com os amigos e iam às compras. Descansavam no hotel e depois dali íamos diretos para os Camarões ou para a Costa do Marfim. Passei a reservar hotéis perto dos aeroportos para eles ficarem a descansar. Para haver paragens.
Mas voltando a Angola.
Precisava de descansar, o meu filho estava sozinho em Portugal, a minha mulher farta de estar no Cairo porque estava sempre sozinha, de três em três dias estava fora de casa. Queria ir à pesca, ler, limpar a cabeça, estava farto de viagens e de jogos. Mas de repente aparece Angola. Quando cheguei havia um desfasamento muito grande entre o povo angolano e a selecção, estavam zangados com a selecção. Comecei a levar a selecção a sítios emblemáticos do país, para fazer as pazes. E fizemos as pazes com o povo. Só que Angola não tinha equipa para ser campeã, nem pouco mais ou menos. Da selecção principal eu tinha seis jogadores que estavam sem clube. Eles só treinavam e jogavam com a selecção.

Tem alguma história que possa contar?
Assim, de repente, não. Lembro-me que de dois em dois meses eu tinha uma reunião que dava para assustar se eu fosse de me assustar. Porque era com o primeiro ministro, PGR, o General em chefe das Forças Armadas, o ministro dos Desportos, era um tipo super simpático, mas eles não gostavam dele e ele não ia. E tinha um general que estava sempre comigo no acompanhamento da selecção. A reunião era para eu explicar o que estávamos a fazer. O objectivo era sempre o mesmo, tentar fazer o melhor possível no campo.

E depois vai para o Al-Ittihad da Arábia porquê?
Deixei Angola, normal. O então PR, Eduardo dos Santos, falou comigo para que eu ficasse mais dois anos. Mas não gostei nada do tempo que estive lá. Não pelo povo, que foi espectacular comigo, mas o resto não gostei, nenhum de nós gostou. Gostei do país e do povo. Aliás eu já conhecia Angola porque em 1992 estive 20 dias à pesca lá e em 1996 outros 20 dias. Tenho lá amigos há longos anos. Mas dos dirigentes não gostei nada. Lembro-me de uma cena em Angola.

Conte.
Três dias antes de começar a CAN tínhamos três meses de salários em atraso. E o general estava ao pé de mim, e digo-lhe: "Imagina que eu me passo assim de repente, porque às vezes eu passo-me, como sabes, e vou ali junto dos jornalistas dizer que vamos começar a CAN e a equipa técnica não recebe há três meses?" No outro dia estava o dinheiro em Portugal. Este tipo de coisas é que... Acima de tudo o comportamento individual das pessoas é que não era... Mas foi uma experiência.
A Arábia era muito diferente do Egipto?
Completamente. Na Arábia eles gostam de futebol, vai muita gente ao futebol, mas são hábitos diferentes. Não desgostei de estar lá. De lá tenho duas coisas interessantes. Eles tinham um jogador, Mohammed Noor, que era o mais conceituado da Arábia Saudita, já tinha 32 anos, e mandava em tudo. Mandava nos treinadores, nos jogadores, nos dirigentes, aquilo era uma confusão. Lembro-me que marquei a apresentação dos jogadores para um dia às 10 da manhã. Às 10h chegaram uma data deles, depois chegava um, depois outro, eram 11 e meia e ainda não estavam lá todos. Diretores e presidente do clube e tudo. Virei-me para eles: "Amigos, na minha terra 10 horas são 10 horas, não são 11 e meia. Portanto, às seis da tarde toda a gente aqui. Não há apresentação agora". E fui-me embora com os meus adjuntos. Foi o primeiro ponto. Às seis da tarde estava lá toda a gente. Começámos a treinar. Comecei a mandar grupos de oito jogadores fazer exames médicos. Íamos fazer o estágio em Portugal. Este fulano, Mohammed Noor, vive em Meca, a 150km de Jeddah e fazia todos os dias 300km. Com carros entre 100 e 120 mil euros. Cada máquina! Tinha uns seis ou sete. Eu dizia-lhes: "Mas como é que vocês deixam um jogador destes fazer isto, que condições é que ele tem para treinar e recuperar depois se ele anda a fazer 300km todos os dias?" Tentaram justificar e eu: "Amanhã "x" horas, tu, tu, tu, Mohammed Noor vão fazer exames médicos". Não apareceu. Naquela apresentação fiquei com a certeza do que ia acontecer.

O quê?
Ele era o capitão de equipa, vem cumprimentar a equipa técnica e depois ia apresentar os jogadores. Os meus adjuntos cumprimentou-os olhos nos olhos, a mim cumprimentou-me mas olhou para o lado. Disse logo para mim: "Pronto, já comprei uma guerra". Ele falhou e no outro dia quando veio, disse-lhe: "Não há três vezes. Amanhã quero-te aqui a fazer exames médicos com os outros. Tu tens mais responsabilidade porque és capitão de equipa, tens de dar o exemplo aos outros todos, bons exemplos". Ele falhou outra vez. E ao contrário do que eu lhe tinha dito, dei-lhe ainda mais uma oportunidade e ele falhou de propósito, não veio. No outro dia veio e digo-lhe: "Pega nas tuas coisas e vai para casa. Rua. Vai embora". E ele: "O quê?". E eu: "Não te ponhas a falar comigo assim, julgas que tenho medo de ti? Casa! E mais: vamos para Portugal depois de amanhã e tu ficas aqui". Ele começou a levantar a voz, fui direito a ele: "Fala baixo, aqui quem pode falar alto sou eu, não és tu, o treinador sou eu, tu aqui não és ninguém, para já. Até mostrares que vales alguma coisa, não és ninguém e não falas alto comigo porque senão vou resolver isto de outra maneira, não tenho medo de ti em nenhum sentido". Dois dias depois viemos embora para Portugal e ele ficou lá. Foi para o Egito de férias com a família. Eles quando querem beber copos, andar de volta das prostitutas e jogar é para o Egipto que vão, porque na Arábia Saudita não conseguem. Eu vivi naquele hotel, no Cairo, praticamente oito anos e aquilo estava sempre cheio desses gajos. De manhã é cada bebedeira de caixão à cova, mas depois rezam cinco vezes e aquilo passa.
O que aconteceu entretanto?
Passados oito ou 10 dias veio o director do futebol, estávamos em Portugal, e diz-me: "Mister, o Mohammed Noor quer vir para o estágio". E eu: "Não, fica lá, quando eu for resolvemos isso". Quando voltei, reunião com ele e com os dirigentes. Ele levantou-se começou a falar alto, para o presidente, o xeque dono do clube e outros dirigentes. Até que me levantei, virei-me para ele: "Senta-te. Mas quem te disse a ti que podes estar aqui a falar alto? Senta-te. Quem está em falta és tu, tu aqui és jogador, mais nada. Estes se me quiserem despedir que me despeçam. Mas estás aqui para cumprir ordens. Tens uma série de miúdos para quem deves servir de exemplo, tens os mais velhos que têm é medo de ti". Foi-se embora. Digam-lhe a ele para ficar mais uma semana em casa. Três dias depois telefona-me um indivíduo que eu não conhecia. "Sou um dos drivers do xeque, ele quer falar consigo". Lá vesti um fato e meti-me no carro, para ir falar com o xeque. Quando cheguei, aquilo era um casarão! Tem uma entrada de mar e dois iates lua dentro. Ele aparece de calções e t-shirt e eu de fato [risos]. Às tantas diz-me assim: "Mister, temos um problema sério. O Noor. Estou a sofrer pressões do governo e até da família real para que ele se integre na equipa outra vez". Não sei se é verdade ou se me estava a pressionar. "Olhe, há duas maneiras de resolver isto. A primeira, ele cumpre os regulamentos do clube, o que está instituído, serve de exemplo para os miúdos, trabalha como deve ser, trabalha para a equipa e isso é óptimo e não temos problema nenhum". E calei-me. Pergunta ele: "Então qual é a segunda maneira?" E eu: "A segunda é o senhor despedir-me". Ele deu uma gargalhada, apertou-me a mão e fomos embora. O que é facto é que ganhei sete jogos seguidos sem ele. Com ele empatámos oito jogos. Mas ele até era bom jogador, era é um artista. Fez 15 jogos e vim embora. Antes do 15º jogo disse ao director geral, amanhã ganhe, perca ou empate, vou-me embora porque eu não vou ganhar nada com esta equipa e esta equipa é velha e os jogadores jovens que têm não fazem nada. Pedi ao dono do clube entre cinco a oito jogadores em Janeiro. Ele diz que não tem dinheiro e diz que só pode contratar um saudita e um estrangeiro. Eu não vou fazer nada com isso, eu não vim para aqui para ganhar dinheiro, vim aqui para ganhar títulos.

Entretanto volta ao Al-Ahly.
Tinha oito pontos de atraso para o Zamalek e ganhamos com oito de avanço.

Depois do Al-Ahly vai para o Irão.
Isso foi como a selecção de Angola. Eu aceitei para ir para Angola porque fiz uma proposta para eles não aceitaram e eles aceitaram e tive de ir. Com o Irão foi a mesma coisa. Estive em Istambul numa reunião com eles. Disse ao presidente que não tinha condições para ser campeão e que estávamos a perder tempo e vim embora para Portugal. Mas esta frontalidade que eu tenho, esta franqueza com que falo com as pessoas, pronto, agradou-lhe. Assim que cheguei, dois dias depois, começam os telefonemas para ir para o Irão. Digo ao empresário que não quero ir, mas ele chateia-me para fazer uma proposta. E fiz uma proposta para não aceitarem e eles aceitaram. E lá fui eu. Depois fiquei cinco meses sem receber salário. E vim embora. Recebemos tudo na FIFA, cinco anos depois.

Depois esteve um logo período sem treinar.
Sim, devido a problemas familiares sobre os quais não quero falar.

E torna-se conselheiro do Wadi Degla.
Foi a minha forma de dizer obrigado ao povo egípcio, que me trata como se fosse da família. Eu virei lenda no Egipto. Toda a gente tem loucura por mim, há sítios onde não posso ir sozinho, não tenho um segundo de descanso. E convidaram-me para ser conselheiro técnico do único clube empresa que há no Egipto e que tem neste momento sete academias: cinco no Cairo, uma em Alexandria, outra no Dubai. São 4100 miúdos, dos cinco aos 15 anos e 110 treinadores. É uma grande responsabilidade mas uma grande alegria ao mesmo tempo ver aquelas crianças crescerem.
O que é mais difícil na profissão de treinador?
As derrotas - é o mais fácil de dizer. Mas acima de tudo a exposição pública, porque o treinador de futebol, por muito bom que seja, é sempre contestado e está sempre dependente da vitória ou da derrota. O futebol é um jogo de paixões e a paixão é irracional a maior parte das vezes e essa irracionalidade abate-se sobre nós quando as coisas não correm bem.

Um dia, mais tarde, como gostava de ser recordado?
Pela defesa intransigente que fiz sempre dos meus jogadores. De alguém que procurou transmitir aos seus jogadores tudo aquilo que sabia e foi aprendendo. E acima de tudo como um homem sério, honesto e íntegro.

Tem inimigos?
Sou incapaz de ter ódio seja a quem for. Quando não gosto, corto.
Reconhece que Jorge Jesus é bom treinador, mas diz que tem mau feitio. Porquê?
É o ego dele. É ele e mais ninguém. De resto, tenho o maior respeito por ele. É de facto um bom treinador, não tenho dúvidas. Só que o mundo é ele e mais ninguém, ele é que sabe tudo, é que inventou tudo. Eu não digo as coisas para ser agradável ou desagradável, eu digo aquilo que penso, sou intelectualmente sério. Saio ao meu pai e não estou arrependido de ser assim. Não falo de acordo com as circunstâncias.

Ficou desiludido com a prestação de Portugal no Mundial da Rússia?
Não. Era difícil fazer melhor. Tenho de dar parabéns à selecção e ao Fernando Santos. Não foi um percursos brilhante, é verdade, atendendo às circunstâncias, podia ter sido feito melhor, mas podia ter saído pior. Mas num grupo que tinha o campeão da Europa e a Espanha candidata a ser campeã do mundo, costumo dizer, na brincadeira, que aquilo era como a pescada, antes de ser já era. Antes de jogarem já tinham ganho, antes de jogarem já estavam apurados. E veja a dificuldade com que a Espanha se apurou, veja que a FIFA reconheceu o erro do videoárbitro e o penálti a favor do Irão não foi penálti e isso tinha-nos dado o 1º lugar. Veja o que aconteceu com a Argentina, com a Alemanha. O Fernando Santos é um cidadão acima da média e teve um comportamento absolutamente impecável."

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