terça-feira, 5 de junho de 2018

A vida não tinha direito de nos fazer certas coisas

"Dez anos se passaram desde que Rui Costa deixou os relvados. Desde aí estamos órfãos do 10. Ou talvez não do 10 mas daquela maneira única que ele tinha de mandar um pássaro levantar o céu.

10.
10 para um 10. Ou melhor 10 para o 10.
Há dez anos que Rui Costa deixou os relvados. Ele, o 10 esplêndido inigualável.
Sinto saudades de ver o 10.
Rui Costa, era como aquele poema de Alexandre O'Neill:
'De um momento para o outro pode entrar
Um pássaro que levante o céu'.
O 10 levantava o céu.
Vi-o tantas e tantas vezes levantar o céu. Um pouco por todo o mundo, da Inglaterra à Coreia, da Itália à Luz. E à luz. Havia no seu futebol uma luz difícil de explicar, como uma aurora boreal que está lá mesmo não estando. Sempre, sempre pronta a levantar o céu.
Na vida, como no futebol, há pessoas que são o 10.
Tive a sorte de conhecer muitos 10: na música, na escrita, na alma.
E Rui, o 10, desde menino, tantos anos antes, ainda não titular do Benfica mas o 10 de uma selecção que não apenas levantou o céu como subiu ao topo do mundo.
Ser 10 exige muita coisa. Em primeiro lugar exige coragem: o 10 assume-se; é o 10 e ponto final. Há 10 que levam mais do que ponto final; levam ponto de exclamação! Na vida, como no futebol, o 10 está lá quando é preciso. Às vezes não se nota, não se pressente, e de repente é ele próprio: a frase, o gesto, a decisão; o passe, o remate, o golo. Quando falo em coragem, também quero dizer: o 10 tem de ser 10 para si próprio e para os outros. E, se for necessário, contra os outros e contra si próprio.
Rui, o 10, foi muitas vezes 10 contra si próprio.
Depois vinha um pássaro, e ele levantava o céu.
Continuo à espera!
Todos os números têm o seu tamanho, e o tamanho dos números não corresponde ao seu lugar na tabela dos algarismos. Na vida, como no futebol, há números que são bem maiores do que outros, embora não pareçam. Vou dar um exemplo: o 9 é maior do que o 55. O 9 é avançado-centro, o 55 pode ser qualquer coisa e coisa nenhuma. O 9 pode até nem marcar golos e não lhe dar nem de bico. Mas a gente tem-lhe respeito. É o 9. O 55 pode dar toques de calcanhar e pontapés de bicicleta. Mas não passa do 55. É anónimo e não inspira confiança. Quem usa o 55 tem mais no que pensar do que em fazer o seu trabalho dentro do campo.
Dir-se-ão: há jogadores que fazem os números. Pois há. O 14 só passou a ser número depois do Cruyff, e o 13 depois do Eusébio. Absorvem apenas a personalidade de quem os usa. Na história do futebol, pode escrever-se capítulos inteiros sobre o Cruyff ou o Eusébio. Pode escrever-se capítulos inteiros sobre o 10. Mas dificilmente se escreverá mais do que um parágrafo sobre o 14 ou o 13.
Três letras; dois algarismos: Rui, 10. Dificilmente outras letras e algarismos ficariam melhor juntos.
Em 1991, na final do Mundial, em Lisboa, o Rui tinha o 5 e, apesar disso, já estava cinco números acima. No segundo em que partiu para a bola e marcou o penalty decisivo já era o 10.
A vida não devia ter o direito de fazer certas coisas connosco. Mas faz.
Uma das coisas que não tinha o direito de nos fazer era tirar-nos o 10.
O 10 devia estar lá, em campo, para sempre.
Sem o 10 ficámos órfãos. Não sei se órfãos do 10 se de outra coisa qualquer que parece impossível escrever.
Se calhar, ficámos órfãos do pássaro. Daquele pássaro que faz levantar o céu.
Eu sei, escrevo tanto tanto, todos os dias, todas as horas, que às vezes fico com a sensação de que me repito. Algo que um 10 não sabe fazer. O 10 não se repete: reinventa-se.
Uma vez, em Itália, em Parma, vi o Rui desfazer o adversário como se fosse d'Artagnan, a golpes de espadachim.
O Corriere dello Sport fez uma manchete dizendo: 'Rui Costa Divino'.
Nessa tarde, o 10 foi perfeito. E a perfeição do seu futebol foi aumentando a um ritmo insustentável, duplicando-se para aí de quinze em quinze minutos. Ou talvez mais, a 300 mil quilómetros por segundo, que é a velocidade da luz.
Eu escrevi uma crónica sobre esse jogo. Chamei-lhe: 'Um deus passeando pela brisa da tarde'.
Sem qualquer vergonha, com o maior descaro, roubei o título ao Mário de Carvalho. Ele que me perdoe.
Dos pés do 10 libertaram-se milhares de pássaros que levantaram o céu.
Depois veio a notícia: o 10 não joga mais.
E há dez anos que o 10 não joga, e eu sempre aqui na espera teimosa da brisa da tarde pela qual passeará um deus que tem luz nos pés e sabe todos os segredos sobre os pássaros e o céu."

Afonso de Melo, in A Bola

1 comentário:

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