quarta-feira, 2 de maio de 2018

Um velho druida à procura da magia...

"Às vezes os grandes jogadores devem ser recordados nas derrotas para percebermos a sua importância nas vitórias. E Bento foi grande. Foi enorme mesmo naquela noite negra do Liverpool na Luz em 1984.

Houve poucos como Bento. Ou, melhor, houve ele, apenas. Não era somente a eficácia; era o estilo. Aquela aura de coragem que levou para lá da morte.
O Bento que ia para através dos lances, remando por entre pernas de defesas amigos e adversários ferozes. O grito! A raiva tantas vezes incontida.
Vi o Bento em tantos e tantos jogos, que não valeria a pena citar nenhum.
Mas eu recordo o Bento para além do Bento. O Bento quando ficava abalado pelas falhas que não permitia a si mesmo. Porque ele zangava-se com os companheiros e com os opositores, mas zangava-se sobretudo consigo próprio.
Aquela noite fantasmagórica contra o Liverpool, na velha Luz.
Aliás, duas noites fantasmagóricas contra o Liverpool. Mas para já a da cabeçada do Ian Rush e a bola a passar-lhe risonhamente por debaixo das pernas.
Chovia em Lisboa como se fosse em Inglaterra. Uma chuva grossa de maus pressentimentos.
Já houvera um golo em Anfield evitável. O Benfica queixou-se dos holofotes que o encadeavam. Barafustava. O cabelo comprido, solto. O bigode farto.
Depois, na Luz, um desânimo tomando conta dele e da equipa com ele.
O Liverpool crescendo com o noite e com os trovões.
Bento não merecia aquela noite.


O vendaval!!!
Foi um vendaval da melhor equipa da Europa.

As coisas são como são: naquela noite, sorte dos que puderam ver ao vivo o Liverpool.
Sorte dos que tinham podido ver o anterior Liverpool: de Ray Kenedy e Jimmy Case, e Hughes e Steve Highway e aquele impressionante Terry McDermott que parecia ter luvas nos pés.
Logo aos treze minutos, Nené ia a passar e fez um golo.
Nené era assim: aparecia do nada para os golos.
Cinco anos depois também fez um golo na tremenda noite de um Liverpool que já era outro.
Choveu. Choveu sempre.
E o Bento desesperado, quatro golos sofridos: Whelan(2), Johnston, Rush.
Amaldiçoando as bolas que entravam, o desastre que se abatia sobre o Benfica. Sentir que não podia, que a fortuna lhe virava as costas, troçava e fazia negaças à sua vontade de ser perfeito.
Ás vezes, é preciso recordar os grandes nas derrotas para perceber a sua importância nas vitórias.
E Bento era grande. Era muito grande.
Era enorme quando voava. As asas de Bento.
Era infinito quando trepava sobre ombros e cabeças, lá no alto ao encontro da bola, joelhos à altura dos pescoços alheios, ele, a sua ideia fixa da defesa impossível.
A noite da Luz que Bento não merecia foi também a tarde maldita de Saltillo que lhe partiu a perna e a carreira.
O Bento que, uma vez, em Famalicão, se saiu aos pés de Reinaldo para somar quase vinte pontos na cabeça.
Venho eu aqui, a estas páginas, falar da infelicidade de um guarda-redes único que viveu tantas tardes e noites felizes. Porque quero recordá-lo como homem e, os homens, quando têm de se medir com os deuses, ficam a perder.
O que vi  Bento fazer durante anos e anos fica marcado a giz branco na lousa negra da memória.
Negra como a noite do Liverpool na Luz.
E o Bento, encharcado até aos ossos, zangado consigo mesmo e com o mundo que lhe tombava sobre os ombros, era como um druida antigo à procura da sua magia perdida.
Foi uma imagem formidável.
Para sempre!"

Afonso de Melo, in O Benfica

3 comentários:

  1. Mais um texto magnífico do Afonso de Melo!!

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  2. Um senhor da escrita, o Afonso. Há muito junta-letras por aí que deveria ler e reler os seus textos. Talvez aprendessem o que não foram capazes de aprender nas escolas onde se formaram.

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  3. No tempo do grande Bento tínhamos a baliza bem entregue. E os colegas de equipa sabiam isso. Além das saudades do homem, a falta que ele nos está a fazer como jogador...

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