quinta-feira, 10 de maio de 2018

O Gil Vicente e a barca do inferno

"Um dos nossos maiores vultos da literatura, Gil Vicente, escreveu, no século XVI, o auto das barcas. Uma alegoria de imensa criatividade e que representava mais as misérias (muitas) do que as grandezas (poucas) do seu tempo.
No Auto da Barca do Inferno, talvez o seu texto mais reconhecido, mestre Gil Vicente embarcava as classes sociais da época, fazendo-se desfilar num enredo de imaginação genial. Todos os personagens estão mortos, mas nem por isso deixam de procurar o seu destino, quando se aproximam e tentam seduzir os seus barqueiros para ganhar lugar nas suas barcas.
O parvo é, sem surpresa, o povo. O que acredita e se deixa embarcar. Não que sem, antes, se anuncie ao Diabo:
«Furta-cebolas! Hiu! Hiu!
Excomungado das igrejas!
Burrelas, cornudo sejas...»
Gil Vicente mostra-nos que sempre soube que o povo se deixa facilmente enganar por quem tem artes de manipular e por quem tem o privilégio de mandar. Mas, sendo parvo, nem por isso é cego ou incapaz de entender as razões de quem o não deixa embarcar na barca do Anjo, que leva ao paraíso.
Leva bem mais gente a barca do Diabo, a tal que tem por destino o inferno. O que, apesar de tudo. Gil Vicente não nos diz, até porque se trata, sempre, de uma alegoria, é quando custa a viagem, qual o valor do bilhete para o paraíso e o preço da navegação até ao porto do inferno. Mas seria, muito provavelmente, incomportável o preço para chegar já ao paraíso. Por isso, Gil Vicente tem de ter a paciência de esperar. Um ano inteiro na barca do purgatório para, enfim, ser autorizado a entrar no céu há muito prometido."

José Manuel Delgado, in A Bola

1 comentário:

  1. Não é garantido que o Gil Vicente volte... vão voltar a nada decidir até já ser outra vez tarde.

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