sábado, 19 de maio de 2018

Hipocrisia

"Nada deverá ter chocado mais o futebol português do que o intolerável e bárbaro ataque à equipa do Sporting, na Academia em Alcochete

Na década de 80, nas ilhas britânicas, sobretudo em Inglaterra, o hooliganismo quase destruiu o futebol. E quando, após a tragédia do Heysel, na Bélgica (onde se verificou, em pleno estádio, a morte de 38 adeptos antes da final da Taça dos Campeões entre Liverpool e Juventus), os clubes ingleses foram impedidos por cinco anos de jogar as competições da UEFA, as autoridades britânicas lidaram a sério com o problema e deixaram de fingir que os arrufos dos adeptos fazem parte do futebol. Perceberam que teriam, verdadeiramente, de fazer cumprir a lei e a partir daí, cada adepto violento passou a ser preso e impedido, por três a dez anos (!!!), de voltar a um estádio.
No início da década seguinte, a Inglaterra construiu novos estádios, mais seguros e mais vigiados. Criou a Premier League. E deixou de aceitar que se confundisse paixão e emoção com irracionalidade.
Estendeu esse regime a todos. Adeptos e profissionais do jogo. E é por isso que, hoje, ninguém escapa a decisões firmes e a severas penas.
O que quer Portugal?
Continuar a parecer que, em muitos aspectos, brinca ao futebol profissional, ou levar realmente a sério o que os ingleses fizeram e procurar, apenas, repetir bem os melhores exemplos?
Tem até o futebol português, imagine-se, razões para se orgulhar de já ter dado ao exterior a imagem de elevado profissionalismo, rigor, capacidade de planeamento e extrema eficácia operacional quando chamou a si a organização do Euro-2004.
Acontece que muitas dessas boas práticas foram, infelizmente, ficando pelo caminho, até se tornarem, entre nós, apenas uma boa recordação. O que é triste.

Muito triste é, também, a hipocrisia, e até onde ela chega... quando muitos procuram, por exemplo, compara os excessos - muitíssimos condenáveis - de alguns jogadores do FC Porto no momento eufórico da merecida celebração do título com alguns obscenos comportamentos de adeptos ou claques, mais ou menos organizadas, legalizadas ou não, em diferentes recintos desportivos - estádios ou pavilhões -, entoando cânticos absolutamente inaceitáveis, num conjunto de comportamentos que deveriam até ser mais do que suficientes para que os autores fossem proibidos de voltar, por muito tempo, a assistir a qualquer espectáculo desportivo.
Nunca poderemos exigir dos adeptos o que devemos, todos, exigir dos jogadores, naturalmente obrigados a comportamentos eticamente de acordo com a respectiva condição de profissionais do futebol. Pode um reprovável comportamento de um adepto ser comparável com um reprovável comportamento de um jogador de futebol?
Claro que não! Nem a brincar.
O que se viu na festa do título do FC Porto foi como alguns jogadores portistas assumiram com inusitada facilidade reprováveis comportamentos de adeptos, como se nada fosse realmente importante, tudo se prestasse e brincadeiras de mau gosto e qualquer comportamento, devido à euforia ou a circunstâncias mais ou menos especiais, fosse obrigatoriamente desculpável. Mas não pode ser.
Tudo o que ofende, viola, fere, desrespeita e humilha é profundamente lamentável. E profundamente inaceitável.
E só há uma maneira de o banir: punindo. E punindo de forma exemplar. Venha o comportamento de onde vier, do grupo que vier e da cor que vier.
No caso, recente, da festa portista, não foi só a imagem deplorável do cachecol com que Alex Telles, a dado momento, se exibiu - vindo, no dia seguinte, a pedir dignamente desculpa, com o argumento, que naturalmente se aceita, de que desconhecia o que estava escrito no referido cachecol, ofensivo, no caso, para o Benfica.
Mas foram também alguns cânticos, no mínimo inapropriados, sucessivamente interpretados por jogadores que têm a responsabilidade social de servir de exemplo na cultura desportiva que queremos para os adeptos.
Se com adeptos já é mau, com jogadores profissionais é o fim!

Separemos, ainda, outras águas: o que adeptos fazem no interior de recintos ou instalações desportivas deve, obviamente, responsabilizar também os clubes; mas não o que fazem na rua. É hipócrita querer-se responsabilizar clubes pelo que os adeptos possam fazer na via pública.
Repare-se na suprema hipocrisia: o presidente do Sporting que recusa qualquer responsabilidade - mesmo que apenas moral, ou até política... - nos gravíssimos acontecimentos de Alcochete, é o mesmo que sempre quis atribuir ao Benfica a responsabilidade pela morte, por atropelamento, de um adeptos italiano do Sporting nas imediações do Estádio da Luz, em plena via pública, na sequência de violentos confrontos entre adeptos dos dois clubes, numa madrugada de Maio de 2017.
Na opinião do presidente leonino, nunca poderia, pois, atribuir-se ao Sporting - e muito menos ao líder... - qualquer tipo de responsabilidade pelo momento mais negro de que há memória no futebol profissional português; mas segundo o próprio, um atropelamento (voluntário ou involuntário) em plena rua já deve, por exemplo, responsabilizar o Benfica e os seus dirigentes. É muita hipocrisia.
O que se passou em Alcochete não foi um confronto de claques, um cântico num estádio ou uma simples rixa entre adeptos.
Foi uma violenta barbaridade. Foi um assalto. Foi terrorismo. Foi um horror. Foi algo, até, difícil de se acreditar que tenha acontecido.

Foi algo que deveria ter envergonhado toda a gente - e envergonhou, certamente, quase toda a gente... -, a começar pelo líder do Sporting, que jamais deveria deixar de assumir, no mínimo, a responsabilidade política por algo que nunca poderia, em qualquer circunstância, ter ocorrido. Nunca!
Já para não falar da responsabilidade moral de quem deveria ter a noção de como os nossos comportamentos e discursos, decisões, atitudes ou simples gestos ou palavras podem influenciar tantos outros, muito em particular numa actividade, o futebol, tão guiada, em grande medida, pela paixão e pelas emoções, e muitas vezes, infelizmente, pela irracionalidade pura.


A Academia em Alcochete é uma extensão de Alvalade.  Academia e Estádio devem, nesse sentido, ser vistos como espaço comum. E sob a mesma responsabilidade. Pois o que sucedeu em Alcochete foi um verdadeiro assalto de um grupo muito bem preparado - que até a correr parecia uma tropa de elite e não um grupo de simples e populares elementos de uma claque.
Dezenas de organizados adeptos entraram a seu bel-prazer, sem qualquer tipo de obstáculos ou obstrução, por uma academia desportiva adentro, tiveram a possibilidade de chegar ao mais sagrado de todos os espaços, o balneário de jogadores profissionais, agredindo atletas e agredindo ainda treinadores e outros profissionais e causando, por minutos, um clima de absoluto terror num espaço privado, que devia ser irrepreensivelmente inatacável e seguro. Não deve o clube, e seus dirigentes, ter qualquer responsabilidade nisto? Então quem deve?
Os jogadores, porque não conseguem jogar sempre bem? Os treinadores, porque não conseguem escolher sempre bem os jogadores?
Ou, por este andar, transformaremos despreocupadamente o futebol numa arena de barbaridades a que teremos todos de nos habituar? Não imagino sequer o que se viveu na academia do Sporting.
E nem me falem do dinheiro que os jogadores valem ou deixam de valer.
Nem me digam que são coisas que podem acontecer, como lamentavelmente afirmou o presidente do Sporting, porque «o crime faz parte do nosso dia a dia»!
Foi chocante, intolerável e muito triste. E julgo que, até hoje, nada deverá ter chocado mais o futebol português.

PS1: No auge da chamada crise do post do presidente do Sporting, talvez, na perspectiva de alguns, tivesse chegado a parecer necessário salvar o líder leonino dele próprio. Mas ao cabo de dois meses, talvez esteja agora definitivamente claro para os sócios do Sporting que, na realidade, o que é preciso é salvar todos os outros. E, nesse sentido, o próprio Sporting!

PS2: Tinha prometido a mim próprio escrever, por um tempo, apenas de futebol. Impossível, como se vê!"

João Bonzinho, in A Bola

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