quinta-feira, 26 de abril de 2018

O dia em que o soccer (por uma vez) saiu da sombra

"A vitória por 1-0 dos EUA frente à Inglaterra no Mundial 1950 é considerada uma das maiores surpresas de sempre, com uma equipa recheada de amadores (e dois luso-descendentes) a ganharem à pátria do futebol. Tão inconcebível que, segundo reza a lenda, alguns jornais britânicos achavam que a notícia tinha chegado com um erro: afinal era 10-0 para a sua equipa (Esta é a quarta história na nossa nova série enquanto Portugal não entra em campo no Mundial da Rússia)

Será provavelmente o momento mais alto da história do futebol norte-americano - vulgo soccer para aqueles lados - e no seu país praticamente ninguém se recorda ou fala dele. Mas do outro lado o seu efeito foi sísmico e destruiu um mito de superioridade que nunca mais se reafirmou com a mesma veemência. Argumento onde os protagonistas foram os EUA e a Inglaterra, o palco foi o Mundial 1950 no Brasil e o resultado foi uma vitória por 1-0 frente aos pais do futebol.
Apesar de terem participado no primeiro mundial, onde inclusivamente chegaram às meias-finais, o futebol foi durante largas décadas um desporto de terceira ou quarta categoria comparativamente a outras modalidades mais mediáticas nos EUA. Sem competições nacionais de relevo, a selecção era composta inteiramente por jogadores amadores, com um condutor de carros funerários e carteiros entre a comitiva, composta em grande parte por imigrantes de segunda geração e atletas recentemente naturalizados. Era o caso, por exemplo, de Eddie Sousa e Clarkie Souza, dois luso-descendentes que jogavam pelo Fall River Ponta Delgada (um dos clubes dominadores do futebol norte-americano de então) e compunham a ala esquerda da equipa.
Falamos de uma selecção que tinha perdido os seus últimos sete jogos internacionais sem apelo nem agravo, com um registo de 2 golos marcados e 45 sofridos, e que viajava para o Brasil com o rótulo de derrotada à partida. Só que como qualquer pessoa fã de uma boa história poderá dizer, pode haver sempre uma surpresa na manga. O que não parecia muito possível desta feita, até porque logo no primeiro jogo a doer da competição, a equipa norte-americana foi derrotada por 3-1 frente à Espanha. E seguia-se a Inglaterra.
A equipa de Sua Majestade participava no seu primeiro mundial, após ter recusado entrar nos anteriores por não considerar que houvesse adversários à altura dos inventores do futebol moderno. Conhecidos então como "os Reis do Futebol", tinham um histórico de 23 vitórias, 4 derrotas e 3 empates desde o final da 2ª Guerra Mundial com triunfos por 4-0 sobre a Itália e 10-0 frente a Portugal, entre outros. Uma equipa composta inteiramente por profissionais e onde pontificavam alguns dos melhores futebolistas do mundo, com destaque para o que era considerado mesmo O melhor, Stanley Mathews, o mago do drible.



Passar à fase final do Brasil 1950 (em que só os vencedores dos quatro grupos passavam ao grupo final) era considerado quase uma formalidade e a equipa não se deu sequer ao trabalho de juntar os jogadores de imediato, deixando alguns fazerem um tour de exibição para ganharem mais dinheiro, incluindo Stanley Mathews. Decisão que pareceu vindicada após a vitória sobre o Chile por 2-0 no primeiro jogo e que levou o treinador a tomar a decisão de deixar a estrela da companhia no banco para o jogo frente aos norte-americanos. Que tinham probabilidades, de acordo com as casas de apostas, de 500 para 1 de ganhar e que segundo o "Daily Express", até podiam começar "com três golos de avanço." Consegue adivinhar o que se segue?
"Acho que ninguém de nós achou que tínhamos alguma hipótese de ganhar", lembrou um dos veteranos da equipa, Walter Bahr. "O nosso objectivo era não perder por muitos." Ou, como afirmou o treinador, Bill Jefrey, os jogadores eram como "ovelhas à espera da chacina." O que não terá passado de jogo psicológico, mas não deixa de ser forte.

Incredulidade geral
Os relatos que sobrevivem do jogo em Belo Horizonte deixam perceber o expectável. Domínio intenso dos ingleses desde o primeiro minuto do jogo, com o guardião Frank Borghi (cuja verdadeira ambição era jogar basebol, sonho que a 2ª Guerra Mundial terá travado) a aplicar-se várias vezes. Entre duas bolas no ferro até aos 12 minutos de jogo e uns ingleses complacentes, os EUA começaram a desenvolver algumas jogadas que mereceram o agrado dos exigentes adeptos brasileiros.
Os arranques de Clarkie Souza, sobretudo, iam provocando alguns calafrios enquanto a equipa subia timidamente. E eis que aos 37 minutos o impensável aconteceu. Um remate fraco de Walter Bahr, que o guarda-redes Bert Williams parecia ter controlado, foi desviado pelo recentemente naturalizado Joe Gaetjens (de origem haitiana) com a bola a entrar lentamente na baliza inglesa. 1-0 e choque entre as hostes adversárias.
O golo deu renovada confiança aos americanos, que entraram mais fortes para a segunda parte, à espera do assalto inglês. Que nunca se materializou como se esperava, apesar de mais algumas oportunidades de golo, um apelo de grande penalidade e uma bola que o árbitro negou que tivesse entrado. Parecia estar destinado e o resultado improvável manteve-se até final, perante os vencedores (e uns vencidos) incrédulos.


Quando a notícia viajou o Atlântico até aos jornais ingleses, alguns editores assumiram que era um erro tipográfico e que o resultado, na realidade, teria sido 10-0 a favor da Inglaterra. Equipa que não mais recuperou do choque e perdeu no jogo seguinte também 1-0 para carimbar o adeus prematuro ao Mundial dos vencedores eleitos.
Já os norte-americanos viram o seu feito digno de David e Golias passar completamente ao lado do público e imprensa, até porque só havia um repórter do país a cobrir o evento, Dent McSkimming do "St. Louis Dispatch", que tinha pago a viagem do próprio bolso. "Foi como se a equipa de basebol inglesa tivesse jogado com os Yankees e vencido", recordaria mais tarde.
Passariam 40 anos até os EUA voltarem a participar num Mundial e a vitória histórica caiu no esquecimento. Os jogadores voltaram ao anonimato das suas vidas de sempre, com a excepção, pelos piores motivos, de Joe Gaetjens. O marcador do golo regressou ao Haiti, onde as suas ligações à oposição ao ditador Papa "Doc" Duvalier garantiram o seu desaparecimento e assassinato.
Já Clarkie Souza viu a sua exibição ser reconhecida com a eleição para a equipa do torneio, proeza que só voltaria a ser repetida por um norte-americano em 2002, Claudio Reyna que, curiosamente, também é luso-descendente. No Mundial que ficou para a história como o do Maracanazo, em que os favoritos brasileiros foram derrotados em casa pelo Uruguai (com direito a suicídios), a surpresa maior terá sido mesmo cometida por uns amadores de que poucos se lembram."

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