"Oportunamente lançado por Cristiano Ronaldo, faço a minha deriva pelos trilhos aéreos do pontapé de bicicleta, movimento popularizado pelo carioca Leónidas nos anos trinta e quarenta, por sua vez inspirado em Petronilho de Brito.
A grandiosa acrobacia de Cristiano em Turim já foi apreciada em quase todos os ângulos. E digo “quase” porque, ainda assim, em nenhum deles me foi transmitida uma sensação aproximada da pequenez que Barzagli e De Sciglio devem ter sentido quando a fera rugiu e soltou as garras à sua frente no ataque à bola. Admito que deve ter sido parecido com aquilo que Essien presenciou na final de Moscovo de há dez anos, quando o monstro madeirense concretizou, de cabeça, o cruzamento de Wes Brown. E o “Air Jordan” no Olímpico de Roma, contra os ‘giallorossi’, a passe de Scholes, também não foi mau de todo.
John Charles e Aldo Serena devem estar entre os futebolistas que mais alto chegaram nos Alpes, mas tenho dúvidas que Cristiano não os tenha superado na fasquia. Por exemplo, Jorge Jesus, no parêntesis que abriu para comentar o golo que deixou o mundo boquiaberto, vincou um aspecto digno de realce: ter, aos 33 anos, a capacidade física para pular e rematar com aquela pujança e elasticidade é qualquer coisa de espantoso. E, por ser tão raro, os adeptos da Juventus aplaudiram, como haviam feito com Iniesta em mais um elogio do génio.
A essa componente física do lance, juntaria a inteligência, pelo facto de CR ter percebido, antes dos defesas italianos, o local para onde Carvajal ia dirigir a bola e de que forma é que ela ia pingar. Acaba por ser esta conjugação de vectores que distingue os génios dos outros: a velocidade da percepção, análise e decisão. Trocando por miúdos, Cristiano foi mais célere a ter a noção da trajectória do cruzamento, com rapidez de raciocínio a uma velocidade inimaginável para se desmarcar no sentido inverso ao da baliza de Buffon e ainda demonstrar a qualidade para a execução que era de dificuldade máxima. Os outros ficaram pelo caminho, como tem sido regra.
A bicicleta no Juventus Stadium, leve e simultaneamente estrondosa, está garantidamente no álbum das imagens mais deslumbrantes do percurso de Cristiano e de toda a história da Liga dos Campeões. Ele até já tinha tido oportunidade de assinar um golo deste género em anos anteriores. Vi com os meus olhos no Estádio do Bessa, em 2006, num Portugal v Azerbaijão, os árbitros negarem-lhe um golo de bicicleta, após um amortecimento fantástico do ombro de Deco. Erradamente, entenderam que a bola rematada por Cristiano, que bateu na trave antes de cair no solo, não tinha ultrapassado a linha de golo.
Entre os melhores golos da carreira de Cristiano, recordo-me instantaneamente do petardo à Eusébio, em 2009, no Dragão, ainda pelo Manchester United. Creio que Fernando, médio-defensivo do Porto, não acreditava que o homem ia chutar de tão longe e não o pressionou a tempo. Mas chutou…
Foi um golo arrebatador, que estremeceu a Invicta. Mesmo assim, o apontamento genial de CR7 no JS, com uma definição totalmente diferente, não lhe fica atrás na espectacularidade e ficará eternizado como um dos melhores pontapés de bicicleta que alguma vez contemplámos. Foi bastante parecido com um de Van Basten contra o Den Bosch, na última época do ponta de lança no Ajax, em 1986/87, antes de Berlusconi o ter ido buscar. Na altura, Wouters efetuou o cruzamento.
Já pelo Milan, Van Basten repetiu a dose em San Siro com um golpe formidável na Champions, contra os suecos do IFK. Eranio deu a bola e o “Cisne de Utrecht” pontapeou a bola picada para a baliza do louco Ravelli.
Klaus Fischer e um antigo ídolo do Bernabéu, Hugo Sánchez (com quem Cristiano até já esteve num programa televisivo), eram alguns dos melhores especialistas dos anos oitenta na arte da impulsão, de permanecer no ar e chutar de costas para a baliza. Tem o seu quê de intuição, mas também de muita prática para a aplicação do remate. Perguntem a Rivaldo, autor de um dos hat-tricks mais memoráveis da história, em Camp Nou, contra o Valencia. Pobre Cañizares! Aquele último golo de 'chilena', com o relógio a queimar, com a presença na Champions em discussão, foi das coisas mais épicas que aconteceram num campo de futebol. De fora da grande área, após a levantada de peito quando Frank de Boer lhe deu a bola, “Rivo” esmagou a ‘porteria’ do guarda-redes valencianista. Se não viram, deem bom uso ao youtube.
Quase vinte anos depois de Rivaldo, Cristiano montou a sua bicicleta especial. Foi nas terras do Giro, em solo italiano, onde Rummenigge e Djorkaeff deram fama à ‘rovesciata’, ainda que mais em forma do pontapé de moinho celebrizado em Portugal por Artur Jorge. Cristiano recuperou o chuto de Leónidas, o tal que era considerado como o detentor da coroa do Brasil antes do aparecimento de Pelé. E convenhamos que o Rei também tratou do assunto na sua “Fuga para a Vitória”. Dê por onde der, estes génios nunca se deixam cair."
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