"A clivagem no futebol europeu acentua-se. Ano a ano. Época a época. E a nossa Liga precisa de não ignorar os dados objectivos.
1. Vivemos as semanas das competições europeias de futebol, a continuação dos Jogos Olímpicos de Inverno, com a expressiva claque norte-coreana, a diplomacia a eles singularmente inerente e imanente e, também ontem, a assembleia geral do Sporting. A não ingerência nos assuntos internos de outros Estados é um dos princípios da ordem internacional após a segunda guerra mundial e a consolidação das Nações Unidas. Princípio que, no meu simples entendimento, se deve assumir, por ora, no que concerne a um dos clubes de referência do desporto português, e logo, do desporto europeu. E a respeito de Europa, e dos sinais que brotam da Liga dos Campeões e também, em parte, da Liga Europa, há sinais de domínio que nos devem alertar, e até, seriamente preocupar. Os clubes - sociedades desportivas - que mais gastaram nos anos mais recentes são aqueles que estão a dominar na Europa e, até, nas respectivas e internas Ligas. E nessas Ligas - inglesa e francesa, alemã e espanhola - as diferenças dos que estão no primeiro lugar - Manchester City, PSG, Bayern e Barcelona - para os segundos são bem significativas. Quem gastou mais foi o Manchester City: 878 milhões de euros. Depois, e com o fair play da UEFA - em rigor o seu Comité de Controle Financeiro - a ultimar para o arranque de Março um relatório de avaliação, depararmos o PSG com 805 milhões. Que perde em Madrid com mais dois golos do nosso Cristiano Ronaldo! Seguem-se o Manchester United (747 milhões), o Barcelona (725 M), o Chelsea (592 M), o referido Real Madrid (497 M), o Liverpool (461 M), a Juventus (448 M), o Arsenal (403 M), o Everton (365 M) ou o Bayern de Munique (363 M). E só depois aparecem o Milão (305 M), o Mónaco (286 M), o Inter de Milão (217 M) e o Nápoles (204 M). Nos vinte mais gastadores não encontramos nenhum clube português. Sendo inequívoco que encontraríamos no caso de a ponderação ser a vertente vendedora! Estes números evidenciam o domínio inglês. Que vai acentuando. Como o resultado do Dragão também expressa. E os números mostram, ainda, o dualismo espanhol ou a unidimensionalidade na Alemanha do Bayern. E olhemos até para o Tottenham que perdeu o respeito, na passada terça-feira à Velha Senhora, à Juventus! O dinheiro vai acentuando as diferenças. E trazendo novos dominadores! E vai mostrando que os direitos televisivos ingleses também dão poder. Dirão alguns fortes músculo financeiro. Diremos nós que levam as competições europeias para um regime de duas velocidades. Quase que parecem dois euros. Um euro mais e um euro menos! Que não é, tão só, a diferença entre Liga dos Campeões e a Liga Europa. Que nesta época recebeu nomes de referência da Europa. Mas a clivagem no futebol europeu acentua-se. Ano a ano. edição a edição. Época a época. E a nossa Liga precisa de não ignorar os dados objectivos que se sedimentam. Daí que fez bem a Liga liderada por Pedro Proença em suscitar, em articulação com a consultora Ernest & Young, um anuário sobre a sustentabilidade do futebol português visando «a promoção de maior transparência financeira». E, aqui, era importante sabermos quem são os verdadeiros donos de muitas sociedades desportivas portuguesas. Sejam as das competições profissionais sejam, igualmente, as já muitas sociedades desportivas unipessoais que participam na principal competição organizada pela vitoriosa Federação Portuguesa de Futebol. Os números são importantes. A partir deles poderemos extrair tendências ou, até, suscitar sinais de alerta. Por mim os sinais já me soaram. Há algum tempo. E acredito também para a UEFA e para as suas lideranças!
2. Comprei, há poucas semanas, um livro que me entusiasmou e que li quase de um fôlego. Foi escrito por um grande jogador brasileiro e que também foi médico e Professor de medicina. E que é comentador de televisão e, também, uma referência na opinião desportiva. Seu nome, Eduardo Gonçalves de Andrade. Mundialmente conhecido por Tostão. Campeão do Mundo no México abrindo espaço para as arrancadas de Jairzinho, os pontapés de Rivelino e a majestade de Pelé. O livro, que vivamente aconselho, tem um título sugestivo: 'Tempos vividos, sonhados e perdidos. Um olhar sobre o futebol'. Li-o a par de um outro de Marcelo Barreto em que retrata os '11 maiores camisas 10 do futebol brasileiro'. Uma ideia que deixo a este jornal e à Bola TV. Promover o estudo, sempre complexo, dos maiores 10, ou 0, ou 2, ou 3, ou 5, ou 7, ou até os maiores guarda-redes do futebol português. Aproveitando alguma história oral de protagonistas singulares que ainda têm memória e que ainda darão voz a momentos inesquecíveis ou a instantes deliciosos. Com Tostão aprendi que até 1966 «somente jogadores que actuavam no Rio e em São Paulo eram convocados para a canarinha». E que a ditadura de então exigiu à Confederação Brasileira a convocatória de jogadores de outros estados. Como era o seu caso como jogador do Cruzeiro de Belo Horizonte. E desta forma Tostão chegou à selecção e participou no Mundial de 1966. E, aqui, escreve Tostão «Portugal era muito melhor do que o Brasil, pelo jogo colectivo, além de ter o segundo melhor jogador do mundo na época, Eusébio». O primeiro era naturalmente para Tostão a majestade Pelé! E termina a sua séria reflexão, preocupado com o tempo próximo do Brasil e do seu futebol, assumindo que «receio que, no futuro, a história conte que, no passado, havia um lugar, o país do futebol, que tinha um rei, Pelé (...) e um grande número de craques fenomenais que jogavam um futebol espectacular, mágico, bonito e eficiente». E alertando para diferentes causas está seriamente preocupado com o futuro do futebol brasileiro. Por isso quer «estar longe perto de tudo. A vida e o futebol continuam». Mas como escreveu João Guimarães Rosa «a vida dá muitas voltas, a vida nem é da gente». São estas voltas que Tostão nos proporciona. Ele que em razão de um bolada no olho, desferida num pontapé acidental do guarda-redes Ditão, do Corinthinas, que lhe causou o deslocamento da retina abandonou prematuramente a alta competição. E a leitura, ávida e quase sôfrega, é um banho de cultura futebolística e de vida fez-nos bem. Mesmo bem. Nesses tempos de mudança na sociedade e no futebol, no quotidiano e na paixão. Do jogo e da vida. Onde faltam sabedoria e simplicidade. Uma e outra transbordam do livro de Tostão, do Professor Eduardo Gonçalves de Andrade."
Fernando Seara, in A Bola
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