quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

“Quando começas a sair à noite e toda a gente te reconhece e se mete contigo, começas a achar que és o bambambã lá do sítio"

"- Há quanto tempo é agente de jogadores?
- Há sete anos, desde que deixei de jogar futebol.

- Como é que isso aconteceu?
- Foi-me endereçado o convite quando aos 31 anos não encontrei aquilo que idealizava para dar continuidade à minha carreira de futebolista. Financeiramente, a minha vida estava estável e pude dar-me ao luxo de repensar se valia a pena dar ou não continuidade à carreira de jogador. Acabei o contrato na Rússia e vim para Portugal à procura de clube, estive de maio a Janeiro à espera e como não encontrei pensei que seria difícil regressar depois de estar um ano sem jogar. Por isso, quando surgiu o convite, aceitei.

- Começou com o Paulo Barbosa mas depois criou a sua própria agência de jogadores, certo?
- Os primeiros três anos trabalhei com o Paulo Barbosa, que foi meu agente muitos anos. Aprendi muito, mas a partir de determinada altura senti que havia muitas coisas com as quais não estava de acordo, porque tinha estado do outro lado, sei o que é estar na pele de jogador. Cada vez mais tenho a certeza de que optei pelo melhor caminho.

- Porquê?
- Quero ser agente de futebol e não viver de falsas promessas ou de enganar o jogador. É preciso não esquecer que o futebol só existe porque há jogadores. Infelizmente cada vez mais as pessoas querem transmitir a imagem de que o futebol só existe porque há uma polémica à segunda-feira sobre o árbitro que engana não sei quem, à terça porque o presidente e o seu director de comunicação decidiram atacar o presidente de outra instituição... Cada vez mais o jogador de futebol, que é aquele que alimenta o futebol, está a ficar de parte. Eu quero ser um agente, não melhor ou pior do que ninguém, mas diferente.

- Diferente como?
- As pessoas só veem e só questionam o Cristiano Ronaldo ou o Jonas que marcam golos e ganham milhões, mas os jogadores são 500 milhões que ganham tostões, e muitos deles em Portugal não recebem o salário em dia. O mínimo que um jogador de futebol merece é respeito.

- Tem a sua empresa desde quando?
- Criei a “Leaguepro” em 2014 quando decidi sair e partilhar o meu caminho com o Paulo Madeira, que decidiu seguir-me. Trabalhamos em conjunto a parte desportiva com outro rapaz que não tem passado de futebolista, mas depois temos a parte jurídica e de acompanhamento de outros investimentos que os jogadores possam ter. Temos um leque alargado de funções e tentamos prestar o melhor serviço aos jogadores, mas principalmente é isto: não enganar nem prometer o que não é viável.

- Foi sempre isso que quis fazer quando abandonasse a carreira de jogador ou passou-lhe pela cabeça ser treinador?
- Fui muito jovem para um país, França, que me abriu muitos horizontes, porque lá os jogadores a partir dos 26, 27 anos começam a ter formações e a decidir o que querem fazer. Por isso, comecei a amadurecer muito cedo a ideia do que seria o pós-carreira. Às vezes, o mais difícil no futebol, e foi o que me aconteceu, é que de um momento para o outro passamos de uma estrela brilhante para uma estrela que passa na rua e ninguém reconhece. Mas tenho um lema de vida: “quando estamos lá em cima não somos imbatíveis como também quando estamos lá no fundo não somos aquele que toda a gente pode pisar”. Por isso, mesmo depois da minha carreira ter dado o boom, quando fui para fora, nunca fui arrogante e acabei por ter frutos dessa minha forma de estar. Mas, voltando à sua pergunta, treinador acho que não conseguia ser.

- Porquê?
- Porque sou muito impulsivo. Acho que não ia ter a maturidade suficiente para lidar com uma equipa. Podia ser adjunto, talvez, mas acho que a vida e as pessoas que fui conhecendo abriram o caminho para aquilo em que posso ser bom, que é ser agente de jogadores. Talvez director desportivo, quiçá, pudesse ser uma outra vertente.

- Tem quantos jogadores em carteira?
- Assim de cabeça... Entre 10 e 15.

- Trabalha sobretudo o mercado nacional?
- Não. Tenho um jogador no Manchester United, o Joel Pereira, tenho o Hugo Almeida no Hajduk Split, da Croácia, tenho o Afonso Taira no Kiryat Shmona, de Israel, tenho o João Aurélio, tenho o Anderson Luis, no Brasil, e mais alguns.
- Como é que isso funciona: chega junto dos jogadores e pergunta-lhes se querem ser representados por si?
- Tinha a vantagem de ter sido jogador e como estive com o Paulo Barbosa fui fazendo o acompanhamento de alguns jogadores...Nunca, nunca hei-de representar, nem represento, nenhum jogador sem o ver jogar, sem o conhecer pessoalmente. E, se calhar, ao contrário de muitos outros agentes, eu nunca abordo um jogador com o contrato na mão. Para poder representar um jogador temos de ter um conhecimento mútuo. Eles tem de saber como sou, como trabalho, eu tenho de os conhecer pessoalmente porque se não houver química, os contratos valem o que valem e apesar da obrigatoriedade que temos de os ter assinados, para mim basta-me a palavra. Sempre que entro em contacto com alguém que decido representar, digo que temos de ser realistas e honestos um com o outro. Eu não vou ter todas as soluções do mundo nem o jogador há-de ser sempre o melhor jogador do mundo ou o pior.

- Aborda jogadores que já tenham agente ou não o faz?
- Dificilmente...Não digo que não abordo jogadores que têm agente, mas há agentes e agentes. Há pessoas que vamos respeitando e há outros que não nos respeitam e portanto nós também não os respeitamos. A primeira coisa que faço é saber se tem agente, se está contente, se não está. O problema às vezes é saber gerir isso, porque o jogador nunca está contente. Quando vem alguém novo está sempre à espera que traga a melhor solução do mundo. O jogador de futebol tem um ego muito grande e pensa que só ele é que sabe e hoje fala comigo, amanhã há-de falar com outro; temos de ter essa sensibilidade. Vou aconselhando-os da melhor maneira em prol do que considero ser o melhor para as suas carreiras. Sei que há agentes que muitas vezes dizem “tu não jogas porque o treinador isto ou o director aquilo”. O jogador não joga porque não está a fazer o seu melhor, porque o treinador quer é ganhar como qualquer jogador que entra para dentro do campo. Mas temos de saber que isto é efémero, é um bocado como a coca-cola, quando a abrimos é muito boa, mas passado um dia não presta.

- Normalmente os agentes ganham uma percentagem sobre a venda do jogador. Também tem avenças? Como funciona?
- Cada negócio é montando consoante a envolvência de muitas coisas. É muito subjectivo eu dizer seja o que for. Mas há uma coisa: eu não cobro ao jogador, quem paga os meus serviços normalmente são os clubes. Até hoje nenhum jogador me pagou. Têm sido sempre os clubes, há um acordo. Mas é muito difícil dizer que é sempre igual, porque tudo depende do momento: há jogadores que estão livres, outros não. Avenças não tenho.

- Como falou nas outras vertentes de apoio jurídico ou aos investimentos dos jogadores...
- Mas aí eu sou apenas um "veículo" que transporta os jogadores para pessoas da minha confiança, que trabalham essas áreas. O jogador paga os serviços que forem prestados por cada entidade que eu os aconselhe. Na parte da advocacia é a minha irmã, que tem uma empresa de advogados onde tenho o meu escritório e a sede da minha empresa. Ela cobra consoante o que os jogadores precisam, seja compra de casa, ou outra coisa. Eu apenas indico essas pessoas de confiança. É que há muita gente que quando vê jogadores de futebol vê muito dinheiro e portanto é fácil...custa dez e dizem que custa 20.

- Vamos voltar atrás no tempo. Quando nasceu o que faziam os seus pais?
- O meu pai faleceu quando eu tinha 12 para 13 anos.Tinha uma empresa de tabaco, bebidas alcoólicas e mercearias, com um dos irmãos. Mas perdeu-se por caminhos que não eram os mais simpáticos, acabou num divórcio litigioso com a minha mãe, perdeu tudo e morreu uns anos depois. Foi uma lição de vida porque mostrou-me como uma pessoa que podia ter tido muito mais, acabou sem nada. Fui viver para casa dos meus avós maternos que foram o apoio para o meu desenvolvimento e agradeço-lhes muito por isso, principalmente à minha avó, Maria da Conceição, que não me largou em momento algum. Foi ela que me levou ao futebol. É a minha fã Nº1.

- Quando é que foi viver com os seus avós?
- Quando os meus pais se separaram. Tinha sete anos.

- É um choque imenso perder um pai aos 12 anos.
- Apesar de todas as divergências que havia entre a parte materna e o lado paterno com o divórcio, com muitas ou poucas razões de ambas as partes, somos crianças e muitas vezes não temos a real noção do que é um divórcio ou a razão para a qual as coisas acontecem… Mas, é sempre o teu pai. Custa sempre. Ainda hoje dou comigo a pensar porque é que a vida teve que ser assim.

- Sentiu muito a falta da figura paterna ou seu avô de alguma forma ajudou a ultrapassar um pouco isso?
- Claro que senti. Algumas carências que tenho... felizmente que não tive filhos homens porque acho que se calhar não ia estar preparado...Todas as coisas que fui passando na minha juventude... não tinha um pai presente. Tinha o meu avô mas era um senhor muito mais velho com uma educação completamente diferente, tudo era mais fechado, nada se podia partilhar, eles tinham vergonha de nos transmitir ou de alertar para coisas que hoje felizmente tentamos ao máximo explicar aos nossos filhos, como tudo o que tem a ver com droga, álcool, sexo, etc. Claro que tive carências nessa parte. Fui superando falando com amigos, a ver os colegas como fazias ou não. Coisas simples como fazer a barba. Mas se isso me deixou muitas vezes triste, por outro lado tornou-me mais forte.
- Disse que felizmente não teve nenhum filho rapaz. Porquê?
- Digo em tom de brincadeira porque tinha de ser eu a explicar essas situações mais difíceis. E estou muito feliz com as duas filhas que tive a felicidade de ter. Se calhar um rapaz ia seguir pelo caminho de futebol e ia ter de sofrer o que sofri. Não sei, é subjectivo.

- Foi então a sua avó que o levou para o futebol.
- Sim, os meus avós viviam na Damaia. Um bocado por isso, porque fui viver para uma zona perto do Bairro 6 de Maio, para não fugir para caminhos desagradáveis quase que me obrigaram a ser jogador de futebol porque eu queria era ser piloto aviador. Caí no futebol por um acaso. Comecei no futebol de salão no Santos da Venda Nova e ao fim de um ano pediram-me para ir prestar provas ao Benfica. 

- Já lá vamos. A sua mãe fazia o quê?
- Ela sempre foi secretária de administração de uma empresa que ainda existe. Está quase a reformar-se.

- Tem só uma irmã?
- Sim, a minha irmã que é advogada, tem mais três anos do que eu.

- Como é que vai parar ao Benfica?
- O senhor Aires, que era o treinador do Santos da Venda Nova e amigo do meu avô, era cunhado do Nené do Benfica. Disse-me para ir ao Benfica que arranjava maneira de eu treinar lá, mas eu até nem queria muito. Depois lá fui aos treinos de captação e acabei por fazer 10 anos de formação no Benfica. Estive lá dos oito aos 22 anos.

- Nessa altura já torcia pelo Benfica?
- Desde que me lembro que gosto do Benfica. Claro que quando me torno jogador a sério... amigos, amigos, negócios à parte.

- Quando foi do Santos da Venda Nova para o Benfica a diferença foi muito grande?
- A diferença é que passei do rinque e de futebol de salão para um relvado e futebol de sete. São conceitos de jogo diferentes.

- Ia sozinho?
- Não, não. A minha avó levava-me sempre, assistia aos treinos, chovesse ou fizesse sol. Foi uma pessoa muito importante para mim. Os primeiros jogos que fiz no estrangeiro com o Benfica, com 15 ou 16 anos, a minha avó acompanhou-me, foi de carro, portanto não me posso queixar.

- Gostava da escola?
- Gostava de ir à escola, estudar é que não gostava muito (risos). Frequentei até ao 10º ano. Quando estava a acabar a carreira ainda me inscrevi nas Novas Oportunidades mas, infelizmente, contra a vontade da minha mulher e das minhas filhas não acabei o 12º ano. Penso um dia vir a acabar porque acho que é importante. A minha escola foi a escola de vida. Estudar é importante, dá-nos abertura a muita coisa, mas aquilo que fui vivendo, as línguas que aprendi, as culturas que conheci, todas essas coisas deram-me uma bagagem muito mais importante.
- A determinada altura o Benfica empresta-o ao Alverca. Ainda era júnior?
- Foi na fase de transição de júnior para sénior. O Benfica tinha um protocolo com o Alverca que era como se fosse a equipa B. Treinávamos duas a três vezes por semana com o Benfica e o Alverca seria o veículo para podermos ter jogos nas pernas.

- Ficou chateado por ter de ir para o Alverca?
- Quando temos a felicidade da formação que eu tive, a jogar sempre no Benfica, a ir à selecção nacional, e chegamos aos 19, 20 anos e tudo na vida tem sido fácil… “Jogo no Benfica”, “Toda a gente me conhece”, ficamos com um ego do tamanho do clube e quando chegamos a um clube humilde como o Alverca, caímos na realidade. Mas o Alverca foi muito importante para mim, porque apanhei jogadores muito mais velhos que nunca tinham chegado a um patamar tão alto, mas que me ensinaram coisas muito importantes para a vida. Só que quando vivemos em clubes grandes estamos em redomas de vidro e pensamos que tudo é fácil e a vida, muito pelo contrário, não é fácil.

- Que coisas importantes aprendeu com esses jogadores mais velhos que referiu?
- Que o futebol é efémero e que muitas vezes damos importância ou pensamos que estamos num patamar em que realmente não estamos. Eu revoltava-me porque pensava: “Mas então eu chego do Benfica, titular dos juniores, joguei os jogos todos, selecção portuguesa e estou no Alverca. Quem é o Alverca?” E nem no Alverca às vezes era convocado. Mas faz parte do crescimento.

- Ou seja, é fácil um jogador que cresceu no Benfica deslumbrar-se.
- Não é fácil, é mais do que fácil. E hoje, quando se joga num clube de elite como Benfica, Sporting, FC Porto ou SC Braga, V. Guimarães, é ainda mais fácil. Na altura já era, hoje então com as redes sociais, com a divulgação da imprensa, com os meios que existem... é muito fácil um jogador deslumbrar-se.

- Foi para o Benfica com oito anos, mas quando é que assina o primeiro contrato?
- Aos 16 para 17 anos.

- É só aí que começa a receber dinheiro?
- Sempre recebi ajudas de custo. Ou pagavam o passe ou davam um dinheiro para ajuda à gasolina dos pais, avós, Mas receber um ordenado foi com 16 anos.

- Lembra-se do valor?
- 45 ou 50 contos (250 euros).

- O que fez ao dinheiro?
- Dei à minha mãe, todo. Ela diz que usou, mas não, guardou-o numa conta, foi juntando.

- Não quis comprar nada em especial?
- Não, porque nunca fui de exigir, nunca fui um miúdo ligado a esse tipo de coisas, de roupa de marca ou assim. Eu ficava contente com o que a minha mãe me comprava.

- Quando é chamado pela primeira vez à selecção?
- Fui chamado aos sub-16, era o Rui Caçador o seleccionador. Fui fazer um torneio em Itália. Foi giro porque apesar de ter jogado sempre no Benfica nunca tinha tido a oportunidade de ir às selecções distritais, que é o percurso normal dos jogadores jovens. Passei por isso tudo e entrei directamente na selecção nacional. É uma alegria enorme perceber que o teu trabalho começa a ser reconhecido e foi aí que comecei a pensar: “eu se calhar até tenho jeito para isto”. Porque ser seleccionado para um grupo de 18 jogadores dos melhores do nosso país nessa idade... É um motivo de orgulho. Fiquei vaidosíssimo. Fui tentando desfrutar o momento.

- Sentia alterações também na escola, ou seja, passou a ser o centro das atenções na escola por ser jogador do Benfica?
- Sim. Para já, quando se joga no Benfica seja a que nível for, na escola é tudo muito mais fácil. Não digo ao nível das notas, mas as pessoas abordam-te, os colegas também sentem-se vaidosos porque têm um amigo ou colega que joga no Benfica. Indo à selecção nacional somos inseridos num projecto educativo um pouco diferente, temos algumas regalias porque faltamos muito. Por exemplo, nesse ano tínhamos o apuramento e o campeonato da Europa de sub-16 e eu estive um mês sem ir à escola. Fazia testes em alturas diferentes. Tínhamos esse tipo de regalias. Mas era difícil conciliar à mesma porque a vontade já não é muita e a exigência é enorme...mas houve colegas meus que conseguiram, se calhar tiveram mais força de vontade do que eu.
- Quando é que fez a estreia na equipa sénior do Benfica?
- Estreei-me ainda como júnior, num jogo particular na Académica de Coimbra, ainda com Artur Jorge como treinador. Um jogo de pré-época.

- Tremeu quando foi chamado?
- Quando comecei a ir treinar com os seniores tremia. Ainda me lembro de quando chegávamos lá para treinar vinham os mais velhos distribuir os coletes e diziam: “menino, hoje não podes perder a bola, se perder vais correr sozinho”. Eles quando viam um jogador mais novo pensavam: “ele vem, vai ter medo, vai perder bolas, vamos ter de correr o dobro”. Mas também tive a sorte, se calhar por ser um pouco diferente, dos jogadores mais velhos receberem-me sempre bem nos clubes por onde fui passando.

- Esteve no Alverca quanto tempo, época e meia?
- Sim. E pouco ou nada joguei no Alverca.

- Porquê?
- Porque o Alverca tinha uma excelente equipa, já eram jogadores batidos de II divisão e eu estava a começar. Faz parte, nós é que não queremos perceber que faz parte.

- Revoltou-se muitas vezes?
- Imensas.

- Dizia alguma coisa ao treinador?
- Não, sempre respeitei os treinadores independentemente das suas decisões. Com outro tipo de estatuto nós podemos ter outro tipo de conversas, mas nunca contestei nem perguntei a um treinador porque não me punha a jogar, porque quando punha também não lhe perguntava porque jogava. Mas ficava triste, chorava, não percebia, pensava que eu era o maior. Tinha alguns erros normais de juventude.

- Nessa altura ainda vivia em casa dos avós?
- Sim. No segundo ano de Alverca há a transição de treinadores no Benfica, o Manuel José é despedido e o Graeme Souness pega na equipa. Ele vem com o Nelo Vingada que me conhecia das selecções e eles começaram a fazer com o António Simões umas observações aos nossos jogos. Foram ver dois jogos em que as coisas correram-me bem e chamaram-me. Estreei-me na minha segunda época no Alverca. Fizemos uma época excepcional, subimos à I divisão. E a partir daí o Souness foi-me dando algumas oportunidades. Nesses seis meses jogava tanto no Alverca como no Benfica. E no ano seguinte fiz parte do plantel do Benfica.
- Continuou a ser chamado às selecções?
- Sim, acho que dos sub 16 aos sub 21 não faltei nenhuma convocatória e nenhum jogo. Joguei em quase todos eles.

- Quando se fala em selecção o que é que vem de imediato à memória?
- Os amigos que fazemos para a vida, jogadores de outros clubes.

- Como por exemplo?
- Lembro-me do Paulo Pereira do FCP. Alguns nem conseguiram fazer uma carreira tão grande e eram excelentes jogadores; lembro-me dos momentos em que convivemos uns com os outros. E ao contrário do que as pessoas queriam fazer parecer, de que havia guerras entre Lisboa e Norte, tínhamos um conjunto de jogadores muito giro do Sporting, FCP e Benfica que durante anos se deu muito bem, apesar de não termos ganho nada.

- Faziam muitas partidas uns aos outros?
- Quando vinham jogadores novos havia sempre praxe.

- O que faziam?
- Tínhamos uma muito boa. Costumávamos ficar no INATEL de Oeiras, e ligávamos para os jogadores novos com uma voz séria, como se fosse o senhor da recepção, a dizer que estava ali o David Sequerra, que era um jornalista muito respeitado da “Gazeta dos Desportos”, um jornal da altura. E eles coitados, todos felizes da vida, iam a correr e era mentira.

- E escapadelas, também as faziam?
- Eu por acaso não. Gostava de fazer essas brincadeiras de meter-me com os colegas, inventar histórias, mas fugir de estágios nunca o fiz.

- O Dani, em entrevista, confessou que muitas vezes fugia dos estágios...
- (risos) Mas esse era o rei das escapadelas (risos). Ele é dois anos mais velho não o apanhei na selecção, mas joguei contra ele. Lembro-me de uma altura em que ele é afastado da equipa principal do Sporting e havia aquela lei em que os juniores sub 19 podiam jogar com um jogador mais velho... Ele, de castigo, lá foi fazer um torneio de abertura da época e jogámos um Benfica-Sporting, no Olivais e Moscavide. Ele assumiu que estava lá de castigo porque tinha fugido do estágio ou não tinha aparecido, já não me lembro. (risos).

- Voltando ao Benfica. Gostou do Graeme Souness?
- Gostei. Tinha a particularidade inglesa de gostar de ter dois, três dias de folga para poder ir ver a família. Mas trabalhámos bem, era amigo dos seus jogadores e acho que fez coisas importantes. Cometeu alguns erros? Cometeu, mas isso todos cometemos. As coisas não correram da melhor forma, mas com ele jogávamos muito bom futebol. Se calhar depois escolheu alguns jogadores para trazer que não corresponderam àquilo que se calhar idealizava.

- Na segunda época, 1998/99, o Bruno jogou mais.
- Sim, mas houve ali uma altura em que começo a achar que sou eu outra vez o bambambã da história, com alguma razão naquela altura, embora a reacção que tive poderia tê-la tido de outra forma. Mas acho que foi normal porque ele contratou um jogador inglês para a minha posição. E fê-lo quando o Scott Minto, que tinha pedido para sair, tinha vindo dizer publicamente que ia embora feliz e que o Benfica não se devia preocupar porque tinha um lateral esquerdo para o resto da vida, que era eu. Falou em mim. A verdade é que o Souness decidiu trazer um lateral esquerdo e eu passei para o banco alguns jogos mal o Steve Harkness chegou. Chateei-me e disse publicamente algumas coisas que fazem parte da irreverência da juventude.

- Que coisas?
- Qualquer coisa do género: “Agora que estava tão bem, Souness tirou-me o tapete”. Foi qualquer coisa assim, numa conferência de imprensa. Ele não gostou, coincidiu com uma derrota pesadíssima, se não me engano com o Boavista, em casa. Depois acusou-me publicamente também; disse que eu era um miúdo. Mas o Souness entendeu-me e o que quis transmitir e dizer foi: “podias ter tido essa reação, mas não da forma como tiveste e onde a tiveste”. Acho que aprendi.

- O Souness entretanto é despedido e no ano a seguir vem o Jupp Heynckes. Que tal?
- Adorei trabalhar com ele. Ao início ficava triste, não quis perceber a mensagem, porque lá está, já tinha comprado a minha casa, tinha feito um contrato simpático, pensava que já estava no céu e afinal não.

- Voltou a deslumbrar-se.
- Começamos a ter muito mais procura, começamos a pensar na vida e começamos a sair mais à noite. Começas a ter outro tipo de importâncias na vida. O que é normal porque tens 19 anos, começas a ser famoso, vais para todo o lado e toda a gente te conhece, vais aos bares e toda a gente se mete contigo. Portanto, começas a pensar: “eu sou bambambã aqui do sítio”. E o Heynckes sempre me disse que eu podia ser o melhor lateral esquerdo e que era a opção para ele, mas que eu tinha de mudar o meu estilo de vida.

- Começou a sair muito à noite?
- Sim, saía muito, fiz algumas asneiras nesse sentido porque não descansava o que devia descansar. 

- Que locais frequentava?
- Ia muito ao “Café da Ponte”, onde iam as figuras públicas, jogadores de futebol...e ia para o Bairro Alto. Era onde havia festas (risos).

- Nessa altura ainda não era casado.
- Não, ia namorando (risos).

- Comprou casa em Lisboa e foi viver sozinho?
- Sim, tinha 19 anos. Comprei uma vivenda em Santo António dos Cavaleiros; era a casa do Paulo Sousa na altura. Fui vizinho do Paulo Madeira. Foi também com esse intuito porque o Paulo Madeira era um dos capitães, era representado pelo mesmo agente que eu, e foi uma pessoa que me ajudou bastante na integração na equipa e nos conselhos que me foi dando para a vida. Às vezes, ouvia; outras vezes, fingia que ouvia (risos).

- Deve ter comprado também carro nessa altura...
- Sim, quando fiz o meu contrato profissional não ganhava muito mas já tinha responsabilidade e comprei carro. Depois, quando as coisas começaram a melhorar comprei a casa. Comecei a ficar mais exposto e na altura um jogador de futebol tinha que ter uma grande casa, um grande carro. Quando começo a ir aos almoços de equipa, vejo todos com grandes carros. Eu tinha um FIAT Punto. Começas a ter vergonha, é a tal pressão, começas a ouvir: “Como é que tu jogador do Benfica não tens um carro em condições?”. Acabei por ceder à pressão e comprei um Z3 ao Ovchinnikov. Solteiro, 19 anos, carro descapotável, são aqueles devaneios de jovem (risos). Há coisas que fui fazendo e que só quando fui para fora percebi que se calhar fiz tudo ao contrário. Tive a sorte de ir jovem e acabadinho de casar. Foi a melhor coisa que me aconteceu, sair do país e ter casado, porque se calhar hoje não tinha a vida que tenho, com a estabilidade que tenho.

- Quando é que conhece a sua mulher?
- Conheço-a em 1998/99, numa das minhas idas a uma das festas no norte. Falava-se muito que eu podia sair do Benfica e como a família da minha mãe é de Vila Pouca de Aguiar, onde sempre passei as minhas férias, fui para lá para me resguardar um bocadinho. Com uns amigos fui correndo as festas da zona. Um dia fui a Bragança e conheci a minha mulher, que não me quis conhecer.

- Como assim?
- Não quis conhecer-me (risos). Quando entrei na discoteca, toda gente começa a comentar está aqui o Bruno Basto, do Benfica. Está a ver como é, ainda para mais num meio pequeno. Ela estava lá, aproximou-se mas não me deu muita bola. Disse-me: “eu não quero conhecer-te, só quero saber quem tu és porque toda a gente diz que és jogador do Benfica”. Aquilo despertou-me o interesse. “Esta senhora é diferente de todas as outras”. E fiquei curioso.

- Foi atrás dela?
- Tive de ir embora, mas passados dois dias voltei, e como sabia mais ou menos os cafés que ela frequentava, fui à procura. Perguntei por ela, mas como ela tinha acabado o curso (é professora de matemática e ciências), foi embora para casa. Ela era de Mondim de Basto. Através de uma amiga, a muito custo, passados dois ou três dias consegui o número dela. Liguei e começámos o contacto. Ela estava a terminar uma relação, eu também. Começámos a namorar e passado um ano casámos.

- Foi rápido.
- Foi porque eu ia para fora e porque a família dela é muito religiosa. Ela é a filha mais nova de três irmãs, com 15 e 20 anos de diferença. A minha sogra já faleceu e o meu sogro tem 82 anos. Já eram pessoas com idade avançada.
- Foi para o Bordéus, mas deu a entender que até queria ter ficado e que se calhar foi ajudado a sair do Benfica.
- Eu ganhava muito pouco. Começo a ter pessoas a dizer: “vais ganhar isto”, “vais ganhar aquilo”; e eu sempre disse: “se o Benfica me der um salário simpático, aquilo que eu acho que é bom para mim, prefiro ficar em Portugal, adoro o Benfica e é o sonho de qualquer jogador estar a viver o que estou a viver”. Estive dois anos e meio na equipa profissional e a minha situação nunca foi melhorada, era sempre prometido. “Não sais agora, mas para o ano vamos melhorar o contrato”. Melhoraram em Janeiro de 2000 e fui vendido em Junho de 2000.

- O Paulo Barbosa já era seu empresário nessa altura?
- Já, ele surge quando eu tinha 18 anos. Abordou-me através de pessoas amigas.

- Então mas explique melhor a saída do Benfica.
- No ano anterior tive abordagens de vários clubes espanhóis que me queriam comprar e o Benfica disse que não, que ia melhorar o contrato. Eu também me sentia bem no clube. Era jovem e imaturo e o meu sonho estava a tornar-se real, não estava a ligar muito à questão financeira. Mas no segundo ano quando vi que o Benfica não reconheceu o meu valor, pensei que se calhar estava a perder oportunidades. Como tinha dado tudo e de um momento para o outro saí da equipa, disse: “Ou me renovam a sério o contrato ou vou embora, porque estou a ter oportunidades de melhorar a minha vida desportiva e financeiramente”.

- Mas o Benfica não tinha renovado contrato consigo no início de 2000?
- Sim, fez umas alterações mas eu não fiquei satisfeito. Para aquilo que estava a produzir e para aquilo que se falava que ganhavam todos os meus colegas que jogavam menos do que eu... Senti-me no direito de começar a pensar mais em mim. Nesse ano havia a possibilidade do Valência, que já vinha do ano anterior, mas o mais forte foi o Bordéus.

- Quando o Paulo Barbosa lhe fala do Bordéus, qual foi a sua primeira reacção?
- Eu já estava triste porque não via desenvolvimentos no Benfica; entretanto, tive uma lesão, fui operado ao joelho e comecei a pensar que estava mesmo na altura de sair. Foi bom para ambos porque o clube também acabou por encaixar um bom valor e eu fiz um contrato simpático.
- Foi para França já casado?
- Casei em Maio, fui de lua-de-mel para as Maldivas e tive de interromper para assinar o contrato. Havia uma segunda parte da lua-de-mel, no Brasil, que já não se concretizou porque a época começou em Junho. Primeiro fui sozinho para Bordéus, até porque a minha mulher estava a acabar de dar aulas, ela já era professora.

- Quando lá chegou qual foi o primeiro impacto?
- Duro. Porque ao contrário de qualquer estrangeiro que chega aqui e é ajudado por todos nós, em França, quando cheguei não falava francês; eu falava inglês e ninguém falava inglês. Eu era um menino, tinha 21 anos, estava habituado a ter os meus dois telefones a tocar de cinco em cinco minutos, a convidarem-me para todo o lado e.. Ali não conheço nada, não sei falar para tratar das coisas práticas e normais de um cidadão. A pessoa do clube que estava comigo não falava outra língua a não ser o francês. E nos primeiros tempos chorei muita lágrima naquele hotel, em França, sozinho. Foi mais uma aprendizagem. Foi mais uma lição de vida, porque quando percebes que o telefone deixa de tocar também começas a perceber quem são os teus verdadeiros amigos, aquelas pessoas que eu sabia que se um dia verdadeiramente precisasse, elas iam estar lá para me ajudar.

- E o francês?
- Tive de começar a aprender. Comprei um guia prático português-francês e foi assim que aprendi. Nunca tive aulas, mas aprendi a falar francês correctamente em pouco mais de um mês. Eu também sou muito comunicativo e expansivo, não tenho vergonha de perguntar. E tive ajuda também do Bruno da Rocha, filho de emigrantes portugueses, que tinha jogado lá e que me ajudou muito na integração. Mas no início foi duro, porque estava habituado a chegar a um balneário aqui e a fazer o que queria, brincava, tinha atenção e lá alguns nem bom dia me davam. Olhavam com ar: “mas quem és tu, vens de onde?”. Mas isso foi bom, a França fez-me crescer e aprender que nós temos de saber conquistar o nosso espaço, temos de saber esperar. Nós não estamos preparados para sair com 19, 20 anos para o estrangeiro. Temos que fazer um trabalho muito mais forte do que fazemos. E basta ver nos últimos anos os jogadores novos quando saem, ao fim de um ano ou dois voltam. Na altura aliás dei uma entrevista em que falava disso. Os Hugo Viana, Postigas, etc, todos foram e voltaram rápido. O embate é muito grande.

- Como foi para a sua mulher?
- Também não foi fácil para ela. Casados há um mês, a viver pela primeira vez juntos. Mas acho que foi bom e cada vez mais digo que foi a escolha certa a nível pessoal. Este ano vamos fazer 18 anos de casados, temos duas filhas, passámos coisas boas e más e cá nos vamos mantendo.

- Ela não voltou a dar aulas?
- Não. Só mais tarde quando fui para a Rússia. Nessa altura ficou dona de casa e tomar conta do marido (risos). Sabe, às vezes as pessoas falam que as mulheres dos jogadores são isto, são aquilo, têm uma vida financeira desafogada, etc. Mas ao contrário do que as pessoas pensam não é fácil porque abdicam dos seus sonhos, dos sacrifícios que fizeram para estudar e ter o seu curso. O problema é que as pessoas gostam de generalizar e dizer que as mulheres dos jogadores são todas fúteis e poucos inteligentes, que gostam de vida boa. Nem todas são assim. Como o jogador de futebol, aliás.

- Quatro épocas no Bordéus. As melhores recordações?
- Tudo o que passei lá, mesmo no último ano em que entrei em conflito com aquele que tinha sido meu capitão e que era meu treinador, o Michele Pavon, ou mesmo quando cheguei no primeiro ano, em que eu ia a pensar que ia ser o titular indiscutível e tive que trabalhar para ter o meu lugar e só fiz 15, 20 jogos na altura. Foi tudo bom.
- Tornou-se amigo do Pauleta no Bordéus.
- Sim. Fui o primeiro português a chegar. Passado um mês e pouco chega o Pauleta. Eu não o conhecia mas fui dando boas referências quando me perguntavam aqui e ali por ele. Mas não o conhecia (risos). Chegou em boa altura porque é um dos melhores amigos que tenho ainda hoje.

- As vossas famílias passaram a conviver?
- Sim, estávamos sempre juntos. Tornou-se um hábito as famílias almoçarem juntas ao domingo.

- De onde vem a alcunha “Bola Branca”?
- O “Bola Branca” já vem dos tempos do Benfica porque sempre gostei de me informar, de ler. Tenho o vício há muitos anos de tomar sempre o pequeno almoço fora e ler o jornal desportivo e os diários normais; leio tudo. Quando chegava ao treino, ia informando os colegas. Quando as pessoas precisavam de qualquer coisa, falavam comigo. Até quando era para tratar da escola dos miúdos eu dizia falas aqui e fazes assim, e eles: “mas tu nem tens filhos e sabes isso?!” (risos). Porque eu perguntava as coisas, queria saber. Acho que também é por isso que o Bordéus ainda hoje tem um respeito enorme por mim. Porque ajudava a integrar todos os jogadores que passavam por lá. Como falava português, francês, inglês, e já estava integrado, muitas vezes era eu que fazia a ligação de todos eles. Fui tradutor do Pauleta em algumas conferências de imprensa. Se calhar no Benfica tive alguns comportamentos de “estrela”, mas era jovem, imaturo. Com a ida para o Bordéus aprendi a ser um pouco mais humilde.

- O último ano no Bordéus não correu bem porquê?
- No ano anterior o Bordéus perde vários jogadores. Eu já estava no lote dos jogadores mais caros do plantel e resolveram baixar custos e os jogadores com contratos mais elevados saíram.
- Foi emprestado?
- Não, tinha mais três anos de contrato e o Bordéus também aí demonstra o carinho seguramente que tinha comigo, porque deixou-me ir livre para o Feyenoord sem cobrar qualquer contrapartida. Eu também pensei: “estou com 26 anos, joguei aqui quatro anos, tenho quase 200 jogos no Bordéus, tenho que ir à procura de outras possibilidades”. E apareceu o Feyenoord. Falei com a minha mulher que me disse que ali estávamos bem, tínhamos a nossa casa, estávamos acomodados… ela sabia que o treinador estava a implicar comigo e que não me convocava mas achava que era passageiro porque fechando o mercado, eu ia voltar a jogar. Mas ele tinha sido meu colega e já sabia mais ou menos o que ele seria. Se calhar os nossos feitios não se iriam enquadrar futuramente, iríamos ter chatices e como eu não gosto de ter chatices, decidi aceitar o convite do Feyenoord.

- Como é que foi a adaptação?
- Foi mais difícil. A língua difícil, um país muito cinzento, o modo de vida é completamente diferente porque eles acordam muito mais cedo, o jantar é por volta das seis, sete da tarde e depois não se vê mais gente. Foi uma cultura que tivemos que aprender a saber viver com ela. Como costumo dizer que foi óptimo apesar de no segundo ano eu e o Feyenoord entrarmos num conflito de interesses. Joguei muito pouco, estive seis meses praticamente sem jogar, afastado, na equipa B. E depois fui para o Saint Etienne seis meses.

- Porque é que entraram em conflito?
- Porque eu tinha sido contratação do treinador que saiu, o Ruud Gullit, e o director desportivo da altura quis mandar-me para um clube grego de baixa dimensão. E eu disse-lhes que para isso tinha clubes em Espanha interessados. Eles disseram que ou ia para ali ou não ia para lado nenhum, e eu “Então não vou, fico aqui”. Mais uma vez, são coisas que nós depois vamos aprendendo: “ah tenho este contrato, é um dado adquirido”. Mas os jogadores que entram em guerra perdem. E eu sinto que a carreira excelente que fiz até aí teve uma quebra quando eu entrei em conflito, porque fiz 20 jogos no primeiro ano com o Feyenoord. Entrei em conflito, estive seis meses sem jogar e ai percebi o quão é difícil depois voltar a reentrar.
- Como é que surge o Saint Etienne?
- O Saint Etienne tinha um treinador que tinha sido meu treinador no Bordéus, o Elie Baup, que começou a insistir para eu ir para lá. Disse-lhe que ia tentar, mas que só ia por seis meses, que depois também acabava o contrato.

- A família nessa altura foi ou ficou?
- Foi. Entretanto tinha nascido a minha filha mais nova, a Maria Matilde em 2005. A mais velha, Maria Carolina, nasceu em França quando estava no Bordéus, mas a mais nova como eu já estava em litígio com o clube, a minha mulher veio tê-la a Portugal. Pronto, eu fui em Janeiro para França e a minha mulher e as minhas filhas vão em Fevereiro, só lá estão dois, três meses.

- Como correram as coisas no Saint Etienne?
- Correram optimamente bem. O treinador depois saiu, perguntou-me se eu já tinha decidido alguma coisa da minha vida, e eu disse-lhe que não porque tinha duas filhas pequenas, tinha que falar com a família; e então ele disse que era capaz de ir para um clube e que me levava, para eu não assinar com ninguém. A verdade é que ele foi, eu fui rejeitando algumas coisas (outra má decisão minha) e acabei por ficar no desemprego. Depois apareceu o Nacional da Madeira porque vendeu o Miguelito ao Benfica, já mesmo nos últimos dias…

- Aí foi duro para si.
- Foi duro após essa situação. Não tinha a noção real do desemprego, estava à espera que com o meu talento algum clube iria aparecer e comecei a perceber que se calhar as coisas já não eram assim. É verdade que se calhar eu também me desleixei um pouco nesse ano, não me preparei como devia nas férias. Chego ao Nacional no final de agosto, já não jogava desde maio, estava com quilos a mais e foi duro. Tive que me adaptar, porque tinha uma vida desafogada financeiramente, tinha carros de alta potência, e quando chego e vejo os jogadores com problemas financeiros, pensei: “eu não posso vir para este clube e trazer os carros que tenho”.

- Que carros é que tinha na altura?
- Um Porsche e um BMW X5. Levei só o X5 para a família andar e comprei um Smart para ir para os treinos. Comecei a pensar que ia ferir susceptibilidades.

- Na altura quem era o treinador?
- Na altura era o Carlos Brito. Quando cheguei disse que queria fazer mais um treino porque não estava em condições e ai senti que houve algumas desavenças ou ideias diferentes das minhas, e as pessoas pensaram que eu em vez de estar a fazer aquilo para me ajudar a mim próprio e à equipa, queria ser diferente e mais do que os outros e entrámos em conflito. Eu não, mas senti que o treinador ficou um pouco desagradado com essa situação e pronto, foi um ano e meio em que joguei muito pouco. A equipa também tinha jogadores com qualidade, sei que também não estava em condições. Passado um ano e meio apareceu a oportunidade da Rússia e fui para a Rússia.
- Vai por que razão? Pelo dinheiro?
- Fui para a Rússia porque fiquei desiludido com aquilo que tinha vivido desportivamente no Nacional da Madeira e comecei a pensar, tenho quase 30 anos, a minha carreira está a chegar ao fim, isto é um projecto financeiro e desportivo bom para mim. Falei com a minha família, ainda ponderámos ir todos, mas não consegui porque não tinha escola internacional na cidade para onde eu ia. E pôr a minha filha a aprender russo, nada lhe serviria para o futuro seguramente, então optámos por elas ficarem e eu ir sozinho.

- Elas ficaram em Lisboa?
- Foram para Vila Real onde temos casa também. Ficaram num colégio, uma das professoras tinha sido colega de curso da minha mulher. Entretanto, como havia uma colega que ia ter bébe, perguntaram se ela não queria fazer a substituição, apesar de ser só por três ou quatro meses. A minha mulher aceitou, o colégio gostou e no ano seguinte continuou lá a trabalhar enquanto eu estava na Rússia.

- Como é que foi a adaptação à Rússia, sozinho, sem a família?
- Na altura fui com o Ricardo Silva, os dois sem família. Para mim, desde o primeiro embate que foi a saída para o Bordéus, já nada me afectou a partir daí.

- Mas na Rússia faz frio, a língua também não é fácil...
- Mas como sou muito extrovertido, pergunto tudo, como é que se diz isto e aquilo... Lembro-me de ter chegado ao pé do capitão de equipa, ainda aqui em Portugal – porque quando me juntei à equipa ela estagiava no Algarve – e pedi para ele me fazer o alfabeto cirílico e o inglês em baixo para perceber quais eram as letras e começar a aprender a falar russo.

- E aprendeu?
- Aprendi e falo, claro que não fala fluentemente como falava, mas tudo o que eles falam percebo e também consigo ler algumas coisas. Falo seis línguas devido ao futebol. Português, inglês, francês, espanhol, holandês e russo.

- Ficou a viver num hotel na Rússia?
- Não, vivia no centro de estágio e quando a minha família ia ter comigo, tínhamos um apartamento. Um jogador para qualquer clube que vá, tem muito mais facilidade do que um emigrante. Eu vi essa realidade, da emigração, quando fui para França. Conheci muitos portugueses que, coitados, foram sem nada e que tiveram de dormir na rua até conseguirem alguma coisa. E o jogador de futebol quando vai, tem que ter facilidade de adaptação e tem que perceber como as coisas funcionam. Quando fui para Roterdão, eles têm cinco horas de sol, por isso eu não posso viver em Roterdão. Temos que perceber e adaptar-nos às culturas dos países. Por isso é que eu acho que fui feliz e senti-me bem a viver em qualquer sítio porque tento entrar na cultura deles. Não quis viver como em Lisboa. E às vezes o problema dos jogadores, quando se fala da adaptação, é que eles querem manter o estilo de vida em países diferentes e é impossível.

- E ao futebol, adaptou-se, gostou?
- Sim, gostei. Claro que aquilo que se fala da Rússia...Há muito jogo fora dos campos, há muita... é esquisito porque não é só a qualidade do futebol, há muitos acordos entre clubes e outras coisas que a gente não pode dizer.

- Mas alguma vez foi abordado?
- (Silêncio). Próxima pergunta.

- Porque não ficou mais tempo?
- Na Rússia, o que foi duro foi estar longe da minha família, da minha mulher e das minhas filhas, isso foi o mais duro. Foi o início de coisas importantes, principalmente para a minha filha mais velha: a primeira vez que foi à escola, as primeiras coisas que aprendeu a escrever e isso…. Eu podia ter todo o dinheiro do mundo, mas isso são coisas que eu nunca mais as vou ter. E muitas vezes os miúdos dizem coisas que magoam. “Tu nunca estás”. “Deixaste-nos aqui”. São coisas normais da inocência delas, mas que me fizeram pensar que realmente estava a perder coisas que não há dinheiro nenhum no mundo que pague.

- Quando vem da Rússia ainda faz o estágio dos jogadores desempregados no Sindicato dos Jogadores. Porquê?
- Disse à minha mulher que ou ia para um sítio que financeiramente fosse muito bom que nos permitisse preparar a nossa vida a nível futuro ou então não jogava mais futebol. Na altura, o Evangelista com quem tinha boas relações, começou a dizer; “Eh pá, podias vir aqui porque também é bom, há muitos jogadores que podiam ver o teu exemplo”. Achei interessante a abordagem que eles tiveram e pensei que podia ser-lhes útil. Dar a conhecer o projecto a outros jogadores que têm vergonha e preferem ficar em casa em vez de irem ao treino do Sindicato dos Jogadores. Porque infelizmente há esse preconceito. Os clubes ainda olham “Ah e tal, se estão ali é porque...”. Não, aquilo é um projecto muito bom, em França também existiu e há muitos países onde existe. Não é a mesma coisa treinar sozinho do que treinar com outros jogadores, mesmo que não seja ao nível mais alto para um profissional de futebol. Foi gratificante porque convivi com jogadores e com realidades completamente diferentes da minha. Trocamos sentimentos, informações de coisas, da vida de cada um. Nesse mês que estive com eles, fizemos um torneio fora e adorei. Adorei a partilha de experiências.
- Nessa altura ainda tinha esperança de voltar a jogar?
- Tinha. Estava com 31 anos e a maior mágoa que tenho hoje em dia é essa. Acho que tinha qualidade e capacidade para ter jogado na primeira divisão portuguesa mesmo com 31 anos. Também acho que houve um bocado aquela ideia “Ah este também já é aquela 'rata velha', já ganhou muito dinheiro”. Nunca tive uma abordagem sequer do género “Olha, queres vir jogar de borla?”. A única abordagem real que tive foi de um senhor, o Filipe Ramos, do Real Massamá. Ele disse-me: “Bruno, vens para aqui, a gente não ganha muito, não podemos pagar muito, mas ...”. Só que eu respondi: “Mister eu não vou jogar pelo dinheiro, só que, com o devido respeito, não me leve a mal, mas ou jogo ao nível que eu acho que tenho ou então não jogo”. Porque sabia que iam dizer: “olha este desgraçadinho teve que ir para ali”. E não era a realidade que eu queria passar.

- Mas é sempre duro não é?
- É duro mas eu honestamente estava tão... Houve uma altura da minha carreira, no Feyenoord, em que entrei em litígio e fui para o Saint Etienne. Eu, que no ano anterior tinha sido pré-convocado para ir ao Mundial de 2006, estou no lote dos 33 ou 35, e de um momento para o outro, não sou convocado. Aí foi um choque grande. Mas fui fazendo pela vida e comecei a pensar que o futebol são momentos e que se a gente não está nesse momento, dificilmente podemos voltar.

- Falou da selecção, depois dos sub 21 quando é que voltou a ser chamado?
- Fiz o percurso da selecção B. Mas depois a selecção A é uma das mágoas que tenho até hoje, nunca me foi dada uma oportunidade. Fui pré-convocado para o Europeu em Portugal, fui pré-convocado para muitos jogos internacionais, mas nunca estive na lista final, as pessoas lá saberão o porquê. Oportunidades nunca me foram dadas, por isso não sei se teria sido capaz ou não. Agora, obviamente que custa. Realmente o que me custou foi perceber que estou pré-convocado para ir a um Mundial e estou no Saint Etienne e de repente não tenho clube. Essa foi se calhar a fase mais dura e talvez por isso talvez me tenha desleixado um bocado. Parei e se calhar a consequência na carreira foi o declínio desportivo.
- Entre o estágio no Sindicato dos Jogadores até se tornar agente, ainda que primeiro com Paulo Barbosa, quanto tempo é que medeia?
- Seis meses.

- O que fez durante esse tempo?
- Decidi vir viver para Lisboa. A minha mulher não pôde vir logo porque as meninas estavam na escola lá em cima e ela estava a acabar de dar aulas. Eu fiquei aqui esses seis meses porque ainda estava à espera de encontrar clube. Comecei a treinar com o meu amigo António Pereira ali no Atlético de Portugal, para manter a forma e não estar parado. Inscrevi-me nas Novas Oportunidades, mas depois começou a ser muito difícil porque a minha família estava no norte e eu fazia piscinas Vila Real-Lisboa, Lisboa-Vila Real. E pus a escola de parte, mantive só os treinos.

- E é o Paulo Barbosa que o convida para trabalhar com ele.
- Ele e o Paulo Madeira. Era jovem, tinha alguns conhecimentos, falava muitas línguas.

- Antes de terem vindo falar consigo, sentia-se perdido sobre o que é que ia fazer?
- Muito honestamente, eu senti que eles me convidariam. Nós tínhamos os três uma relação muito próxima e o Paulo Madeira dizia muitas vezes: “tu qualquer dia vens trabalhar connosco”. Nunca me senti perdido porque nunca tive medo de nada. O que me aparecesse e se tivesse que trabalhar noutra coisa não me assustava. Hoje em dia o problema do jogador de futebol é o ego. Está sempre preocupado com: “eu fui jogador e agora já não”. O jogador de futebol foi e é um momento, se há alguma coisa que consegue recuperar o passado é o museu. Nós vamos ao museu ver a história do António e do Manuel. No futebol foi, foi, já ninguém se lembra.

- As suas filhas estão com quantos anos?
- Uma tem 15 e a outra tem 12.

- Praticam algum desporto?
- Sim, fazem as duas equitação e ténis.

- Acha que alguma delas vai seguir a vertente desportiva?
- Talvez a mais nova, é possível na equitação. Já me anda a chatear muito para comprar um cavalo, mas temos que ter calma (risos). Faz saltos, já entrou em competições.

- Nunca investiu em negócios?
- O único negócio em que me meti foi há pouco tempo, com a minha mulher. Como ela não continuou a trabalhar na escola tem agora uma empresa com uma loja online, tem uma marca própria, a “Sardina”, de moda de praia. Tive também alguns investimentos imobiliários, mas só isso.

- Como é o seu dia a dia hoje?
- Muitas das vezes tento levar as minhas filhas ao colégio, depois vou para o escritório trabalhar, manter contactos e começar a preparar os negócios porque nesta área tenho mercados, tem janelas para se poder trabalhar.

- Quando essas ‘janelas’ estão fechadas o que é que faz?
- Observação dos jogadores, aproveitamos para ir viajar e ver os jogadores que temos noutros países, mantendo contacto com eles, sabendo como as coisas estão a correr. Vamos em busca de novos jogadores para trabalhar connosco, mantendo a possibilidade de outros negócios noutros mercados, com outros parceiros. A minha mulher diz que ao fim de semana quase não me vê porque vejo muito jogos e aproveito para estar no terreno. E tenho, às vezes, uma ou duas vezes por semana um jogo de futebol de antigos jogadores, para manter o bichinho do futebol.
- O videoárbitro veio ajudar?
- Acho que ajuda quando as pessoas são criteriosas nas suas observações e não facciosas. Mas o problema não é a decisão do videoárbitro, o problema são os comentários que se criam após as decisões do videoárbitro. Erros com videoárbitro ou sem videoárbitro vão haver. Dizem “o jogador é pago para isso e o árbitro é pago para isso”; pois é, mas são decisões muito difíceis de tomar. Por isso, quando vou à televisão pergunto sempre quem é que lá vai estar comigo. Não vou para um tribunal defender ninguém porque não sou juiz, nem para uma mesa de operações, porque não sou médico. Tem que se ter muito cuidado porque se cria uma guerra num instante.

- Está muito contaminado o futebol?
- Está porque as pessoas permitem que esteja. Os dirigentes permitem, mas os maiores culpados são os jogadores. Os jogadores deviam fazer como quando cheguei a França, em que na primeira semana não entrei em estádios. Não havia jogos. Mas quem disse que não havia jogos foram os jogadores. Porque o sindicato do futebol francês é muito forte, tem pessoas no governo. Eles queriam tirar a pessoa que pertencia ao sindicato e os jogadores disseram que não jogavam. E não jogaram. Mas quem estava à frente eram o Dugarry, Barthez, Zidane, os jogadores mais importantes. Aqui os jogadores mais importantes que poderiam ajudar e fazer força estão nos clubes grandes e também se encolhem. Não têm problemas e esquecem-se que a pirâmide é muito grande e os que estão no fundo da pirâmide têm muitos problemas.

- Qual foi o treinador que mais o marcou?
- Foram tantos, e acho que todos eles de uma maneira ou de outra, positivamente ou negativamente marcaram. Tenho um carinho especial se calhar pelo Souness porque deu-me a oportunidade de me estrear numa equipa profissional, em jogos do Benfica

- E as amizades para vida? Já falou do Paulo Madeira, do Pauleta. Que outras amizades fez?
- Para os anos que tive de futebol, deveria ter tido muito mais. Deveria ter tido não por culpa própria, mas porque as pessoas são o que são, mas felizmente para vida tenho o Pauleta, o Paulo Madeira, o Paulo Miranda, o Hélder Postiga.

- Não tem nenhuma história do Benfica para contar?
- Posso contar uma. Quando o Jupp Heynckes era treinador fizemos um estágio de pré-época na Áustria. Ficámos numa estância de neve, mas como estávamos, no verão, havia um calor abrasador. Nós fazíamos sempre o percurso para o treino de bicicleta ou a pé. Quando voltávamos, costumávamos ir para o último andar da estância onde havia um spa, onde costumávamos fazer massagens, banhos, sauna, etc. Num dos dias, eu e o Paulo Madeira viémos a correr que nem uns desalmados para cima e começámos a atirar sacos e baldes de água para cima da cabeça das pessoas do staff e das pessoas que estavam a entrar. Um deles era o mister Heynckes que ainda vinha na bicicleta e que se ia esbardalhando todo (risos). Saiu da bicicleta, foi a correr lá acima todo vermelho para saber quem tinha feito aquilo, e eu e o Paulo escondemo-nos no jacuzzi a fingir que não era nada connosco. Ele todo vermelho a querer saber quem foi (risos), mas nunca conseguiu saber."

1 comentário:

  1. Coloque no início da entrevista o título, "entrevista a Bruno basto" só no fim é que se consegue saber deque se trata.

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