"O desporto é um sector de actividade social, cultural e económico. Por esta mesma ordem. Primeiro, é um fenómeno de natureza social que ajuda a organizar e vivificar a comunidade nacional, estreitando relações entre pessoas e grupos, originando instituições que estruturam as práticas e se envolvem em treino e competições, locais, regionais, nacionais ou, até no limite, internacionais. Depois, é também um fautor de cultura, por implicar o respeito por normas de organização e competição, originar eventos com rituais e cerimoniais próprios e originais, por estreitar formas e modelos de inter-relacionamento entre indivíduos, grupos e organizações públicas, privadas e sociais, e ainda por impor aos seus praticantes regras gerais de conduta e imaginários próprios e únicos. Finalmente, o desporto é também um catalisador de actividades económicas, dele directamente originadas ou existentes em seu redor, sejam de ímpeto apenas local, as de menor impacto, até ao mais abrangente de carácter multinacional com impactos multidimensionais e persistentes durante prazos mais ou menos longos, que lhe dão um destaque e um reconhecimento valiosos no contexto da vida económica de qualquer país.
O desporto em Portugal há muitos anos que carece de estratégia concertada de desenvolvimento. O estado/governo tem responsabilidades constitucionais que têm vindo a ser progressivamente abandonadas e que foram reconhecidas por no desporto existir uma incapacidade de o mercado prover todas as suas práticas e necessidades reais. O estado tem, assim, deixado de se responsabilizar, como é seu dever inerente, pelo contínuo fomento da prática desportiva, definindo planos de acção para concretizar a disseminação do desporto pelas várias faixas etárias da população, mas com especial destaque para os jovens em contexto escolar, sem excluir os que frequentem o ensino superior.
Nestas quase duas décadas do século XXI nunca o estado/governo do país teve a nítida preocupação e o engenho de estabelecer um quadro de fomento e programação do desenvolvimento do desporto nacional. Nunca se conheceu sequer um documento que pensasse o desporto português com essa matriz directora e visasse dar ao desporto muito mais do que ele tivesse conseguido até então. O desporto nacional tem vogado, deste modo, praticamente sem um quadro referencial de evolução e melhoria progressiva dos seus níveis de prática e sucesso social, cultural e económico.
Acresceu a esta falha de estado uma outra a partir de 2004/2005. Trata-se da atribuição ao Comité Olímpico de Portugal (COP) das funções de governação do sistema desportivo do alto rendimento. O estado/governo mais uma vez passou a alhear-se das suas responsabilidades e funções de orientação, planeamento e estratégia no domínio do segmento mais competitivo do desporto nacional, para o entregar a uma organização que não tinha mandato ou natureza adequada para o fazer.
Aquilo que devia caber a uma agência especializada do estado/governo, ou seja, conceber o plano e a estratégia, bem como atribuir o financiamento, a um conjunto de modalidades desportivas seleccionadas como as mais aptas a obter bons resultados em competições europeias, mundiais e nos Jogos Olímpicos, ficou entregue a uma organização externa ao próprio estado/governo, o qual devia ser o seu estratega, regulador e financiador.
No meio deste insensato e ineficaz modelo de governação, sem coerência doutrinária, orgânica e funcional, e até financeira, os resultados destes anos ao nível das grandes competições mundiais em que o desporto português de alta competição tem estado envolvido, com destaque para campeonatos do mundo e Jogos Olímpicos, não poderia ser outro do que os muito modestos que têm vindo a ser sucessivamente obtidos. Foi isso que aconteceu, nomeadamente, nas três últimas edições dos Jogos Olímpicos, respectivamente, Pequim (2008), Londres (2012) e Rio (2016). A análise do desempenho do sistema vigente permite dizer que os resultados desportivos obtidos, fracos, são altamente dispendiosos, o que dá um alto nível de ineficiência para o uso dos meios financeiros atribuídos e até dos recursos humanos, treinadores, dirigentes e atletas, que têm estado envolvidos ao longo dos anos nas sucessivas renovações do mesmo modelo de governação.
Existe, por conseguinte, uma contradição insanável no modelo de governação do sistema desportivo de alto desempenho. O vértice estratégico que devia ser confiado ao estado/governo e a uma sua agência especializada, com autonomia organizativa, de gestão e meios financeiros próprios, não existe. E pior, é inadequadamente substituído pelo COP, que não tem funções de concepção e planeamento estratégico, nem poderia ter face à sua inerente natureza originária de representante do Comité Olímpico Internacional e de mero organizador da representação olímpica portuguesa em cada edição dos Jogos Olímpicos. O COP está, assim, a cumprir apenas ou quase o papel de tesoureiro da preparação olímpica perante cada uma das federações e seus respectivos atletas, escritura os gastos anuais e disso dá conta ao Instituto Português do Desporto e Juventude, sem que haja um plano efectivo que integre essas funções contabilísticas e defina que objectivos e metas que há para cumprir, em que desportos, e com afectação às respectivas federações de um determinado envelope financeiro que possibilite a concretização ao longo de cada ciclo desportivo (olímpico, por exemplo) dos objectivos e metas previamente traçados. O COP não esteve nunca e não estará no futuro capacitado para desempenhar o papel que só o estado/governo e uma sua agência dedicada ao desporto de alto rendimento, com orgânica especial e atribuições claras e estratégicas, poderia cumprir. Esse é aliás o modelo do Reino Unido, que tantos e tão bons resultados surtiu nas grandes competições internacionais, com destaque para os obtidos sucessivamente em cada uma das últimas três edições dos Jogos Olímpicos, tendo atingido o segundo lugar na edição do Rio (2016) só atrás dos EUA e tendo ultrapassado mesmo a China e a Rússia.
O desporto em Portugal sofre de grande incapacidade de planeamento e orientação estratégica, com o estado/governo a eximir-se às suas atribuições e responsabilidades constitucionais há imensos anos, tendo deixado o fomento da prática desportiva dos jovens e outros segmentos etários entregue ao improviso e à indefinição, com poucos recursos organizacionais e financeiros, e o sistema de alta competição atribuído a uma entidade incapaz de lhe dar um rumo estruturalmente estratégico e planeado. Aliás, o actual governo prometeu no seu programa uma “Nova Agenda para o Desporto” que ainda hoje, passados mais de dois anos de mandato, não viu uma única linha programática à luz do dia. O que demonstra o quase completo abandono do desporto e do seu desenvolvimento pelo estado/governo neste novo ciclo governativo, o que já não é novidade e vem tão só perpetuar a alienação doutrinária/ideológica do estado/governo na produção de conhecimento sobre desenvolvimento do desporto e até sobre desporto e desenvolvimento.
Até posso acrescentar que entre nós a pessoa que há várias décadas tem produzido sistematicamente doutrina e concepções relativas ao desenvolvimento do desporto, o Professor Gustavo Pires, catedrático da área da gestão do desporto da Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade de Lisboa, tem sido completamente esquecido das instituições do estado e do sistema desportivo pela razão de na sua labuta em defesa do desporto e do seu valor indiscutível ter tomado frequentemente posições críticas sobre o modo como o desporto e o seu desenvolvimento e afirmação nacional tem sido mal liderado, mal orientado, mal gerido e mal concebido.
Tem assim faltado em Portugal uma intervenção estruturante do estado/governo nos caminhos do desporto, muita ausência de campo doutrinário com produção sistematizada de ideias sobre o seu planeamento, estratégia, domínios e instrumentos de desenvolvimento, e projecção para o terreno das organizações desportivas, desde as escolares de todos os níveis, aos clubes e federações das modalidades, das acções e dos meios financeiros consequentes aos seus percursos e patamares de incremento e melhoria organizacional e de prática desportiva. E também tem falhado a implementação de um novo modelo de organização e financiamento do desporto de alto rendimento baseado numa agência específica, com autonomia organizacional, de governação e de gestão, dotada dos correspondentes recursos técnicos, administrativos e financeiros, determinados por um planeamento de médio e longo prazo para o desenvolvimento daquele tipo de desporto competitivo, com uma estratégia bem concebida, dotada de objectivos e metas específicas para os diferentes desportos, fruto de uma cooperação directa entre a agência estatal e as respectivas federações desportivas das modalidades mais representativas e devidamente seleccionadas.
Sabemos que está prevista proximamente uma reunião do Conselho Nacional do Desporto, essa seria uma boa ocasião para se abrir uma discussão ampla sobre os temas da organização e orientação do desporto português durante os próximos doze anos, de modo a que a sua insuficiência detectada ao longo destas últimas duas décadas possa ser invertida e o estado/governo passe a ter o papel que constitucionalmente lhe cabe, de orientador, regulador e estratega, e daí advenham novos modelos organizativos mais consequentes com a afirmação do valor ímpar do desporto, um muito mais elevado nível de prática pelos diversos estratos etários, com primazia para os dos jovens em frequência dos diversos níveis de ensino, e o alcance de melhores resultados nas principais competições internacionais para o nível superior do alto rendimento.
Portugal precisa sem mais demoras de definir um rumo consequente para o fomento e melhoria do seu nível desportivo, aumentando as bases da sua prática regular, a sua organização, estratégia e governação, de modo a que no seu topo, isto é, no desporto de alta competição possa vir a ter correspondentemente uma melhor elite capacitada para dar ao país mais sucessos competitivos, fazendo com que o uso dos seus recursos escassos tenha muito maiores níveis de eficiência e eficácia."
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