quarta-feira, 12 de julho de 2017

No gastar é que está o ganho

"Milhões para cá, milhões para lá, num frenesim financeiro onde se misturam trocas e baldrocas, comissões, remissões e demissões.

O defeso sem defesa
1. Estive fora do nosso país durante alguns dias, mas exultei com o folguedo ínsito nos títulos da antecâmara da próxima época de futebol. Tempo de vésperas, onde o sonho ainda teima em sê-lo a esperança é um empréstimo de felicidade sem juros, sobretudo para perdedores da época terminada.
O defeso é, naturalmente, a matéria-prima a que se agarra a informação desportiva, agora que, no Verão, o ciclismo já não desperta a paixão de outrora.
Um defeso tão longo que quase só suscita uma explicação, que não necessariamente justificação. De intermediários, os únicos que recebem sem risco. De clubes que arriscam, pondo - em jargão futebolês - «toda a carne no assador», mesmo a que ainda não pagaram ao talho. De campeonatos glutões que, com vantagens incomparáveis e dirigentes da Arábias, de multimilionários-cometa russos, chineses e outros asiáticos tudo compram e, assim, cavam um enorme fosso num desporto onde o equilíbrio de condições sempre constituiu parte do seu fascínio e beleza.
E a FIFA e a UEFA o que dizem? Nada. Mais preocupados em castigar um atleta porque festeja exuberantemente a festa do golo, do que em restringir o tempo transaccional e apertar as regras negociais. Porquê mercado em Agosto, com os campeonatos e eliminatórias europeias já iniciados? E porquê outra enxurrada em Janeiro de cada ano, que só percebe para fazer movimentos, passes e automatismos de tanta coisa, menos de futebol?
E, depois, tudo é permitido no mar de negócios de transferências de jogadores. Compras e vendas, simples ou por atacado, com dinheiro à vista ou a pagar em prestações, com metal luminoso ou branqueado, com divisão percentual do passe (que raio de designação para o homem!) entre clubes, agentes, familiares, fundos e... o próprio, e com essa peregrina ideia de distinguir direitos económicos e direitos desportivos sobre um jogador.
Tudo entre um quase infinito caudal de jogadores sinalizados, acompanhados, oferecidos, apalavrados, pré-contratados, quase firmados, recusados, descartados, trocados. Tudo com o condimento excitante da utopia da caça grossa e o realismo sortido da caça miúda, enquanto se espanta a caça alheia, à espera do milagre de uma qualquer maquineta caça-niqueis. Tudo em ambiente de época alta da intermediação de substanciais prebendas comissionistas.
Milhões para cá, milhões para lá, num frenesim financeiro onde se misturam trocas e baldrocas, comissões, remissões e demissões, familiares dos intermediários dos familiares, dirigentes e dirigíveis, novos-ricos e velhos pobres, plutocracia e meritocracia.
Quantos milhões ficam algures entre o alfa e o ómega das compras e vendas? Quantas ilusões são oferecidas no mercado das expectativas? Quantos paraísos fiscais beneficiam do efeito multiplicador proporcionalmente inverso ao rigor, exactidão e transparência? Onde chegará a contabilidade criativa para se adaptar aos negócios sul-americanizados?
Tudo com o cretino beneplácito da UEFA e seus derivados, sempre a enfatizar os fair-play dos jogos e das finanças!
Por esta Europa fora, encaram-se com a maior das normalidades os milhões de transacções e de salários de craques, ao mesmo tempo que minguam os rendimentos das famílias e se critica asperamente o que pessoas com funções públicas ganham por ano e que não chega ao que alguns jogadores ganham em menos de uma semana.
Mesmo assim, entre os países importadores há uns mais iguais do que outros. A polémica Turquia virou paraíso de jogadores em pré-reforma. Na Espanha invariavelmente numa boa, apesar de milhões no desemprego. Na Inglaterra, se for preciso muda-se o câmbio da libra esterlina. Em França, é à grande e à russa! Da China, manda o decoro não falar. Só na Alemanha a racionalidade não se perdeu completamente... Sempre com uma praxis insondável: a de um mesmíssimo jogador valer não tanto por si mesmo, mas pelo clube vencedor. Quer dizer, se quem vende é, por exemplo, um clube grande espanhol, inglês, francês ou italiano o valor a facturar é muito superior ao que receberia pelo mesmo atleta um clube de outro país, quase numa relação directa entre ganhos e ranking da UEFA (bem, para alguma cisa servirá...).
Defeso em Portugal? Vou esperar mais um tempo para ver no que dão as tão badaladas transferências. E, já agora, no que dão as juras eternas de amor a um clube!
Em qualquer caso, seja o defeso mais onírico ou simplesmente mais modesto, prefiro sempre a qualidade concentrada à embriaguez da quantidade liofilizada.

Sorteio à defesa
2. «O sorteio das competições nacionais foi o melhor para este e pior para aquele». «O programa do computador está viciado, porque sempre a minha equipa é prejudicada ou a do rival é beneficiada». Eis duas frases que se ouvem, amiúde, depois de conhecido o calendário e os jogos.
Cá para mim, tanto se me dá. O meu Benfica tem de jogar com todos, dentro e fora, como todas as equipas. O resto é fantasia. Aliás, devo dizer que acho um disparate as chamadas condicionantes do sorteio, com excepção da que impõe que equipas da mesma cidade joguem em casa na mesma jornada. Afinal, qual é o problema do Benfica, Porto e Sporting se defrontarem na primeira ou última jornada, ou haver clássicos seguidos, ou terem de jogar em casa ou fora em cada volta? Além disso, trata-se de mais uma injusta consideração por outros clubes (por exemplo, Sp. Braga e Guimarães), assim contribuindo para a cristalização hierárquica do nosso futebol. Criticamos a Europa porque funciona por anéis (o dos fabulosos, o dos remediados e o dos indigentes) e, por aqui, queremos salvaguardar a mesma lógica?
Há até um aspecto do futebol inglês (aquele com que, ainda, mais temos a aprender em torno de regras e tradições) que acho interessante considerar num sorteio de um campeonato. Falo de os jogos da segunda volta não serem a cópia inversa dos da primeira volta. Ou seja, há dois sorteios para cada uma delas. Para mim tudo o que seja introduzir (bons) factores de imprevisibilidade desportiva só favorecem o futebol jogado, o único que verdadeiramente me interessa.

Contraluz
- Palavra:
Portugal. O primeiro ano de uma efeméride para sempre. A de campeão europeu.
- Número:
60. os contumazes milhões de cláusula de rescisão no SCP. Desde um qualquer imberbe iniciático até ao adiantado trintão Mathieu...
- Frase:
«Sempre fui feito de Sporting» (Fábio Coentrão). Uma frase equívoca, mas que talvez explique a inconstância verbal do rapaz.
- Árvore:
Acácia (com o seu Acácio).
- Pensamento:
«Antigamente no futebol ganhava-se jogando bonito. Depois veio a fase do perder jogando bonito. Em seguida, passámos a ganhar jogado feio. E hoje jogando feio e perdendo» (adaptação de uma frase de um adepto brasileiro)."

Bagão Félix, in A Bola

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