quarta-feira, 26 de abril de 2017

A promessa de Salazar

"A enorme Taça Império foi disputada por Benfica e Sporting no dia da inauguração do Estádio Nacional. Uma multidão de 60 mil pessoas juntou-se em redor do relvado.

António de Oliveira Salazar prometia e cumpria. Em 1932, quando subira ao poder, anunciara a construção de um grande parque desportivo. Em Julho desse ano, o novo Ministro das Obras Públicas e Comunicações, o engenheiro Duarte Pacheco, lança um programa gigantesco de obras públicas com o objectivo imediato de modernização urbanística e económica do país. As verbas do Fundo de Desemprego serão aplicadas nesse programa. A planificação daquele que viria a chamar-se, muito a propósito, Estádio Nacional, iniciou-se em 1939.
A sua concepção visava não apenas as manifestações desportivas, mas igualmente a criação de um espaço no qual tivessem lugar demonstrações públicas da política vigente, tal como sucedia na Alemanha de Hitler, por exemplo. Por isso, não admira que o Estádio de Honra, como começou por ser designado, fosse inspirado no Estádio Olímpico de Berlim e nessa concepção «ultra-neoclássica» que eram as manifestações estéticas monumentalistas e teatrais do III Reich.
Francisco Caldeira Cabral, Jorge Segurado, Konrad Wiesner, foram alguns dos arquitectos consulados. Mas é a Miguel Jacobetty Rosa que a paternidade do estádio é atribuída.
Cinco anos durante as obras. E, no dia 10 de Junho de 1944, «Dia da Raça», como então se designava, perante a presença do Presidente do Conselho, Óscar Carmona, e do Presidente do Conselho, Oliveira Salazar, milhares de jovens filiados na Mocidade Portuguesa ou na Federação Nacional da Alegria no Trabalho desfilam orgulhosos nos seus fatos de ginástica ou nas suas fardas de gala em frente às bancadas monumental estádio que se inaugurava.
Nunca tantos!!!
Nunca tinham sido tantos em redor de um campo de futebol.
60.000 pessoas vitoriavam Salazar que, pouco dado a essas coisas de desporto e muito menos de futebol, saiu ao intervalo, à la française, com o resultado ainda em zero-zero.
Duarte Pacheco, o antigo Ministro das Obras Públicas, o ideólogo do Estádio Nacional, o homem que pensara atirar com os três grandes clubes de Lisboa para fora da cidade, obrigando-os a construir os seus campos de jogos em Monsanto, não esteve presente. Tinha morrido no ano anterior, quando o seu Buick se despistara numa curva chamada a Cova do Lagarto:
O «Século» rejubila na sua primeira página: «A inauguração do Estádio Nacional foi um espectáculo esmagador de emoções». E continua, num estilo grandiloquente que tanto agradava ao regime: «60.000 pessoas delirantes de entusiasmo patriótico aclamaram em apaixonada grita os Chefes de Estado e do Governo e cantaram em coro o Hino Nacional».
António Lopes Ribeiro estava lá: filmaria tudo.
Depois dos desfiles, o jogo.
Em disputa estava a grandiosa Taça Império e frente a frente o campeão nacional, o Sporting, e o vencedor da Taça de Portugal, o Benfica.
Até ao intervalo, não houve golos. Azevedo, o célebre Azevedo, estava seguro como nunca. Espírito Santo e Julinho, Teixeira - o Gasogéneo - e Rogério, dito Pipi, nada podiam contra a simplicidade cientifica do futebol de Octávio Barrosa e Manuel Marques.
Depois, António Oliveira Salazar saiu do Estádio Nacional, e o jogo libertou-se. Adolfo Mourão foge à defesa encarnada e oferece o primeiro golo ao pletórico Peyroteo . Estão decorridos 16 minutos do segundo tempo. O Benfica responde em avalanche. É Espírito Santo quem empata, pouco depois de meia-hora. Até ao fim dos noventa minutos, os espectadores assistem, inquietos, aos golpes e contra-golpes dos dois opositores.
Mas há que recorrer ao prolongamento. E mal dois minutos estão decorridos quando Barrosa lança Peyroteo em direcção à baliza Martins. Nada a fazer. O Sporting ganha vantagem e não mais a perderá. Eliseu, lesionado, encosta-se à esquerda, a fazer figura de corpo presente, como era regra a época.
Convencidos da sua incapacidade, os jogadores do Benfica condenam-no ao abandono. Erro fatal. É sozinho que recebe uma bola vinda da sua defesa e é sozinho que caminha com ela para a baliza encarnada e para o 3-1.
Estamos apenas com 6 minutos deste prolongamento de loucos. Quatro minutos depois, Júlio, a quem os adeptos tratam carinhosamente por Julinho, reduz para 2-3.
É a vez de enorme Azevedo fazer valer a sua imensa categoria. A Taça Império está segura nas suas mãos. E é Adolfo Mourão que, no último minuto do prolongamento, ainda remata à barra de Martins como que a sublinhar a justiça de tão grande vitória."

Afonso de Melo, in O Benfica

1 comentário:

  1. «Eliseu, lesionado, encosta-se à esquerda, a fazer figura de corpo presente, como era regra a época.» Daqui por 70 anos os nossos netos darão outros significado a esta frase. =P

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