"O Estado não pode olhar para a corrupção desportiva como matéria cíclica.
"Em Maio de 2016, fomos surpreendidos com uma operação da Unidade de Combate à Corrupção da Polícia Judiciária que levou à detenção de jogadores de futebol, dirigentes e outros agentes desportivos pela prática de crimes relacionados com a manipulação de competições desportivas.
A Operação Jogo Duplo teve o mérito de despertar muitas consciências para a existência real de manipulações de competições desportivas, comportamento criminoso que afecta a verdade, a lealdade e a correcção da actividade desportiva.
O papel crescente que o desporto assume na sociedade portuguesa levou, desde os anos 90 do século passado, o legislador a reprimir os comportamentos e os agentes lesivos da verdade desportiva.
Na últimas décadas temos assistido a uma evolução da legislação existente sobre esta matéria, encontrando-se actualmente em discussão na Assembleia da República três projectos de lei de alteração à legislação em vigor, apresentados por três partidos diferentes e todos aprovados por unanimidade, no seguimento de uma proposta oportunamente formulada pela Federação Portuguesa de Futebol.
Pela minha qualidade actual de Deputado à Assembleia da República, mas também em virtude de ter ocupado a pasta de Secretário de Estado do Desporto e Juventude na última legislatura, acho importante dar nota da perspectiva política do tema.
A violação dos princípios ético-jurídicos do desporto exige um combate firme e uno por parte de todos mas, de forma incontornável, por parte dos agentes políticos com responsabilidade na matéria.
Na passada semana fui confrontado com declarações do actual Secretário de Estado da Juventude e do Desporto afirmando, a propósito da operação policial referida e do papel que deve ser desempenhado pelo Estado neste combate, que «o Governo não se imiscui nas matérias de uma determinada modalidade a quem o Estado atribuiu a gestão dessa própria modalidade», e que «é assim que acho que devemos estar, sobretudo quando estamos a falar de matérias que, sem qualquer hipocrisia, é preciso afirmá-lo, são mais ou menos cíclicas».
Ouvindo estas palavras, recordei o episódio bíblico onde Pôncio Pilatos, fugindo às suas responsabilidades, lavou as mãos...
O actual Governo acha que pode demitir-se das suas responsabilidades políticas e, pasme-se, assumir nada fazer!
Devia e pelos vistos não o fez:
A) Chamar as autoridades de investigação, não para indagar sobre os factos que à justiça compete, mas para aferir da dimensão do problema e como pode ajudar com os meios necessários para a eficácia deste combate;
B) Reunir com os responsáveis federativos para mobilizá-los à agilização da justiça desportiva para a punição exemplar, também a esse nível, dos infractores;
C) Promover uma campanha pública pedagógica e preventiva da defesa dos valores éticos e de repúdio sem reservas de qualquer tipo de corrupção das competições e dos resultados desportivos.
A verdade desportiva é uma questão de todos. Ninguém pode ficar alheio a esta questão, muito menos quem tem responsabilidades legalmente previstas neste âmbito.
Não pode, nem deve, ser assacada toda a responsabilidade pelo combate e este fenómeno às federações desportivas que em muitos casos, aliás, têm feito um trabalho muito meritório a este respeito e, porventura até, acima do que são as suas obrigações.
O Estado pode, e deve, imiscuir-se em questões que, além de serem da sua responsabilidade, assumem interesse público. O Estado não pode, nem deve, olhar para a corrupção desportiva como uma matéria cíclica, a cargo em exclusivo das federações desportivas e sem repercussões de outra natureza.
Não lavamos daí as nossas mãos."
Emídio Guerreiro, in A Bola
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