terça-feira, 30 de agosto de 2016

Lembrando o homem de ferro forjado

"No dia 20 de Maio de 1973, frente à CUF, no Estádio da Luz, Augusto Matine despedia-se sem saber da equipa do Benfica. Eusébio marcava dois golos que lhe dariam a sua segunda Bota de Ouro. Os encarnados eram campeões sem derrotas.

Nelson Rodrigues, o grande mestre brasileiro da crónica chamar-lhe-ia «Príncipe Etíope de Rancho». Era assim que ele definia, dentro do campo, aqueles negros grandes imperiais, rochosos.
Matine, era um deles: Augusto Matine.
Jogou cinco épocas no Benfica. No dia 20 de Maio de 1973, estava no seu posto: no Estádio da Luz, defrontando a CUF.
Cumpria-se a 28.º Jornada. O Benfica somava 27 vitórias e um empate. Nada a dizer de tamanha superioridade. O Belenenses vinha e segundo lugar,a dezanove pontos.
Superioridades destas não se explicam. Recordam-se e nada mais.
Matine jogava no meio-campo, como outro granítico Toni. E dois homens de arte nos pés: Vítor Martins e Jaime Graça. Não tarda e falarei aqui de Vítor Martins: poucos como ele o merecem tanto.
Na frente,havia Nené e Eusébio. Eusébio disputava com Muller, do Bayern de Munique, a sua segunda Bota de Ouro.
Viria a ganhá-la. Nesse jogo, frente à CUF, marcou dois golos: vitória encarnada por 2-0.
Augusto Matine era tranquilo, calmo. Uma força em vaga, como no mar. Arrastava à sua frente os adversários, cansado-os, tirando-lhes a bola, entregando-a aos companheiros. Dir-se-ia silencioso, por vezes. Impressionava a sua figura, luzidia de suor, erguendo-se em altura por entre todos os outros.
Nesse Benfica do dia 20 de Maio de 1973, havia outro «Príncipe Etíope de Rancho»: Messias Júlio Timula, Vinham ambos de Moçambique: Lourenço Marques dizia-se então.
Moçambique foi sempre um dos grandes alfobres do futebol benfiquista.
Membro de uma equipa invencível
Matine não o sabia; naturalmente, mas fazia frente à CUF, nessa tarde de Maio, com o campeonato pintado de vermelho em flor, o seu último jogo oficial pelo Benfica. Pela segunda vez sagrava-se campeão nacional, fazia parte de uma equipa invencível que nunca mais nenhuma conseguiu imitar em Portugal. Na época que se seguiu, mandou no meio-campo do Vitória de Setúbal, clube ao qual já tinha sido emprestado.
Recordo-me de Matine. Nesse tempo e no de agora seleccionador que é de Moçambique, alvo de homenagens mais do justas no país que o viu nascer.
Tinha uma passada larga e uma presença impressionante. Um rochedo inquebrável de força e vontade. Era um tempo em que jogar no Benfica requeria uma exigência única. Campeões sem derrotas, plantéis de imensa qualidade, jogadores para todos os palmos de terreno. E Eusébio, também de Moçambique, Mafalala, melhor goleador da Europa aos 31 anos, quase a partir para a sua aventura definitiva nos Estados Unidos da América.
A despeito de toda a sua qualidade, não era a CUF que podia fazer frente ao Benfica. Nem sequer o Sporting a vinte pontos de distância, o o FC Porto a vinte e um.
Era campeonato de um Benfica só.
Nessa tarde de Maio, estiveram na Luz José Henrique e Humberto Coelho, Malta da Silva e Adolfo, jogando nas costas de Matine e Toni. Havia uma mecânica de poder físico e de arte ao mesmo tempo. Matine dava-se bem com essa regra imposta por Jimmy Hagan, o inglês que dizia: «Vão lá para dentro e joguem».
Jogavam como sempre, como nunca.
O Benfica conquistava o campeonato apenas com dois empates, e Matine dizia adeus. Sem mágoas. Cumprira o seu dever, fora ele próprio. Faltavam duas jornadas para o final, não voltaria a estar em campo com a camisola da águia ao peito. Mas a imagem ficou: homem de ferro forjado, príncipe negro, etíope de rancho, diria Nelson Rodrigues, o rei de todas as imagens.
Campeão único, como foram todos os Benfiquistas nessa época sem igual. Augusto Matine dizia adeus sem o saber. São sempre as despedidas que mais marcam: as que se fazem em silêncio.

Erguia-se no meio-campo em todo o seu tamanho. Era grande e silencioso: como uma rocha."


Afonso de Melo, in O Benfica

1 comentário:


  1. Há prosas que soam a poesia, com o perfume de papoilas saltitantes! Parabéns, e um abraço.

    Diamantino Cunha

    Obs: Se esta memória não me trai, quase jurava que vi ainda há bem pouco tempo o Matine na nossa Benfica Tv!

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