sábado, 30 de julho de 2016

O guardador de memórias

"Joaquim Macarrão dedicou uma vida inteira ao Benfica. O seu contributo para a preservação e comunicação da nossa memória orgulha-nos a todos.

Possuía uma voz encorpada, de fazer inveja aos locutores de rádio. Fogoso na têmpera, sobressaía-lhe com frequência a rispidez na defesa do clube e das suas causas, uma qualidade tão própria do desportista aguerrido que orgulhosamente também foi. Durante mais de seis décadas personificou como poucos a dedicação a um intuito colectivo - o da protecção da nossa história -, antes da reforma e a saúde o terem levado, já bem para lá dos 80. Joaquim Macarrão foi, sem sombra de dúvida, o maior e mais respeitoso guardador de memórias que conheci. Homem de baixa estatura, mas demasiado grande para ser esquecido, sobretudo num tempo em que a bandeira do património cultural é no Benfica mais visível que nunca.
Joaquim habitava com uma alma única o seu posto de trabalho no velho Estádio da Luz, rodeado de memórias de todo o feitio, numa dependência do museu para lá da porta dos fundos, onde só entravam os da casa, incluindo os xilófagos e os ratos. Nesse espaço restrito, consultei várias vezes o arquivo de periódicos, o que me permitiu receber de Joaquim, e de outros ases que o visitavam, inolvidáveis lições de história. Julinho, Rosário e Francisco Calado eram algumas das aparições de carne e osso.
Joquim tinha a secretária marejada de escritos. Pedaços soltos de papel onde anotava tudo o que mexia com os factos do seu tempo. Lembrando um arqueólogo no seu trabalho minucioso, era comum irmos surpreendê-lo a vasculhar os calhamaços da Stadium, do semanário O Benfica ou de A Bola, entre outros.
Mergulhado neles, varria memórias de um ponta à outra, sem nunca se cansar. Fui descobri-lo, certo dia, na companhia de Julinho, a rever num jornal de 1943 o mirabolante 12-2 ao FC Porto. 'Do outro mundo!', declarou com um dedo indicador a martelar a notícia e o outro estendido na direcção do antigo artilheiro. 'Só este senhor meteu quatro!'
Fiquei ali a contemplá-lo longamente enquanto desfiava o resto da história na presença do herói. As palavras e os gestos. Os sorrisos e as rugas. Tudo nele semeava respeito e admiração. Porque o Benfica que havia nele era uma árvore nodosa e grande.

Oito épocas de encarnado
Discreto mas de obra feita
Aos 15 anos, Joaquim Macarrão representava já a equipa principal do Sport Benfica e Lagos, filial benfiquista na terra onde nasceu, a 5/5/1920.
Recomendado ao clube mãe, viria em 1937 para Lisboa, acumulando desde logo as funções de futebolista e funcionário.
Mas a carreira desportista viria a encerrá-la algo prematuramente, na época de 1944/45. Um plantel recheado de bons jogadores, aliado a insistentes problemas físicos - uma clavícula, uma costela e um joelho na lista de fracturas -, impediram-no de singrar, como gostaria, na equipa de honra.
O campeonato de 1938/39, que contou com a sua participação fugaz no primeiro team, ficou-lhe especialmente 'atravessado'.  Escreveria, a propósito: 'Não fui campeão nacional por nos terem roubado o título no Porto. Seria o 4.º campeonato seguido do nosso clube.' Nessa mesma época, integrou o 11 que bateu nos quartos de final o Nacional da Madeira, por 4-0, naquela que foi a primeira edição da Taça de Portugal.
Não obstante um contributo discreto, deixou expresso nos seus escritos o orgulho pela obra feita: 'Ajudei a vencer sete campeonatos entre as diferentes categorias e obtive 86 golos para o nosso glorioso clube'.
Despediu-se onde começou, na sua terra natal, frente ao Sport Lisboa e Lagos, a 26/2/1945.

Dedicação sem par
O expediente do serviço de sócios, os currículos dos atletas, a organização desportiva, a venda de bilhetes, os relatórios anuais do clube, as assembleias gerais, as eleições, as alterações de estatutos... Tudo isto num homem só, entre 1937 e 2003.
Foi, todavia, no trabalho com a memória que Joaquim deixou marca especial. 'Há muito que fazer a respeito de toda a problemática dos troféus, taças e outros objectos que estão em nosso poder', escreveria, em 2000, em carta dirigida ao clube.
'O meu maior desejo é ver a inauguração e como irá o novo museu funcionar'. Não veria. Morreu a 25/1/2008.
Acreditamos, porém, que lhe fizemos jus.
No Sport Lisboa e Saudade deixou igualmente obra feita. Em 1973, nas comemorações do 30.º aniversário desta secção, é-lhe reconhecida a 'assiduidade e disciplina' com a atribuição de uma estatueta. O jornal do clube classificava-o assim: 'Dos grandes animadores, dos grandes obreiros e dos grandes esforçados da obra realizada'.

1911, o primeiro 'conserto'
Entre a panóplia de objectos e documentação à guarda de Macarrão, encontrava-se os livros de facturas. Entre elas a referente ao primeiro acto de restauro de que há registo.

Aconteceu em 1920
O ano de nascimento de Joaquim Macarrão
- SLB dominante
O SLB vence pela 8.ª vez o Campeonato de Lisboa. Conquista também a sua primeira Taça de Honra.
- Adeus, Cândido
Cândido de Oliveira faz o último jogo oficial pelo SLB, para se tornar fundador e futebolista do Casa Pia AC.
Referência
Vítor Gonçalves assume o cargo de capitão da equipa de honra, que manteria durante grande parte dos anos 20. Uma referência de sempre."

Luís Lapão, in Mística

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