"Hendrik Johannes Cruyff! Assim mesmo, com ponto de exclamação. Em Fevereiro de 1969, num relvado coberto de neve, limitou-se a ver jogar um grande Benfica. Vingar-se-ia na segunda mão, em Lisboa...
Poucos como ele exibiram a elegância inconfundível de um astro em movimento. No seu rastro de cometa imparável havia arte e talento misturados com uma velocidade sem sentido. Ah! E os seus pés em concha! Recolhendo a bola como mãos, escondendo-a do adversário, trazendo-a de volta do seu esconderijo por detrás do calcanhar para galgar com ela a distância que separa a realidade da lenda.
No dia 12 de Fevereiro de 1969, Johan Cruyff foi, no entanto, mais espectador do que actor.
Um Benfica que todos achavam moribundo, o velho Benfica das cinco finais da Taça dos Campeões Europeus, subiu ao relvado do Estádio Olímpico de Amesterdão para uma exibição de gala, talvez a última dessa extraordinária geração de jogadores.
Relvado? Que digo eu? Branca e leve, branca e fria, a neve pôs tudo da cor do linho, como escreveria Augusto Gil.
Havia um barulho ensurdecedor em volta do campo, os espectadores holandeses eram partidários da matracas de madeira que fazia um ruído inusitado, mas os jogadores 'encarnados' estiveram-se nas tintas para isso, tal como estariam para tulipas, diques e moinhos desse país baixo que cresce sob o mar.
Estavam cinco graus negativos em Amesterdão. O Benfica iria arrefecer ainda mais a temperatura.
Pobre Ajax, perdido em campo sem saber o que fazer, na busca incessante de uma bola que teimava em não largar os pés dos adversários de Lisboa.
Rinus Michels, o «General», mostrava-se enfadado no final do encontro: «Fui completamente surpreendido por este Benfica. Jogou infinitamente melhor do que nas partidas que observei em Portugal. E tem enorme experiência nestes confrontos internacionais».
O primeiro golo foi de «penalty»: uma falta bruta sobre Simões. Estranhamente, Eusébio não quis marcar: «Confesso que tive medo de falhar e fui à linha lateral pedir ao senhor Otto para ser outro a marcar».
Foi Jacinto: «O Eusébio disse-me - vai lá tu. Eu nunca tinha marcado um 'penalty' na neve, mas não me assustei. Fui calmo e fiz o golo».
A partir daí, houve Benfica e não houve Ajax. Estava decorrida meia-hora de jogo e Eusébio chuta de muito longe para uma defesa apertada do guarda-redes holandês; no minuto seguinte, Torres cabeceia à barra.
Era o Benfica das grandes noites! «Gatos vermelhos em campo de neve», escreveu Mário Zambujal citando Erico Veríssimo
Torres corta um passe arriscado da defesa local e parte isolado para a baliza: 2-0. Já ninguém acredita que a vitória fuja ao Benfica no momento em que as equipas descem aos balneários para o retemperador intervalo.
Por onde andou Cruyff?
É Danielsen, o dinamarquês, que substituíra Swart, a devolver a esperança aos holandeses com um pontapé formidável.
Cabe agora a José Henrique, Humberto Coelho, Toni e Coluna serem as traves mestras de uma nau que enfrenta uma tempestade de Futebol ágil e físico.
São quinze minutos de aperto. Vagas alterosas pedem atenções redobradas. E um acréscimo de entusiasmo daqueles que Eusébio tão bem sabe dar: um remate de potência tremenda obriga Bals a um desvio aflitivo para canto. É o próprio Eusébio que marca o canto. Um lance tantas vezes repetido com êxito pelo Benfica de então: bola para a cabeça de Torres e daí para o pontapé exemplar de José Augusto.
O golpe fatal.
Danielsen foi claro: «Não me parece que a defesa do Benfica seja muito forte. Podíamos e devíamos ter marcado mais golos. Enfim, há que dizer que a vitória do Benfica foi justíssima. Pode ser ganhemos em Lisboa».
Ganharam, como se recordam. Pelo mesmo resultado, obrigando a um jogo de desempate em Paris.
Mas fiquemo-nos, por hoje, nessa noite de Amesterdão.
Eusébio, a contas com mais uma lesão no seu joelho massacrado, mostrou a categoria de sempre. Um esteio de classe numa equipa fundamentalmente operária: «O meu problema foi que gelei por completo» - queixava-se Raul - «Fiquei paralisado. Não sei o que aconteceria se o jogo durasse mais tempo».
José Henrique viu o tronco enfaixado no final do encontro: «Os avançados do Ajax são muito duros e provocaram as cargas. Ainda por cima, junto à baliza, a neve estava dura como pedra. De cada vez que tinha de me lançar para o chão era um sofrimento».
E Cruyff? Por onde andou Cruyff?. perguntarão vocês, leitores estimados. Perdido no meio-campo resistente do Benfica. Investindo aqui e ali em correrias solitárias e destinadas ao fracasso. Cruyff não foi ele mesmo. Viria a sê-lo, não tardaria muito, na segunda mão da eliminatória, no Estádio da Luz.
Cruyff: Hendrik Johannes Cruyff! Com ponto de exclamação. Corre hoje pela planície da eterna saudade..."
Afonso de Melo, in O Benfica
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!