terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

As perfeitas noites de David Oistrach

"O maior virtuoso do violino do seu tempo esteve em Lisboa, encheu a sala do Império, sai sob uma chuva de aplausos e na noite seguinte estava no Estádio da Luz para ver um dos seus ídolos jogar: Eusébio!

Muita gente não sabe quem foi David Oistrach. Pois bem: muita gente também não sabe o que perde. David Fyodorovich Oistrach - um dos maiores virtuosos da história do violino. Nasceu em Odessa, junto ao Mar Negro, em Setembro de 1908. Fantástica Odessa! Quem ainda lá não foi também não sabe o que perde. Lugar de exílio do poeta Pushkin. Cenário de Eisenstein. A história russa é fascinante, com toda a sua panóplia de enormes grandezas e gigantescas misérias.
Mas eu falava de David Oistrach, e já vão perceber porquê. Filho de judeus, David Kolker e Isabella Beyle, já tocava violino com três anos de idade. Em seguida veio, naturalmente, o conservatório já no tempo de uma União Soviética que valorizava imenso a música clássica.
Depois Moscovo, a amizade com o compositor Shostakovitch, as suas inesquecíveis interpretações de Bach, Tchaikovski, Mozart e «tutti quanti».
David Oistrach viajou pelo Mundo à boleia do seu raro talento. As digressões multiplicaram-se após o final da II Grande Guerra: Helsínquia para começar; Florença, França, Reino Unido, até os Estados Unidos.
No dia 7 de Maio de 1968, os jornais portugueses traziam um anúncio em letras garrafais: «DAVID OISTRACH - O MAIOR VIOLINISTA DA ACTUALIDADE. Nascido em Odessa, na URSS. Professor do Conservatório do Moscovo. Amigo e criador de obras de célebres compositores soviéticos como Prokofiev, Katch Hakurian, Kabacewski e tantos outros. Acompanhado ao piano por Frieda-Bauer. Programa com obras de Bach, Prokofiev, beethoven e Tartini. Amanhã às 18h30 no Império. Representante artístico: Sequeira Costa».
Para uma das meias-finais da Taça dos Campeões, anunciava-se outro grande espectáculo: Benfica-Juventus no Estádio da Luz. A RTP confirmava uma oferta muito vantajosa pela transmissão directa do jogo. O Benfica só admitia dar aval ao negócio se o estádio esgotasse a lotação.
O Benfica arrasou a Juventus
David Oistrach foi ele próprio: enorme.
Da noite do Império vinham os elogios: «A arte de David Oistrach dispensa adjectivos. Eles ficariam quase esvaziados de sentido pois teriam de ser empregados - a bem dizer: constantemente - no grau superlativo. É o que David Oistrach atinge as regiões mais elevadas da interpretação nos estilos e nas obras mais diversas». Palavras do crítico Nuno Barreiros.
Saiu do Império sob uma chuva de aplausos.
Instado a fazer uma palestra no dia seguinte, David Oistrach abespinhou-se:
- Nem pensar nisso! Nada! Não troco o jogo do Benfica por coisa nenhuma! Nunca vi o Eusébio ao vivo... Só na televisão. Não vou perder esta oportunidade única.
David Oistrach: as mãos que dominavam o Stadivarius não perderam o ensejo de aplaudir Eusébio.
Dia 9 de Maio, David Oistrach esteve na Luz. Três dias depois, já tinha abandonado Lisboa. Mas Eusébio continuava a produzir obras de arte, mesmo sem o seu aplauso.
«Benfica sem Eusébio, não vale muito», dizia Heriberto Herrera, treinador italiano.
Mas o Benfica tinha Eusébio.
Em Lisboa, vitória por 2-0, um golo de Torres e outro de Eusébio.
Em Turim, vitória por 1-0, golo de Eusébio. E que golo!!!!
Claro como a mais pura água das fontes do Montesinho.
Mário Zambujal contava no seu peculiar estilo: «Algumas senhoras da alta roda, alfacinhas, amantes da música tinham-lhe preparado a noite, uma recepção do palacete de uma delas. Esperavam ansiosamente honrar tão grande músico e ouvir, uma vez mais ainda, em serão privado, o encanto do seu violino mágico. Ninguém contava porém com a vontade de Oistrach. Quando lhe anunciaram o que estava projectado, o violinista agradeceu polidamente mas mostrou interesse em manter a sua vontade de ver o Benfica-Juventus e Eusébio, «o virtuoso do pontapé da bola». E não houve maneira de o demover de tal. Oistrach esteve na Luz, vibrou com o jogo e com Eusébio, e mostrou o desejo de ser apresentado ao melhor marcador do último Campeonato do Mundo. E não teve receio de lhe caírem na lama os seus pregaminhos de génio da música pelo facto de admirar um génio do futebol».
David Oistrach teve as suas noites perfeitas. Eusébio foi quase perfeito. Mas perfeito mesmo seria na segunda mão, em Turim.
Fica para outro dia..."

Afonso de Melo, in O Benfica

1 comentário:

  1. Que alguém com a grandeza de Oistrach tenha manifestado um desejo tão premente de visitar a Luz, só atesta, por sua vez, a nossa própria grandeza. Grande artigo de Afonso de Melo.

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