segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Outros contornos (ou voos) da águia

"O meu benfiquismo tem-me oferecido muito mais que a fantástica emoção de ver a bola a correr e os nossos, as 'papoilas saltitantes' que Piçarra imortalizou, marcarem com arte e génio os golos da nossa felicidade.
Há um outro Benfica. Ou melhor: o SLB também é isto, e por isso grande. Uma realidade sociológica que se entrelaça com a nação. Deixo-vos algumas histórias que até hoje guardei.
Raramente me provocam por um dia ter revelado a minha paixão, quando tantos artistas, que receiam não agradar a todos, o evitam. Não vejo o futebol como uma trincheira, mas apenas como uma escolha que nos acompanha pela vida fora. Os meus diálogos são cordatos, mas sei defender a minha dama. Há uns tempos, na Facebook, alguém pretendia enlamear a história do 'glorioso' invocando que o nosso clube fora levado ao colo pelo Estado Novo. 'Se não fosse o Salazar, outro galo cantaria!', li.
A ignorância revela mais prosápia que justeza. Expliquei ao incauto que foi o inverso que amenizou o isolamento que nos tolhia nesses tempos sombrios. Porque uma 'pantera negra'. Eusébio, nos levou ao cume do futebol mundial. Invoquei a verdade histórica, que o regime se encostara ao Benfica e não o inverso: noutra disciplina, Amália vivenciou o mesmo aproveitamento. Duas Taças dos Clubes Campeões Europeus valeram muito para essas gerações aprisionadas: a águia voava e Portugal revia-se na glória do SLB.
Na década de 90, os UHF estiveram uma semana em Luanda para dois concertos. Quando passeávamos por um jardim, vi um magote debruçado sobre um jovem segurava um jornal desportivo português.
Mais perto, foquei com admiração o cacho de rapazes e homens que pendia sobre as páginas de A Bola, a leitura da crónica do último jogo do Benfica: um par de mãos segurava o lençol da malta. Perante a minha estupefacção, um dos elementos que acompanhava a comitiva UHF disse com naturalidade: 'É sempre assim com A Bola, por causa do Benfica'.
Anos mais tarde sorri com o desabafo assertivo do escritor António Lobo Antunes sobre os tempos da guerra em África. Claro que éramos todos do Benfica, dizia numa entrevista. Dava muito jeito às tropas os jogos ao domingo. Nessa hora e meia, acrescentava, nós e eles, os dois lados da guerra, ficávamos a ouvir a correria do Artur Agostinho a relatar o jogo e os tiros calavam-se para ouvir o que ele dizia, à espera do golo e da gritaria nos dois lados da trincheira. O Benfica além de todas as fronteiras.
Quando, na temporada de 2004/2005, nos sagrámos campeões, fui até à cidade de Baar, na Suíça, sem os UHF, para celebrar mais uma conquista. Nessa noite perdi a conta às vezes que cantei o Sou Benfica, mas recordo que acabei a actuação com metade da sala no palco a berrar 'Sou, soou Benfiiicaaa', trajados a rigor, camisolas, bandeiras e cachecóis, como a se a Luz coubesse ali. Os copos cheios subiam ao alto e as lágrimas corriam sem disfarce, lágrimas de alegria naquela ponte que o Benfica mantém com este país de saudade e saudades. A nossa alma cheia. No dia seguinte aterrei na Portela e corri para outro check in rumo à Madeira, onde estava programada mais uma festa encarnada: os UHF aguardavam-me já na sala de embarque. Era domingo.
A meio do voo, somos informados pelo comandante de que o Benfica perdera a Taça de Portugal para o Vitória de Setúbal. Encafuado no assento, meditei sobre o clima que nos iria esperar no Caniçal, onde um grupo de benfiquistas queria celebrar a conquista de mais um título. Fomos recebidos em ambiente morno, mas a organização mantinha o programa. Passámos pelo palco e testámos a aparelhagem sonora: esperavam-se umas 300 pessoas, apesar do desaire da tarde. A noite descia sobre o oceano, o clima estava ameno, confortável; deslocámo-nos a pé até ao restaurante, no centro do Machico. Ao longo do jantar reparei que a mesa ia crescendo com a chegada de notáveis, adeptos locais. As conversas subiam de tom, trocavam-se explicações para a perda da taça.
Antes do café, um dos organizadores chegou à mesa e disse-me, olhos nos olhos: 'Vamos ter de vos levar de carrinha, isto está tudo bloqueado, não sei de onde veio tanta gente. A pé, nunca mais lá chegamos'. 'E a potência da aparelhagem vai chegar?'. 'Tem de chegar, António, tem de chegar, não estávamos à espera de tanta gente: está tudo louco. Isto era uma festa para a malta do Caniçal, Machico e pouco mais'
(Nas cercanias da serra do Santo, ali perto, o grupo GNR, do meu querido Rui Reninho (portista que muito respeito), ficara quase sem público por causa da debandada que descera até à praia do Caniçal, disseram-nos no final da noite. O poder do SLB)
Nessa noite, além da vaga humana de vários milhares de adeptos, vi as sereias que sulcam o Atlântico dançarem ao sou do Sou Benfica."

António Manuel Ribeiro, in Mística

O "Ruço"

"Artur Correia marcou uma era ao serviço dos clubes que representou e da Selecção.

No Portugal dos anos 70, a única criatura de cabelos louros que ombreava com ele era a Tonicha. Apesar do pelo e dos olhos azuis muito pouco lusíadas, o 'Ruço' era um exemplo de raça. Vê-lo actuar, ora no Benfica, ora na Selecção, fazia-nos sentir mais benfiquistas, mais portugueses. Porque o 'Ruço' era o herói que morria em campo. Solidário. Tenaz. Quer a subir, iniciando jogadas que acabavam da melhor maneira nos pés de Eusébio, Artur Jorge, Jordão ou Nené, quer a descer e a ferrar os dentes no adversário.
Em 1977/1978, após seis épocas de encarnado e uma mão-cheia de títulos, foi para o Sporting. Custou vê-lo ir, de tão nosso que ele era. Mas interessa lembrar a seguinte verdade: ao intervalo dos jogos da sua nova equipa, a única coisa que lhe interessava era saber o resultado do 'Glorioso', de que se tornara sócio com apenas dois anos.
Internacional 35 vezes - 25 delas como jogador do Benfica -, deixou para a história do futebol português um golo épico à Noruega, em jogo de apuramento para o Europeu realizado no Jamor a 1 de Novembro de 1979.
No dia seguinte, correu a notícia do avistamento de um OVNI em forma de charuto na Madeira. Mas de nada se falou com tanto interesse como do golo do 'Ruço', arrancado quase do meio campo. Ele, sim, um verdadeiro charuto do outro mundo.
A 24 de Setembro de 1980 voltar-se-ia emotivamente a falar dele. Mas, desta feita, com tristeza. O herói do Jamor acabava de ser dado como perdido para o futebol.
Quando a TV noticiou o drama, antes de mais um episódio da telenovela brasileira Dona Xepa, lembro-me de, na verdura dos meus 12 anos, ter desejado que fosse 1 de Abril. Não era. E assim aprendi que só à traição se pode abater um lutador que avança e resiste quando todos os outros já caíram por terra. Como um tesouro, guardei para sempre a imagem do 'Ruço' a carcomer o relvado da Luz e a alcatifa do meu quarto, nos campeonatos de caricas.

- A primeira vez
Vindo do vizinho CF Benfica - o popular Fofó -, Artur vestiu pela primeira vez a camisola do SLB a 10/12/1967, num jogo do Distrital de Juniores realizado na Amadora frente ao Estrela. Sagra-se-ia, seis meses mais tarde campeão nacional da categoria.

- Aventura em Coimbra
As qualidades evidenciadas e a vontade de ser médico levá-lo-iam na temporada de 1968/69 até Coimbra. Reconhecidos os méritos, regressou ao Benfica durante o verão de 1971 e agarrou de pronto a titularidade.
- Começo em grande
Fez a 31/7/1971 o seu primeiro jogo, frente aos ingleses do Arsenal num encontro caseiro de carácter particular. No mês seguinte, conquistou em Cádis, diante do Peñarol, o prestigiado Ramón de Carranza."

Luís Lapão, in Mística

PS: Numa conversa em Marselha, na véspera da famosa meia-final da Taça dos Campeões Europeus, perguntava-se ao Ruço a razão da ida para o Sporting... os companheiros indagavam: 'eles pagavam mais?!!!', respondia o Ruço: 'pois, o problema era eles pagarem... acabei por perder dinheiro com a brincadeira...!!!'.
Uma das histórias mais engraçadas do Ruço (e são muitas...), é o dia em que assinou pelo Benfica, ainda Júnior. Estava a treinar no Fofó, quando alguém lhe disse para ir à Sede do SL Benfica, na Rua Jardim do Regedor assinar o contrato... saiu a correr do treino, e nem se lembrou de apanhar boleia ou um Táxi, foi de Benfica até aos Restauradores a correr... tanta era a felicidade!!!!

Milhões a mais

"Aos 400 milhões do Benfica, o FC Porto respondeu com 457 milhões. São, no essencial, contratos de direitos televisivos por 10 anos, aos quais se juntam alguns acessórios - exclusividade dos canais de clube, publicidade estática e, no caso dos dragões, o 'naming' da camisola - que só podem ser vistos como tal, acessórios. Porque o que está em causa são, de facto, os direitos de transmissão de jogos em directo. 
Quando olhamos para os números dos clubes espanhóis ou ingleses, coramos de vergonha. O último classificado da Premier League recebe actualmente por ano mais do dobro que Benfica e FC Porto irão receber nos milionários contratos que agora assinaram. Em Espanha, os valores pagos a águias e dragões são equivalentes aos recebidos pelas equipas do fundo da tabela. Mas será essa a comparação que devemos fazer?
O mercado televisivo português é minúsculo quando comparado com o inglês ou o espanhol. E, pior, a Liga NOS é anónima para os amantes de futebol para lá de Badajoz, pelo que os jogos do campeonato português interessam a pouco mais pessoas do que aos portugueses. Por isso, a comparação que deve ser feita é com os países com uma dimensão semelhante à de Portugal e com ligas de um nível idêntico.
Na Holanda, que tem quase 17 milhões de habitantes e muito mais dinheiro do que Portugal, os 18 clubes da Eredivisie recebem cerca de 83 milhões de euros por ano - Benfica e FC Porto sozinhos terão mais do que isso; na Bélgica, que tem 11 milhões de habitantes, o valor global é de 53 milhões; na Grécia, que tem sensivelmente a mesma população, o número é de 44 milhões.
Estes dados indiciam, no mínimo, que NOS e PT estão a valorizar o futebol português muito acima do que é a sua realidade, até porque será difícil convencer os adeptos a pagarem mais do que já pagam para ver a bola. Estamos a falar de apenas 17 jogos por temporada, a maioria dos quais sem grande história ou emoção, e que até podem ser menos se a Liga voltar a reduzir o número de equipas no primeiro escalão. Por isso, Benfica e FC Porto fizeram bem em aproveitar esta 'loucura' do mercado. Será que o Sporting vai a tempo de o conseguir?"


PS: Concordo na generalidade com esta crónica, também acho que o mercado português não vale tanto, a minha principal 'divergência' está na forma como se quer dividir à força o mercado a 3, quando só o Benfica vale no mínimo 55% do mercado!!!
Recordo o que se passou na Escócia, com a empresa que 'geria' os contratos televisivos a ir à falência...