"O meu benfiquismo tem-me oferecido muito mais que a fantástica emoção de ver a bola a correr e os nossos, as 'papoilas saltitantes' que Piçarra imortalizou, marcarem com arte e génio os golos da nossa felicidade.
Há um outro Benfica. Ou melhor: o SLB também é isto, e por isso grande. Uma realidade sociológica que se entrelaça com a nação. Deixo-vos algumas histórias que até hoje guardei.
Raramente me provocam por um dia ter revelado a minha paixão, quando tantos artistas, que receiam não agradar a todos, o evitam. Não vejo o futebol como uma trincheira, mas apenas como uma escolha que nos acompanha pela vida fora. Os meus diálogos são cordatos, mas sei defender a minha dama. Há uns tempos, na Facebook, alguém pretendia enlamear a história do 'glorioso' invocando que o nosso clube fora levado ao colo pelo Estado Novo. 'Se não fosse o Salazar, outro galo cantaria!', li.
A ignorância revela mais prosápia que justeza. Expliquei ao incauto que foi o inverso que amenizou o isolamento que nos tolhia nesses tempos sombrios. Porque uma 'pantera negra'. Eusébio, nos levou ao cume do futebol mundial. Invoquei a verdade histórica, que o regime se encostara ao Benfica e não o inverso: noutra disciplina, Amália vivenciou o mesmo aproveitamento. Duas Taças dos Clubes Campeões Europeus valeram muito para essas gerações aprisionadas: a águia voava e Portugal revia-se na glória do SLB.
Na década de 90, os UHF estiveram uma semana em Luanda para dois concertos. Quando passeávamos por um jardim, vi um magote debruçado sobre um jovem segurava um jornal desportivo português.
Mais perto, foquei com admiração o cacho de rapazes e homens que pendia sobre as páginas de A Bola, a leitura da crónica do último jogo do Benfica: um par de mãos segurava o lençol da malta. Perante a minha estupefacção, um dos elementos que acompanhava a comitiva UHF disse com naturalidade: 'É sempre assim com A Bola, por causa do Benfica'.
Anos mais tarde sorri com o desabafo assertivo do escritor António Lobo Antunes sobre os tempos da guerra em África. Claro que éramos todos do Benfica, dizia numa entrevista. Dava muito jeito às tropas os jogos ao domingo. Nessa hora e meia, acrescentava, nós e eles, os dois lados da guerra, ficávamos a ouvir a correria do Artur Agostinho a relatar o jogo e os tiros calavam-se para ouvir o que ele dizia, à espera do golo e da gritaria nos dois lados da trincheira. O Benfica além de todas as fronteiras.
Quando, na temporada de 2004/2005, nos sagrámos campeões, fui até à cidade de Baar, na Suíça, sem os UHF, para celebrar mais uma conquista. Nessa noite perdi a conta às vezes que cantei o Sou Benfica, mas recordo que acabei a actuação com metade da sala no palco a berrar 'Sou, soou Benfiiicaaa', trajados a rigor, camisolas, bandeiras e cachecóis, como a se a Luz coubesse ali. Os copos cheios subiam ao alto e as lágrimas corriam sem disfarce, lágrimas de alegria naquela ponte que o Benfica mantém com este país de saudade e saudades. A nossa alma cheia. No dia seguinte aterrei na Portela e corri para outro check in rumo à Madeira, onde estava programada mais uma festa encarnada: os UHF aguardavam-me já na sala de embarque. Era domingo.
A meio do voo, somos informados pelo comandante de que o Benfica perdera a Taça de Portugal para o Vitória de Setúbal. Encafuado no assento, meditei sobre o clima que nos iria esperar no Caniçal, onde um grupo de benfiquistas queria celebrar a conquista de mais um título. Fomos recebidos em ambiente morno, mas a organização mantinha o programa. Passámos pelo palco e testámos a aparelhagem sonora: esperavam-se umas 300 pessoas, apesar do desaire da tarde. A noite descia sobre o oceano, o clima estava ameno, confortável; deslocámo-nos a pé até ao restaurante, no centro do Machico. Ao longo do jantar reparei que a mesa ia crescendo com a chegada de notáveis, adeptos locais. As conversas subiam de tom, trocavam-se explicações para a perda da taça.
Antes do café, um dos organizadores chegou à mesa e disse-me, olhos nos olhos: 'Vamos ter de vos levar de carrinha, isto está tudo bloqueado, não sei de onde veio tanta gente. A pé, nunca mais lá chegamos'. 'E a potência da aparelhagem vai chegar?'. 'Tem de chegar, António, tem de chegar, não estávamos à espera de tanta gente: está tudo louco. Isto era uma festa para a malta do Caniçal, Machico e pouco mais'
(Nas cercanias da serra do Santo, ali perto, o grupo GNR, do meu querido Rui Reninho (portista que muito respeito), ficara quase sem público por causa da debandada que descera até à praia do Caniçal, disseram-nos no final da noite. O poder do SLB)
Nessa noite, além da vaga humana de vários milhares de adeptos, vi as sereias que sulcam o Atlântico dançarem ao sou do Sou Benfica."
António Manuel Ribeiro, in Mística
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