terça-feira, 14 de julho de 2015

Taça Latina, o último torneio oficial pré-UEFA

"A Taça Latina é um dos torneios mais polémicos do palmarés português. Um contraste com a percepção da competição mediterrânica no resto do mundo. Prelúdio fundamental para a Taça dos Campeões Europeus, foi um dos dois torneios oficiais mais importantes do futebol no Velho Continente antes da Europa se unir à volta de uma bola.

Um torneio oficial num mundo sem UEFA
O triunfo, em 1950, do SL Benfica na segunda edição da Taça Latina condenou para sempre o torneio aos olhos dos portugueses. No caso dos adeptos encarnados, a competição foi exaltada como aquilo que, no fundo, era, o primeiro titulo continental do futebol luso, mais de uma década antes da vitória em Berna na final da Taça dos Campeões Europeus. Aos seus rivais, o triunfo encarnado naquela segunda final no Jamor foi recebido á época com desinteresse e no presente com desprezo. A crítica habitual é recorrente. A Taça Latina não era um torneio oficial. E no entanto, uma mentira dita mil vezes raramente se converte em verdade. A verdade que diz que a UEFA não deu o seu selo à competição, homologando-a aos seus títulos reconhecidos, não significa que o mesmo careça de oficialidade.
A confusão de termos – que só existe em Portugal, ironicamente – tem servido para ocultar a herança de uma competição fascinante na sua época de concepção e que marcou profundamente a evolução do futebol europeu. Em 1955, quando arrancou o torneio que ia mudar para sempre a história do jogo, poucos podiam antecipar esse impacto que se fez sentir meses depois. A final da primeira edição foi também a final entre dois campeões da Taça Latina. Nos sete anos seguintes, todos os campeões da Europa do torneio organizado pela UEFA tinham sido, também, vencedores da Taça Latina. Finalistas vencidos como o Barcelona ou o Stade Reims também pertenciam a esse grupo. Aliás, até 1964 só houve dois finalistas – em dezoito equipas possíveis – que não participaram no torneio. Um reflexo perfeito da sua relevância desportiva e social. Na Europa destroçada do pós-guerra não havia um espelho a que olhar. O nascimento desta competição despertou um sonho antigo. Talvez sem ela a ideia de um torneio continental tivesse demorado mais anos a concretizar-se.

A última grande competição regional
A Taça Latina foi fundada em 1949. Foi, desde o primeiro dia, um torneio oficial. Oficialidade garantida pelas quatro federações que lhe deram vida, a italiana e a espanhola, grandes protagonistas da sua concepção, e a francesa e portuguesa. Todos os jogos, regulamentos e participantes partiram de convites e gestões das respectivas federações. Em 1949, quando tudo começou, a UEFA era uma miragem e não havia uma autoridade superior ao das federações nacionais, salvo a FIFA. Mas esta, como era habitual com Jules Rimet, não se imiscuía em organizações salvo o seu Campeonato do Mundo, dando poder ás federações nacionais de oficializar ou não torneios. A Taça Latina – como a Mitropa ou a Home Nations – era portanto uma competição oficial desde o primeiro dia, altura em que dirigentes das respectivas federações – alentados por alguns influentes periodistas onde se encontrava o português Ribeiro dos Reis – colocaram mãos á obra. A ideia era, precisamente, a de emular a Mitropa, um torneio fundado em 1927 e que se prolongou até ao inicio da II Guerra Mundial. A Taça Mitropa – com a Taça Dr. Gero – deu profissionalismo e consistência a uma ideia de um torneio continental ainda que tenha sido iminentemente uma competição regional. O mesmo passaria com a Taça Latina com a diferença de que se uma tinha potenciado a grande linha desportiva que se desenvolvia á volta da bacia do Danúbio, a segunda fazia-o com a emergência do poder do futebol mediterrânico. As semelhanças acabavam aí. A Taça Latina seria disputada com os Mundiais, com sede fixa, durante uma semana, e com quatro participantes que deveriam ser os campeões nacionais. No caso destes recusarem as federações deveriam convidar os segundos classificados e assim sucessivamente. Nem sempre participaram os campeões mas estes receberam sempre o convite oficial em primeiro lugar. Os jogos seriam disputados num pais sede que se alternaria anualmente e a organização ficaria á cabo da federação anfitriã. As regras foram redigidas pela federação espanhola, a responsável por receber a primeira edição, depois de um sorteio com a congénere italiana. Foi criado um troféu próprio e anunciou-se a competição como um duelo entre a nata do futebol europeu. Á época, salvo pelo futebol inglês, essa era efectivamente a realidade. A Taça Mitropa seria recuperada mas longe do seu historial inicial, por culpa da Guerra-fria. Nenhum outro torneio regional teve eco e foi a Taça Latina que devolveu aos europeus, uma década depois, o desejo de ver as grandes equipas do continente a medirem-se umas contras as outras.

Os reis da Taça Latina
A primeira edição da competição iria colocar frente a frente o grande Barcelona de finais dos anos quarenta, o Sporting dos “Cinco Violinos”, os franceses do Stade Reims e o Torino de Mazzola e companhia. Lamentavelmente, semanas antes do arranque da competição – agendada para Madrid – a equipa italiana pereceu ao completo no acidente de Superga. O campeão português eliminou as reservas italianas e deu luta ao Barcelona até ao fim. Os catalães foram o primeiro vencedor do torneio. Ainda hoje o incluem no seu currículo de títulos oficiais, ao contrário das competições amigáveis e torneios de verão em que participam. Uma tendência transversal que nenhum outro país, salvo Portugal, questiona. Tudo, talvez, porque no ano seguinte, na edição organizada em Lisboa, o Benfica saiu vencedor.
Foi um triunfo polémico. Nas meias-finais a Lazio italiano utilizou uma equipa repleta de baixas por culpa de uma intoxicação alimentar. O Benfica apurou-se sem apuros mas precisou de duas finais – e três prolongamentos, um recorde histórico – para vencer com um tento polémico, aparentemente da autoria de Julinho, ainda que ninguém o possa confirmar. Essa vitória, a primeira de uma equipa portuguesa a nível internacional, foi exaltada pelo regime politica e ninguém a questionou á época. Foi também a única das equipas lusas que acabariam por ocupar o ultima lugar no ranking final do torneio. Seguiram-se triunfos italianos (AC Milan, em 1951), espanhóis (Barcelona, 1952) e franceses (Reims, 1953, na segunda edição disputada em Portugal com uma meia-final no Jamor e outra nas Antas) antes da interrupção por culpa do Mundial de 1954. Á época o torneio já era o mais popular a nível mundial, de clubes, que a própria FIFA solicitou ás federações que o cancelassem para evitar que os melhores jogadores das respectivas selecções estivessem indisponíveis para o Campeonato do Mundo. Quando foi reatado, em 1955, o Real Madrid, já com Di Stefano, saiu vencedor. Os merengues venceriam a última edição, em 1957, depois de um interregno em que o AC Milan saiu triunfante, somando o segundo titulo – os mesmos que Barcelona e Real – mas nessa altura a importância do troféu tinha sido relegada para um inevitável segundo plano. A UEFA tinha nascido – em Março de 1955 – e com ela uma nova competição que, a principio, a confederações europeia não queria organizar: a Taça dos Campeões Europeus.

A polémica decisão da UEFA
A principio as federações organizadoras da Taça Latina pensaram em manter o troféu. A Mitropa estaria vigente até aos anos noventa, por exemplo. Mas foi a própria UEFA quem colocou o prego no caixão da Taça Latina. Em 1955 o arranque da Taça dos Campeões Europeus foi visto por alguns com suspeita, a começar pelo Barcelona que não quis sequer candidatar-se á vaga espanhola que era, como todas, por convite. Mas o êxito das duas primeiras edições convenceu o mundo do futebol de que a nova competição era, realmente, o futuro. E que qualquer torneio regional perdia relevância. A UEFA, que a principio desdenhara a ideia de Hanot, abraçou o novo torneio e preparou o seu próprio de selecções. Anunciou igualmente a todas as federações que qualquer competição regional não seria oficialmente homologada por eles. Sabedores da situação – e também porque eram os dominadores do novo torneio – espanhóis, franceses e italianos decidiram abortar a Taça Latina quando esta se preparava para a sua nona edição. Os portugueses pouco tiveram a dizer sobre o assunto. A UEFA negou-se a dar oficialidade ao torneio dentro dos seus quadros, reclamando que a mesma tinha sido criada fora do seu âmbito, algo inevitável, tendo em conta que nascera seis anos antes que a própria UEFA. A confederação faria o mesmo com a Taça das Cidades com Feiras – quando a adquiriu em 1971 e transformou em UEFA – e esteve a ponto de o fazer com a Taça das Taças, outro torneio que não inventou, sendo que os dois primeiros vencedores foram apenas oficializados á posteriori por intermediação de Otorino Barassi, federativo italiano.
A Taça Latina ficou, portanto, fora do livro de honra da UEFA mas não perdeu a oficialidade para as quatro federações e todos os clubes que a ganharam continuam a reivindicar a mesma no seu currículo. Em Espanha, França ou Itália essa realidade não gera qualquer tipo de debate. Em Portugal a situação é radicalmente diferente. Se por um lado é certo que a dificuldade e valia da Taça Latina é incomparável com qualquer torneio da UEFA posterior não menos verdadeiro é que este foi o torneio que despoletou a revolução das competições continentais sendo, á época da sua fundação, a mais importante competição continental de clubes. A sua oficialidade é inquestionável bem como a sua relevância a todos os sentidos. Sem a Taça Latina o futebol mundial teria sido, seguramente, mais pobre e talvez o sonho de conquistar a Taça dos Campeões Europeus tivesse tido que esperar uns bons anos."

O ano em que Eusébio esteve em parte nenhuma

"Entre o Benfica e o Monterrey há muito em comum - Fernando Riera, Otto Glória, um grupo famoso de arquitectos. E claro, a Pantera Negra que foi em busca do tesouro da Sierra Madre e acabou numa profunda tristeza. Tempo, portanto, para um reencontro definitivo.

«O Ano em que Estivemos em Parte Nenhuma» é um livro extraordinário. Conta o tempo em que Ernesto Cuevara de La Serna, o Che, esteve em África, no Congo na altura dito belga, liderando um grupo revolucionário de mais de mil homens.
Esse ano de estar em parte nenhuma foi 1965.
Em 1965, ainda Eusébio não era o Eusébio-EUSÉBIO, o Eusébio-completo. Porque para que Eusébio seja inteiro como só ele, é preciso que exista o ano de 1966 e o Campeonato do Mundo de Inglaterra mais os quatro golos à Coreia do Norte.
Em 1967, Che Guevara deixou de ser Che Guevera homem e passou a ser o Che Guevera mito. Fuzilado em La Higuera, na Bolívia, pelo temente Mário Terán, deceparam-lhe as mãos e fizeram com que o mundo ecoasse o seu nome desde as montanhas por onde o condor passa.
Em 1975, Eusébio também estava, por assim dizer, em parte nenhuma.
Ou seja, estava em Monterrey, no México. Muito longe das revoluções. Até longe das revoluções. Até longe da revolução que, em Abril de 1974, em Portugal, lhe abrira finalmente a porta de saída do Benfica e do país.
Monterrey é uma cidade árida, não longe da fronteira com os Estados Unidos, ali porta a porta com Saltillo (outras histórias para outras crónicas), dinâmicas e capital do empreendimento privado, industrial e dada ao progresso. Não de agora, mas de há muito. Como os próprios mexicanos dizem: «Longe de Deus, mas tão perto dos Estados Unidos!».
Eusébio já tinha estado em Monterrey em Julho de 1974. No Estádio Universitário, o Benfica de Milorad Pavic venceu por 4-2 o Club de Fútbol Monterrey perante 25 mil espectadores. «El Volcán», como os mexicanos apelidavam o Universitário, extinguiu-se perante o futebol encarnado.
Pouco mais de um depois, Eusébio vestiria a camisola azul e branca às riscas de «Los Rayados» de Cerro de La Silla.
Parece que lhe ficava mal. Ou, pelo menos, estranha...
Tanta gente em comum!
O Club de Fútbol de Monterrey foi fundado no dia 27 de Junho de 1945 - acabou de cumprir mais um redondo aniversário.
Hoje em dia é propriedade da FMSA (Fomento Económico Mexicano S.A.) maior empresa mexicana de bebidas.
Em 1945, no dia 19 de Agosto, também foi um Che que marcou o primeiro golo do novo clube contra o San Sebastián de León: José «Che» Gomez.
O clube não tem o peso do Chivas de Guadalajara ou do América do México, por exemplo, mas já venceu por três vezes a Liga dos Campeões da CONCACAF e agora prepara-se para deixar de vez o velhinho Estádio Tecnológico, o segundo mais antigo em actividade no país, com capacidade para cerca de 38 mil espectadores, transferindo-se para os arredores da cidade, para Guadaloupe, e para o Estádio BBVA Bancomer.
É sair de casa alugada para casa própria. Durante 63 anos a fio, o CF Monterrey foi fiel inquilino do Instituto Tecnológico y de Estudios Superiores de Monterrey, uma das maiores universidades privadas da América Latina, dona do Tecnológico - no qual Portugal venceu a Inglaterra (1-0) no Mundial de 1986. Agora inaugura com pompa e circunstância uma nova arena, moderníssima, desenhada pela Popolous, a mesma agência de arquitectos que planeou o Estádio da Luz, o novo Emirates de Londres, o Novo Wembley, o Millenium de Cardiff ou o Estádio Olímpico de Londres, entre outros.
Convide-se, portanto, o Benfica porque faz todo o sentido.
Como se vê, as ligações existem entre ambos os clubes e são variadas. Metem inclusive Fernando Riera que esteve por duas vezes no Benfica (1962/63 e 1966/67) e três vezes no Monterrey (1975/76, com Eusébio, que impôs como «capitão» de Equipa, 1977/79 e 1989), e Otto Glória que passou pelo Benfica duas vezes (1954/59 e 1967/70) treinando o Monterrey em 1978/79.
A Sierra Madre abraça Monterrey.
Lembram-se do filme de John Huston? Humphrey Bogart a fazer de Fred Dobbs, mendigando em redor até que o sonho amarelo do ouro o leva à Sierra Madre.
Eusébio no sopé da Sierra Madre estreando-se frente ao Laguna: 2-2.
Estádio repleto. Um dos golos é de Eusébio.
Eusébio e o Monterrey são campeões estaduais. Mas, de repente, bate uma tristeza.
Fernando Riera sai. A Pantera Negra lamenta-se à sombra da igreja da La Puríssima Concepción: «Talvez tenha sido o pior bocado que passei em toda a minha vida: quando entrei no estádio deserto, sem ninguém, sem amigos, sem companheiros de trabalho. Eu e a minha solidão. Ia ali, àquele campo modesto, perto da minha casa, só para me treinar, pois as minhas relações com o clube estavam más. Queriam pagar-me menos do que estava no contrato e eu não estava disposto a aceitar. Para não perder a forma, saía de casa, metia à montanha e corria, corria, sozinho com os meus pensamentos. E quando corria. pensava: 'Sou um tipo chamado Eusébio, andei no futebol maior, fui aplaudido por multidões, e estou agora no México, abandonado, incompreendido, longe dos meus, com a minha família desambientada. Isso merecerá a pena? Em que me vim eu meter?'».
Passaram-se, entretanto, quarenta anos.
O Benfica regressa a Monterrey e Eusébio também.
A disputa da taça que leva o seu nome é uma forma de fazer a pazes definitivas com esse ano em que, também ele, esteve em parte nenhuma."

Afonso de Melo, in O Benfica

Uma viagem à Jugoslávia bastante musical

"Benfica faz furor na Jugoslávia e Eusébio mostra os seus dotes musicais no intervalo do jogo frente ao Hajduk Split
Foi em Abril de 1970 que, a convite de clubes locais, o Benfica visitou pela primeira vez a Jugoslávia. Depois de defrontar num primeiro jogo o Dínamo de Zagreb, a equipa benfiquista deslocou-se até à cidade costeira de Splot para um encontro com o Hajduk, então o clube mais antigo no território jugoslavo.
A fama do Benfica europeu despertou imensa curiosidade nos populares em Split, que se juntarem nas ruas e praças só para verem passar os jogadores, recebendo-os calorosamente com acenos, aplausos, pedidos de autógrafos, fotografias e entoando o nome de Eusébio.
O desafio serviu para inaugurar a iluminação eléctrica do estádio, tendo sido batidos todos os recordes de lotação e bilheteira. Estavam cerca de 28 mil pessoas na assistência e mais algumas do lado de fora, que treparam telhados, árvores, candeeiros e muros protegidos com pedaços de vidro, enchendo as mãos de sangue, tal não era o entusiasmo em ver o jogo.
A entrada das duas equipas no relvado e a abertura das luzes fizeram-se acompanhar por morteiros e fogo-de-artifício. Entrou também em campo o grande actor jugoslavo Boris Dvornik, que daria o pontapé de saída, acompanhado pelos Trovadores de Dubrovnic, uma banda pop folk jugoslava que tinha feito grande sucesso no Festival Eurovisão da Canção de 1968. O conjunto composto por seis jovens jugoslavos, que já havia sido bastante atencioso para a equipa do Benfica ao dar um concerto para os jogadores no hotel, ofereceu ainda, no relvado, um disco a cada um.
No intervalo do desafio, os Trovadores de Drubrovnic regressaram ao relvado para uma magnífica actuação e até convidaram Eusébio para dar uma 'ajudinha' na bateria.
Como recordação e agradecimento da sua presença, o Hajduk ofereceu ao Benfica um gusle, instrumento musical tradicionalmente utilizado nos países dos Balcãs como acompanhamento de canções épicas. Este objecto de características únicas pode ser encontrado na área 26. Benfica universal do Museu Benfica - Cosme Damião."

Ana Filipa Simões, in O Benfica

Vencer duas vezes

"Os outros bicampeonatos
Em 111 anos de história, é fácil perder a conta aos títulos duplos que se amealharam e aos seus mentores. De Cosme Damião a Bela Guttmann, de Janos Biri a Jorge Jesus: uma incursão ao mundo plural do nosso vencer.

Depois da conquista do bicampeonato em 2014/2015, muito se tem dito e escrito sobre o assunto. A quebra de um jejum tão inquinado só podia dar nisto. Afinal, à excepção dos anos 20, as décadas que decorreram até à de 80 não acostumaram ninguém a ver no Benfica um vencedor aos soluços.
Por outro lado, o endeusmaento de Jorge Jesus após o grande feito não é menos compreensível do que, por exemplo, a catarse provocada por Trapattoni no seio dos adeptos com o regresso aos títulos em 2004/2005. O treinador transalpino desfez uma inquietude sebastianista de 11 anos e devolveu-nos o que nos faltava para nos reencontrarmos. Devolveu-nos, afinal, o principal traço distintivo da nossa identidade: vencer.
Mas esse vencer era só a metade do todo. Vencer duas vezes era preciso, para nos sentirmos inteiros e reconhecermo-nos ao espelho. Por isso mesmo, embora num plano distinto, o que fez Jesus, mais ou menos como Trapattoni, foi vestir a pele do 'desejado'. Devolveu-nos, portanto, a outra metade, que se tinha evolado há 31 anos, com Sven-Goran Eriksson.
Hoje - sabemos que não é possível ganharmos sempre porque nunca foi -, pede-se, obviamente, um futuro de vitória. Ao jeito, se possível, dos anos 60 e 70, quando ganhar duas vezes até era pouco.
Mas o tema dos bicampeonatos e dos treinadores que os fizeram tem pano para mangas. Não se esgota em Jesus. Não se esgota no 'nacional'. Não se esgota nas épocas douradas.
Vale a pena, antes de esmiuçar o assunto, enquadrar outros 'bis' e outros contextos.
Saiba-se, por exemplo, que, cá em casa, foi Cosme Damião o primeiro técnico bilaureado - no Campeonato de Lisboa 1912/1913, prova, à época, rainha do futebol português.
Mais tarde, o inglês Arthur John alargou a proeza à primeira competição de carácter nacional. Acrescente-se que o Campeonato de Portugal - assim designado até mudar de nome para Taça de Portugal, em 1939 - só conheceu um 'bis' ao longo das suas 17 edições (1921/1922 a 1937/1938), precisamente o do Benfica de Arthur John, em 1930/1931.

'Bis' inteiros e outros 'bis'
Voltando ao 'Nacional', saiba-se, desde já, que foram nove os bicampeonatos do Benfica, cinco deles transformados em 'tri'. Quanto aos inteiros, ou seja, isolados no tempo, é curioso verificar que são, cada um deles, de um só treinador. Foi o húngaro Janos Biri quem debutou, vencedor em 1941/1942 e 1942/1943. De novo um húngaro desta feita o 'velho mago' Bela Guttmann, selou os títulos de 1959/1960 e 1960/1961, logo secundados em 1961/1962 pelo mais importante bicampeonato da nossa história: o dos Clubes Campeões Europeus. Sven-Goran Eriksson, o sueco que veio para transformar o nosso futebol, deixou para a história os títulos gémeos de 1982/1983 e 1983/1984. E, finalmente, Jorge Jesus assinou a retoma.
É verdade que Jesus foi o único treinador português a conquistar um duplo campeonato no Benfica. Mas um duplo é algo em que o primeiro não vive sem o segundo nem o segundo sem o primeiro. Nesta perspectiva, o também português Vítor Gonçalves, antigo jogador benfiquista e da selecção portuguesa, conduziu o clube ao seu primeiro título no 'Nacional' (1935/1936). Na época seguinte, conseguiríamos o bicampeonato, agora pela mão do húngaro Lippo Herckzka (seria dele o 'tri', na temporada seguinte). Numa situação semelhante estariam mais tarde o chileno Fernando Riera e o húngaro Lajos Czeizler, respectivamente campeões em 1962/1963 e 1963/1964. Mais um 'bi' que resultaria em 'tri', mas desta feita boa a batuta de um terceiro, o técnico sueco Elek Schwartz. Fernando Riera regressaria à ribalta em 1966/1967, abrindo as portas para um novo 'bi', rubricado em 1967/1968 a três mãos: a do próprio Riera, a do português Fernando Cabrita e a do brasileiro Otto Glória (desaguaria em 'tri' sob a sua liderança na época seguinte). Veio depois um demónio: Jimmy Hagan. Com os triunfos de 1970/1971, 1971/1972 e 1972/1973, o antigo ídolo do Shefield United tornou-se entre nós o único técnico a transformar um 'bi' num 'tri' absoluto.

Os 'bis' na Taça
Seguir-se-iam o jugoslavo Mirolad Pavic (1974/1975) e o português Mário Wilson (1975/1976), num tempo em que os treinadores do Benfica ainda se arriscavam a ser bicampeões. O 'velho capitão' encerraria o ciclo dos 'bis' partilhados ou não inteiros.
Para terminar, é preciso dizer que na Taça de Portugal também houve 'bis'. O já referido Janos Biri foi o motor de arranque, depois de vencer as edições de 1942/1943 e 1943/1944. Foi Biri, aliás, o único técnico a conseguir um 'bi-bi', se me é permitida a expressão - um 'bi' inteiro no campeonato e outro na taça. O inglês Ted Smith venceu as edições de 1948/1949 e 1959/1951 (em 1949/1950 não se realizou), transformadas, dois anos volvidos, no único 'tetra' da competição. Otto Glória (1968/1969 e 1969/1970) e José Augusto (1969/1970) dividiram as despesas do duplo seguinte. Em 1980/1981, o húngaro Lajos Baroti concluiu a obra de Mário Wilson (1979/1980), assinando o penúltimo. E, finalmente, o treinador magiar Paul Csernai (1984/1985) e o britânico John Mortimore (1985/1986) encerraram as contas.

Foi assim...
Imbatível
O inglês Jimmy Hagan conquistou para o clube, em 1971/1972, o sexto bicampeonato, transformado em 'tri' na época seguinte. O título de 1972/1973, alcançado sem derrotas, constitui ainda hoje a melhor performance na competição."

Luís Lapão, in Mística

Sport Cultura e Benfica

"Mais do que património desportivo
Mais do que património desportivo, a colecção de troféus, ofertas e documentação do Benfica assume-se como elemento fundamental da identidade do clube e da divulgação da sua história e cultura. Com os olhos postos no triplo objectivo da preservação, estudo e divulgação da colecção, a equipa do Património Cultural é hoje uma realidade no SLB, continuando o caminho percorrido pelos seus antecessores.

Dia 17 de Abril. A antecipar o Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, o Património Cultural do Benfica abriu as suas portas e deu oportunidade ao público de conhecer os seus bastidores. O Museu Benfica - Cosme Damião é já bem conhecido, aberto todos os dias desde 29 de Julho de 2013. Mas, para lá do museu, um mundo chamamos, hoje, Património Cultural do Sport Lisboa e Benfica.

O renascer de um conceito
Muitos interrogar-se-ão se fará sentido que o Benfica, um clube desportivo, tenha uma área de património cultural. Sem dúvida que sim, e este não é um conceito novo. Os estatutos do clube consagram, desde 1948, que é também função do Benfica, a par do primordial papel desportiva, o fomento da cultura entre os seus associados.
Este empreendimento foi abraçado definitivamente em 1955, com a criação da Secção Cultural. Joaquim Ferreira Bogalho, presidente da direcção do Benfica, o 'Homem do Estádio', foi também o 'Homem da Cultura': foi graças ao seu impulso e da direcção que liderava que a cultura tomou forma, de pleno direito, para todos os adeptos e associados. Nas suas sábias palavras de abertura do novo suplemento da secção, 'Desporto e Cultura', alerta que 'aqueles que vão trabalhar nas actividades culturais devem ter noção das dificuldades que por vezes nascem à sua volta; das incompreensões de muitos e até, da animosidade de alguns', mas frisa o apoio que a direcção dispensa a quem abraçou esta iniciativa.
Durante largos anos, a Secção Cultural, que mais tarde se chamaria Comissão de Estudos e Cultura, manteve uma actividade constante de exposições, palestras, conferências, visitas e outras manifestações no âmbito da literatura, da música, do cinema, do teatro e do coleccionismo. Foi por sua mão que o orfeão se estreou em 1957 e por sua iniciativa que se reactivou a biblioteca.
Com o passar do tempo, a sua acção dilui-se numa nova forma de gestão do clube, mas o século XXI, e novamente a vontade e apoio da direcção, permitiu o renascimento de um conceito de promoção e fomento da cultura nas suas variadas funções.

Impulso para o património cultural
Em 2009, quando Luís Filipe Vieira se recandidata à presidência do Benfica, assume um sonho há muitos anos adiado: construir o museu do Sport Lisboa e Benfica. O clube tinha já uma longa tradição de salas de troféus e exposições temporárias, mas faltava a esta instituição centenária um espaço que comunicasse a sua história.
Ao iniciar este projecto ambicioso, tomou-se consciência de que o clube precisava de investir, em primeiro lugar, na preservação do seu património material e imaterial e que estas seriam as bases em que assentaria um projecto de qualidade. Assim, os primeiros passos levaram à criação do departamento de Reserva, Conservação e Restauro (RCR) e do Centro de Documentação e Informação (CDI). Os seus objectivos passam pelo apoio ao Museu Benfica - Cosme Damião, mas não se esgotam nele. Em conjunto, estas áreas são o Património Cultural do Benfica, que salvaguarda e comunica a sua história e a sua identidade e promove actividades de âmbito cultural.

Reserva, Conservação e Restauro: um Mundo de troféus
Ao entrar no amplo espaço ocupado pelo RCR, os visitantes encontram quatro salas de reserva, onde os troféus e ofertas do clube - uma colecção de 30 mil objectos - estão organizados e acondicionados. Uma monitorização regular assegura as condições de preservação. Na sala de restauro desenrolam-se acções de restauro em materiais orgânicos e tarefas de gestão da colecção. No laboratório intervencionam-se objectos metálicos. E há um mundo de troféus para preservar.

Centro de Documentação e Informação: do físico ao digital
No espaço do CDI predominam os computadores. Dois grandes scanners planetários captam a atenção dos visitantes. Na sala de arquivo, ao lado, os documentos encontram o conforto necessário. Aqui trata-se não só de preservar os documentos mas também de os tornar acessíveis, passo que é dado ao transformar o físico em digital.
Uma equipa de documentalistas é responsável pela organização, digitalização e tratamento da documentação. A par deste trabalho, uma equipa de investigadores históricos utiliza os recursos do CDI para investigar e produzir conteúdos para diversos propósitos. É também aqui que se gere os conteúdos que enriquecem a exposição permanente do museu.

Museu Benfica - Cosme Damião: a face visível
Este é, sem dúvida, o espaço privilegiado de encontro entre a historia e a cultura benfiquista e o público. De portas abertas todos os dias, o museu dá a conhecer aos visitantes as principais conquistas do clube nas muitas modalidades que já se praticaram e as figuras que engrandeceram o Benfica.
Mas a visita ao museu vai além das fronteiras desportivas e transforma-se numa viagem no tempo: aí podemos também conhecer a história de Lisboa, de Portugal e do mundo e encontrarmos-nos, inesperadamente, com personalidades como o rei D. Carlos, Albert Einstein, Fernando Pessoa ou Júlio Pomar. Mas nem só de visitas vive o museu... Ali também se desenvolve um conjunto de actividades que tem como base a exploração de várias vertentes históricas e artísticas. As crianças podem participar em ateliês temáticos, enquanto os adultos encontraram novas formas de entretimento em concertos e outras manifestações culturais. Na construção de um diálogo entre o mundo das artes, do desporto e da educação, contamos com a participação de personalidades do meio cultural português. Da diversidade, um objectivo único: valorizar a dimensão histórica do património do Benfica.
(...)"

Rita Costa, in Mística