quinta-feira, 14 de maio de 2015

Se adormeceres roubam-te as botas

"O Porto considera que foram pessimamente nomeados os árbitros para o Vitória-Benfica e para o Belenenses-FC Porto. Caramba, isto é que são muitas exigências.

CARREGA, BENFICA!
Tão lindo este grito, lindíssimo mas talvez excessivamente coloquial tendo em conta a seriedade do momento.
É que o Benfica chegou ao ponto em que só tem dois jogos por disputar e está a uma vitória de revalidar o título de campeão.
O primeiro jogo é na casa do Vitória de Guimarães onde, nesta época, o Porto empatou e o Sporting saiu goleado.
O segundo jogo é na Luz com o Marítimo que nesta época, com dois treinadores diferentes, ganhou dois jogos ao Porto sempre com o mesmo treinador.
Nada disto se apresenta fácil.
Carrega, Sport Lisboa e Benfica!
Assim mesmo, com o nome completo porque chegou a hora de ser inteiro. E porque inteiro soa ainda melhor.
Carrega, Sport Lisboa e Benfica!
Assim mesmo, com o nome inteiro porque chegou a hora de ser completo. E completo demora mais tempo a dizer. E prolonga-se a satisfação.
Carrega, Sport Lisboa e Benfica!
Com as sílabas todas. É música que não deixa dormir.
Dormir é que não, Sport Lisboa e Benfica, dormir é que nunca.
Por exemplo, num filme antigo de Roberto Rossellini, chamado Libertação, retratando, precisamente, o mestre do neo-realismo a libertação da Itália pelos Aliados no culminar da II Guerra, há todo um episódio com uma esfaimada criança napolitana que persegue um soldado norte-americano com a intenção de lhe roubar qualquer coisa que valha dinheiro no mercado negro.
Exausto nas suas deambulações pelas ruas de Nápoles com a criança sempre à perna, o soldado acaba por se encostar a uns escombros e, entorpecido pela brutalidade do Sol, fecha os olhos.
Diz-lhe o rapazinho com toda a franqueza da sua miséria:
- Se adormeceres roubo-te as botas.
E é precisamente o que acontece. O soldado adormece e acorda descalço.
Carrega, Sport Lisboa e Benfica!
Se adormeceres roubam-te as botas.

NOS instantes que se seguiram ao quarto golo do Benfica, refiro-me ao jogo do último sábado, a expressão de um destino já inelutável levou Vítor Bruno, jogador do Penafiel, a uma curta e fogosa série de atitudes provocatórias que resultaram, objectivamente, em dois cartões amarelos mostrados a jogadores do Benfica como castigo por terem caído na tentação de responder à letra.
Foi o momento mais quente do jogo e imediatamente se transmitiu às bancadas.
Uma pequena parte do público, entusiasmado com a robustez do marcador e aborrecido com Vítor Bruno que nos tirou Samaris do jogo de Guimarães, desatou a cantar «olés» enquanto os jogadores do Benfica trocavam entre si a bola frente ao ali mesmo despromovido Penafiel.
Não foi bonito, não. Mas a verdade é que esse dispensável exercício de crueldade não se prolongou por muito tempo porque logo outra parte do público, mais adulta, fez valer os seus bons pergaminhos e impôs gentilmente o fim dos «olés» e o respeito pelo adversário.
Benditas sejam as maiorias esclarecidas que ainda habitam os estádios de futebol.

O presidente do Porto, por cansaço ou por ter mais que fazer, delegou a propaganda, área em que era mestre, numa elite de estrategas perfeitamente capaz de organizar recepções festivas depois de derrotas – e por isso já se exige o ADN de volta – e não menos capaz de descortinar «um toquezinho xenófobo» na resposta do director de comunicação do Benfica à última intervenção pública do treinador Julen Lopetegui. 
Lopetegui até pode ser o melhor treinador do mundo mas não é, certamente, o melhor comunicador do mundo. Contra si tem aquela notória desarticulação de um boneco a dar pinotes mas com os fios sempre à vista.
Entretanto o director de comunicação do Benfica, por iniciativa própria ou não, lá respondeu à última vaga de lamentações de Lopetegui sem recurso a nada que o pudesse ofender.
Limitou-se a publicar uma imagem de uma bancada repleta de benfiquistas, o tal «manto protector» na sua opinião, e a tratar o treinador do Porto não pelo nome mas pela sua naturalidade de «basco» que muita o honra, certamente.
Trocar o nome a Lopetegui é diminuí-lo. E de gosto duvidoso quando é propositado, admitamos. Já chamar «basco» a Lopetegui que é basco não é diminuí-lo nem se reveste de qualquer acinte.
Só mesmo pessoas que, por qualquer motivo fútil ou por paixão funesta, já não podem mais ver um «basco» pela frente é que conseguem descortinar «um toquezinho xenófobo» nesta redundância de chamar basco a um basco.
Pelo andar da carruagem, um dia destes ainda lhe chamam mouro.

NO princípio da semana, por causa da greve dos pilotos da TAP o Marítimo teve de pernoitar em Lisboa. No dia seguinte, antes do embarque paras o Funchal, a equipa treinou-se no Seixal devidamente autorizada pelo Benfica.
É um procedimento comum tal como o presidente do Marítimo se viu forçado a explicar recordando que a equipa da Madeira já anteriormente utilizou os campos de outros clubes de norte a sul do país, incluindo as instalações do Porto, sempre que se viu atrasada no continente por questões voos.
Como o Marítimo é o último adversário do Benfica nesta Liga o Porto reagiu oficiosamente a este episódio aéreo considerando-o um atentado à verdade desportiva. O presidente do Marítimo, por sua vez, considerou de «baixa intelectualidade» os protestos portistas. A verdade é que qualquer jogo que possa decidir um título arrasta consigo intricadas teorias da conspiração. É natural, o futebol é paixão não é império da lucidez. E o mais curioso é que a má fama da última jornada não nasceu esta semana no Seixal. 
A má fama da última jornada nasceu em Paços de Ferreira vai agora fazer três anos. Ainda ninguém se esqueceu. Eu também não. No entanto, para não dar parte fraca, aceitei placidamente a sagração do campeão e o pacote de negócios prontamente anunciado entre as partes.
E, francamente, houve ali alguma espécie de «amor», de «amor, só pode»?
Não, nunca, nada, zero.

TIRO maravilhosamente certeiro contra a xenofobia foi dado por Leonardo Jardim ao ser confrontado com o facto de o seu nome não constar na lista de candidatos ao prémio para o melhor treinador do campeonato francês.
- Eu só posso ganhar o prémio para o melhor pedreiro português em França – disse o madeirense.
Bravo!
Só espero que o Leonardo Jardim não se ofenda por o tratar por «madeirense».

COM todo o respeito pelo Vitória de Guimarães e pelo seu presidente da Assembleia Geral mas aquela tirada «se ganharem que vão festejar para o Marquês que é a casa deles» não terá um «toquezinho» de qualquer coisa menos aceitável?
Ainda o jogo de Guimarães não começou e já os benfiquistas, que aprenderam a não deitar foguetes antes da festa, foram mandados para o Marquês que, sensatamente, se recusam a reservar por causa das tosses.
Sempre se vai aprendendo com os erros, felizmente.
Um dos erros que, no entanto, pode ainda ocorrer dada a sensibilidade do tema é o de se prestar mais atenção às palavras inebriantes do alto dirigente vimaranense do que ao jogo propriamente dito com o Vitória de Guimarães. Que é o que conta.

O antigo árbitro Jorge Coroado – o introdutor da «azia» no léxico do nosso futebol – considera que foi muito mal nomeado o árbitro para o Belenenses-Porto mas que foi muito bem nomeado o árbitro para o Vitória-Benfica.
Não se pode ter tudo, é o que é.
Por sua vez, o Porto considera que foi pessimamente nomeado o árbitro para o Vitória-Benfica e, pior ainda, considera que foi terrivelmente nomeado o árbitro para o Belenenses-Porto.
Caramba, isto é que são muitas exigências.

PS - O Real Madrid não conseguiu fazer à Juventus o que o Benfica conseguiu há um ano: ganhar em casa e não perder fora. E mais nada!"

Leonor Pinhão, in A Bola

(In)coerência

"Enquanto a minha cabeça já está no estádio D. Afonso Henriques, leio e ouço os habituais exageros face à iconografia do sucesso ou do fracasso. Bem sei que, neste mundo sequioso de quantidade, a hiperbolização linguística aumenta as audiências e as tiragens.
Vivemos freneticamente o tempo dos aumentativos, invadindo o reinado que já foi dos diminutivos. Sinal dos tempos? Já não é o tempo do ceguinho, é a hora do apagão. Já não se dá atenção à passagem da mocinha gordinha, porque os olhos estão virados para a boazona. Já não se escuta o passarinho esvoaçando, por causa do buzinão. O carrinho modesto e utilitário cede lugar ao jipão agressivo e urbanizado. Passado o tempo do Carcavelinhos há quem desespere pelo regresso do Boavistão (com Petit, treinador). E até o Luisão parece soar melhor que o diminutivo Luisinho.
Mais, maior, melhor. Super, hiper, maxi. São as medidas da maratona da vida numa caminhada sem stop. Uma corrida cada vez mais de cada um, no mar da intranquilidade egoísta e na construção efémera de fugazes cometas de miragens e de ilusões transaccionadas. Uma pressa em função do vazio que atirou para o sótão das inutilidades semânticas essa palavra: urgência!
Eficácia, eficiência, produtividade, rendibilidade, performance, ingredientes obsessivos de vidas-taxímetro, sem embraiagem para o espírito. Ou será que a felicidade apenas se mede por uma qualquer assíntota de matéria fungível?
Ah, todo este arrazoado para me distrair da penúltima jornada do campeonato. Na esperança de que o campeão passe a ser bicampeão. Ora aí está a minha (in)coerência. É, por causa dela, que também gosto do futebol."

Bagão Félix, in A Bola