quinta-feira, 2 de julho de 2015

(In)gratidão

"A gratidão é, na sua essência, um acto de reconhecimento. De uma divisa não fungível, antes ética. A gratidão é a memória do coração, mas para isso é preciso ter memória e possuir coração.
Mark Twain afirmou que «se recolheres um cão faminto e lhe deres conforto, ele não te morderá. Eis a diferença entre o cão e o homem». Uma asserção exagerada para o homem, mas não para o cão. Sobretudo no mundo-cão em que ambos estão.
O futebol está cheio de ingratidão. Volto a citar, agora Ambrose Bierce, que, no século XIX - onde ainda não havia futebol - escreveu: «a gratidão é um sentimento que se situa a meio caminho entre um benefício recebido e um benefício esperado».
Entrar, sair, mudar, ignorar, esquecer são verbos da transumância futebolística onde o passado se torna poeira e o futuro se acresce em conta bancária. Vale (quase) tudo. E as multidões, inebriadas pela ilusão de uma nostalgia do pouco que, no futebol de elite, existe de gratidão e de sentimento afectuoso de pertença, correm atrás dos ingratos na esperança de que lá, onde moram as suas emoções, a gratidão é eterna.
Certamente sou eu que estou errado. Ainda resisto à ideia e que nem tudo se mede por (fartos) euros. Ainda acho que há valores éticos e comportamentais que não podem ser secundarizados ou desprezados, sob pena de nada valer. Aristóteles na sua Ética a Nicómaco escreveu que o que envelhece depressa é a gratidão.
No fim, que pode ser amanhã, como pode ser muito mais tarde, se perceberá que a gratidão - um bem cada vez mais raro - ainda é uma grandiosa virtude não transaccionável. Ou não se entenderá assim?"

Bagão Félix, in A Bola

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