quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

E despedimo-nos todos, por fim, do nosso século XX

"Tinha belo sorrido, mas o mundo apaixonou-se por Eusébio quando o viu chorar. Se os homens soubessem das emoções que despertam quando choram em público, chorariam mais vezes.

FOI-SE embora no fim-de-semana passado, o cidadão Eusébio da Silva Ferreira que se notabilizou nas décadas de 60 e 70 do século passado como um futebolista de excepção. Tratou-se de um desportista de inquestionável fair-play, idolatrado no seu clube e no seu país e, não é exagero dizê-lo, em todos os cantos onde o futebol tem expressão.
Tinha um belíssimo sorriso mas o mundo apaixonou-se por Eusébio quando o viu chorar numa tarde de Julho de 1966, já lá vão muitos anos.
Aliás, se os homens soubessem das emoções que despertam quando choram em público, chorariam mais vezes.
A fama de Eusébio enquanto jogador de futebol transformou-o num fenómeno de popularidade à escala global e é justo dizer-se de Eusébio que foi, involuntariamente, o maior embaixador de Portugal no século XX.
O maior embaixador, o melhor embaixador de Portugal e «sem encargos para o erário público», como diz, e muito bem, a Maria Emília, uma amiga minha de há muitos anos.

PELOS primeiros dias de Junho passado recebi um telefonema de um velho amigo, António Loja Neves. Foi direito ao assunto o António.
Visitaria Lisboa nos próximos dias para participar numas jornadas coloquiais o pensador e eurodeputado franco-alemão Daniel Cohn-Bendit, que foi o rosto da revolta estudantil em Paris em Maio de 1968. 
António Loja Neves, se bem me recordo, era organizador desse encontro político-filosófico na nossa capital e recebera de Daniel Cohn-Bendit um pedido urgente, de última hora e que muito desejava satisfazer por delicadeza e não só.
Cohn-Bendit queria absolutamente aproveitar a sua passagem por Lisboa para conhecer o português vivo que mais admirava, Eusébio. Era o seu ídolo, ponto final.
Passei sem demora a António Loja Neves um número de telefone dos serviços de Comunicação do Benfica e, alguns dias passados, constatei através da imprensa que Daniel Cohn-Bendit concretizou o seu sonho. Esteve com Eusébio, almoçaram juntos na Adega da Tia Matilde e trocaram presentes. Os relatos dessa ocasião referem que ambos se comoveram.
O ex-anarquista porque, nas suas palavras, esteve junto de uma lenda, a lenda porque estava longe de esperar que um pensador, uma figura histórica dos movimentos políticos estrangeiros do século XX, de quem provavelmente nunca tinha ouvido falar, lhe aparecesse à mesa com um monte de velhos recortes de jornais e de fotografias suas antigas, do tempo em que jogava futebol.
Em boa verdade, cada um à sua maneira era uma lenda, com direito a antonomásia e tudo. Eusébio, a pantera negra, Daniel Cohn-Bendit, Danny, Le Rouge, Danny, o Vermelho e não Danny, o Tinto, como alguns, quiçá apressadamente, se disporiam a traduzir ou por blasfémia ou por inveja ou por mal querença política.
Futebol não é propriamente alta cultura, assentemos nisto. Sabendo que, por palavras simples, existe uma cultura erudita que não exclui os populares e que sempre existirá uma cultura popular que não exclui os eruditos. E, às vezes, cruzam-se e é magnífico.
Felizmente que é assim que as coisas se passam em todo o mundo. Haverá sempre poetas que escrevem sobre toureiros, romancistas que escrevem sobre futebolistas e artistas que pintam fadistas e outros vencidos da vida que venceram em toda a linha..
Os funerais destes heróis populares, frequentemente mal-nascidos, sempre se constituíram em altas catarses. Aconteceu assim, ao longo de todo o século XX, com toureiros em Córdoba, com cantadores de tango em Buenos Aires, com fadistas em Lisboa e com futebolistas em Moscovo, no caso de Lev Yashin, o fabuloso Aranha Negra.
O espanto, e até mesmo a indignação, face à comoção popular suscitada pela morte de Eusébio, que foi apenas um futebolista, é espectáculo triste de se assistir porque revela, lá no fundo, mesmo bem lá no fundo, um enorme desprezo pelo poder do homem da rua, um poder maravilhosamente anónimo que confere o estatuto de lenda só a quem lhe merece.
E nunca ninguém conseguiu impingir uma lenda às ruas.
Foi quando o funeral de Eusébio, apenas um futebolista, saiu do Estádio da Luz, ou seja, da sua casa onde foi justamente homenageado pelos seus, e avançou pela cidade ao encontro da multidão anónima que fazia alas para o deixar passar, é que se fez prova definitiva do estatuto que lhe foi e será conferido pelo homem da rua.
Lisboa despediu-se de uma lenda.
E despedimo-nos todos, por fim, do nosso século XX.

«BELLA GUTTMAN prepara-te, o King vai-te dar uns tabefes !», escreveu um amigo meu, Hugo Sá Nogueira, na sua página do Facebook na manhã do último sábado.
Foi, para mim, o melhor que li nesse dia e nos outros que se lhe seguiram a propósito da morte de Eusébio, no Facebook.
Pelo melhor do Twitter tive de esperar três dias mas valeu a pena a demora. Chegou assinado por Mike Tyson. O pugilista norte-americano capaz de arrancar orelhas à dentada, entre outras habilidades, mandou-nos um belo recado: «R.I.P. Eusebio Black Panther BENFICA forever». É assim mesmo, Tyson.
Em termos de redes sociais, concluindo: Hugo Sá Nogueira & Mike Tyson, o meu respeito.
Em termos de Panteão, não tenho nada a dizer. É uma honraria, certa e indiscutivelmente. Mas é uma honraria que, objectivamente, não acrescenta nada à lenda. Pode acrescentar ao Panteão, isso sim.

EM termos de cachecóis, também tenho pouco ou nada a dizer. Ditada pela emoção, o que é muito respeitável, a ideia de imortalizar a área circundante à estátua de Eusébio, tal como ficou, coberta de cachecóis, até à saída da Luz do funeral, não me parece de excelência.
Se vivêssemos numa utopia, sim, seria talvez uma boa ideia. Mas não vivemos. E engaiolando a área da estátua, o Benfica vai ter certamente aborrecimentos vários e frequentes se não entender como imperioso contratar segurança, e da boa, 24 horas por dia.
O Benfica até tem um Museu, espaço fechado, protegido, onde poderá recriar todo esse ambiente dando-se, se quiser, ao trabalho de encomendar uma réplica da estátua e de a rodear dos cachecóis de todos os clubes, tal como aconteceu, espontaneamente, na chamada vida real quando a multidão se começou a dirigir para o Estádio da Luz depois de conhecida a notícia da morte de Eusébio.

CRISTIANO RONALDO vai ser condecorado pelo presidente da nossa República. A cerimónia deveria ter ocorrido anteontem mas acabou por ser adiada por razões óbvias.
Cristiano Ronaldo é um futebolista excepcional e merece todas as medalhas e comendas que o seu país lhe queira outorgar. Embora não precise de nada disso para continuar a ser o futebolista portentoso que é.
O regime, seja ele qual for, nunca hesitou em condecorar os seus desportistas excepcionais. É uma necessidade. Uma necessidade do regime, qualquer que seja o regime, e não do desportista. É esta a vantagem do desportista nestas ocasiões. Na verdade, não precisa. Já o regime, precisa.
Acontece agora com Cristiano Ronaldo como aconteceu com Eusébio quando jogava. É normal que assim seja. Mas nunca lhes chamem, por favor, “futebolistas do regime” porque esse é o maior dos abusos. E para abusos, francamente, já basta.

VOLTANDO à vida real. No próximo domingo há um Benfica-FC Porto. Nas duas últimas edições do campeonato o título decidiu-se sempre nestes confrontos directos entre os dois grandes rivais.
Nada garante que este ano volte a acontecer a mesma coisa até porque, este ano, o Sporting renasceu para a luta e o que se discutia ferozmente a dois passou a ser discutido a três, o que altera muita coisa.
Pois que seja um bom jogo e que ganhe o Benfica, são os meus votos.
Homenagear Eusébio é, muito simplesmente, ganhar campeonatos, títulos nacionais, títulos internacionais. 
Por isso fico tão alheia a conversas de cachecóis e de panteões.
Viva o Rei!"

Leonor Pinhão, in A Bola

Eusébio, o joelho e o energúmeno...

"Corria o ano 68 do século passado e eu, que andava pela América do Sul, juntei-me ao saudoso Carlos Pinhão que acompanhava o Benfica na digressão e teve como primeira paragem Buenos Aires. A primeira notícia que me deu o Carlos ao ver-me foi: 'No Benfica vem um miúdo de 17 anos que vai ser uma sensação, chama-se Humberto Coelho'. O primeiro desafio foi no Bombonera e apesar de amigável o recinto estava cheio e o ruído dos barras bravas era ensurdecedor. Hoje seria impensável, mas a verdade é que vi o jogo sentado no banco ao lado de Otto Glória - e me apercebi pela primeira vez que ali, no banco, o papel do treinador, pelo menos nessa altura, era, após o desafio começar, pouco mais do que testemunhal, já que ao nível do relvado só se viam pernas e os jogadores não ouviam nada do que o técnico lhes ia dizendo.
Eusébio também lá estava, apesar de duas semanas antes ter sido submetido a ma das seis operações ao joelho esquerdo O contrato que o Benfica tinha assinado com o Boca a isso obrigava. Para cumprir o compromisso, Otto Glória fê-lo entrar em campo já com o jogo a decorrer, coxeava e a joelheira que levava era o que melhor indicava o sítio onde o bisturi entrara. O defesa argentino encarregado de o marcar não perdeu tempo a pô-lo fora de combate, bastou-lhe uma entrada suficientemente dura para que Eusébio saísse na relva e de lá saísse em maca.
O jogo terminou com empate: 1-1, os dois golos foram de penalty,o do Benfica transformado pelo defesa Jacinto. Mas o pior foi o que aconteceu no balneário. Aí se apresentou, como um energúmeno, o presidente do Boca Juniors, um tal Armando, que absolutamente fora de si, chamou de tudo e de ladrões para cima aos dirigentes do Benfica, queixando-se de lhe terem vendido gato por lebre, que o contrato era explícito: Eusébio tinha de jogar e chegara lá quase incapaz de correr, praguejava, exigindo, por isso, que lhe devolvessem o dinheiro que pagara.
O assunto resolveu-se mas a recordação agora, desse episódio, serve para mostrar como foi explorada a figura de Eusébio pelo próprio clube que, como ele ou sem ele, facturava cachets bem diferentes. É certo que depois de ter deixado o futebol, o Benfica soube reconhecer tudo o que Eusébio lhe dera, dando à figura a maior dignidade, mas nada mais justo poderia fazer depois dos êxitos desportivos em que ele foi determinante, e dos sacrifícios físicos que foi obrigado a fazer, aguentando dores impossíveis para que pudessem entrar alguns (muitos) dólares mais nos cofres do clube. Também nisso os benfiquistas lhe têm de estar profundamente agradecidos. E já agora é bom recordar que os colegas de então nunca o deixaram de fazer - e por isso é que diziam sempre que no Benfica o Eusébio não é só o Eusébio era o... «abono de família» de todos eles."

Pereira Ramos, in A Bola

Eusébio (II)

"Eusébio representou sublimemente uma expressão desportiva que deixou de ser norma. Onde o que contava era tão-só o futebol jogado. De paixão pura. Onde a iconografia  era a do exemplo no trabalho e não a da imagem no mercado. Num tempo em que o sucesso não era apenas uma forma de aumentar a retribuição, mas uma compensação de quem sentia devotadamente a camisola que envergava. No seu tempo não se falava de marca, de manager, de merchandising. Falava-se de amor, suor e vitórias.
Por vezes, imaginava-o a jogar no século XXI. Não que tivesse sido jogador no tempo errado, mas para sublinhar a sua magia e talentos quase insgotáveis. Imagino o que teria sido mais em Eusébio e com Eusébio se, então, houvesse cartões amarelos e vermelhos que impedissem o massacre de que ele foi tantas vezes alvo por adversários incapazes de se lhe opor. Ou haveria jogos em que o adversário terminaria com alguns jogadores expulsos e Eusébio poderia expressar ainda mais a sua atracção pura, genuína, quase romântica pelo golo. Aquela jogada contra a Coreia, desde o meio-campo com 17 toques e vários derrubes é exemplar: além do penalty marcado, quantas expulsões haveria?
Eusébio foi lusofonamente inteiro: sempre português sem deixar de ser moçambicano. Foi sempre menino sem deixar de crescer. Foi sempre apaixonado pelo Benfica sem deixar de reconhecer o valor dos adversários. Eternizou o Benfica e fundiu-se com Portugal.
Eusébio: un nome que poderia estar num qualquer Dicionário de Língua Universal porque é intemporal e universal. Ultrapassou a onomástica e a geografia. Pertence ao mundo e tem significado próprio."

Bagão Félix, in A Bola

O que eu devo a Eusébio

"Zangadíssimo em Lourenço Marques... E a viagem pesadelo no meu carro, com Nuno Ferrari, levando Eusébio ao... Beira-Mar.

Creio dever a Eusébio ter entrado para o quadro da redacção de A BOLA logo uma semana após regressar da guerra colonial em Moçambique. Os 'monstros sagrados' tinham-me aceitado, miúdo ainda estudante, como colaborador, mas a tropa afastara-me por longos 3 anos - e quem não aparece... esquece. Bambúrrio de sorte e... Eusébio terão sido os meus salvadores. Quando a guerra me deu uns dias de férias, decidi passá-los em Lourenço Marques (hoje Maputo). E foi aí, em Junho (ou Julho?) de 1970, que o já Rei Eusébio de rompante entrou na minha vida. Zangadíssimo por o presidente Borges Coutinho lhe fazer baixa proposta para novo contracto, voou até à sua terra natal garantindo. «assim, não voltarei a jogar». Que 'bomba'! Telefonei para A BOLA e, entre timidez e audácia, disse ao grande chefe Vítor Santos: «estou em Lourenço Marques; se puder ser útil...». Durante 2 semanas, colei-me a Eusébio, conheci a mãe (que personalidade de matriarca, Dona Elisa), irmãos, amigos. Contratado fotógrafo, fizemos manchetes de A BOLA. Querido Eusébio, escancaraste-me porta grande na lisboeta travessa da Queimada.

Seis anos decorridos, deu-me lição de coragem e de persistência (no amor a entidade que tão mal, com terrível ingratidão, estava a tratá-lo). Gigante Eusébio a caminho do... Beira-Mar! Para assinar contrato em que foi pago por jogo e, salvo erro, por golo! Lisboa-Aveiro, no meu carro e com o seu enorme amigo Nuno Ferrari, que pesadelo! partimos em sepulcral silêncio, mas depressa explodi: «Não podes sujeitar-te a isto!» Sussurrou: «tem de ser». Olhei para o banco de trás: olhos do Nuno Ferrari rasos de água. Em fúria, chamei tudo aos dirigentes do Benfica - e até aos da Federação. Eusébio ouviu, ouviu... e, quando, enfim, falou, fui para dizer: «Garanto que não jogarei contra o Benfica». Teve de jogar, semanas depois, mas recusando-se a marcar livres e nem um remate fazendo...

Tanto a dizer de tão excepcional futebolista! Fico-me pelo início de carreira, mostrando estar ali um... fenómeno. Benfica recém-campeão europeu foi a Paris defrontar o famosíssimo Santos de Pelé; Eusébio, 19 aninhos e só há 3 meses na Luz, no banco de suplentes. Ao intervalo, 4-0 para Pelé & Companhia; o miúdo Eusébio entrou e... tomem 3 golos! (não 4 porque lhe recusaram estatuto para marcar penalty...).
De seguida, Peñarol-Benfica, decidindo oficioso título mundial. Na Luz, 2-1 para o Benfica (Eusébio de fora). Em Montevideu, campão da Europa goleada com 5-0! Regulamento ditava; 3.º jogo, em Montevideu. Bela Guttmaan mandou ir de Lisboa dois meninos: Eusébio e o ainda júnior Simões. Foram titulares. O Benfica perdeu por 2-1, Eusébio marcou, um pontapé quase de meio campo! Nunca mais, por muitos anos, ele e Simões saíram do onze... Simões, extremo esquerdo, ainda hoje o mais jovem campeão europeu, aos 18 anos, quanto a mim o jogador que, no Benfica e na Selecção Nacional, melhor entendeu e explorou o fantástico futebol de Eusébio.
Nos últimos tempos, alguns (poucos) subvalorizaram Eusébio face a Cristiano Ronaldo. Irritante, vindo de quem não viu, ou quase não viu, jogar Eusébio... Raio da idade deu-me o privilégio de vê-lo em toda a sua carreira. Repito o que escrevi há dias: houve grandes jogadores que não o seriam hoje; mas Eusébio seria hoje ainda maior gigante. Técnica ao serviço de excepcionais mudanças de velocidade (que poder de aceleração, mantendo-a por ali fora!), raça e força, fabuloso remate, diabólico também na colocação. Com tais características em grande, vi o Ronaldo brasileiro e vejo o nosso. Mas Eusébio rasgou fronteiras, atingindo píncaros de admiração mundial (super-fenómeno, sem internet, profusão de vídeos, intensíssimo marketing), nunca lhe tendo sido permitido acréscimo de mediatismo por jogar num grande clube de Itália, Inglaterra, Espanha... E hoje, caramba, com meios clínicos muito mais requintados, não teria de sofrer 7 (!) operações a joelhos! Digam lá quem mais passou por tamanho calvário mantendo-se gigante?...
Há uns 5 anos, Simões disse-me: «com as bolas de hoje, muito mais golos Eusébio marcaria... de meio campo». Digo eu: com as bolas e também as botas de hoje, tão mais leves.
Eusébio, como Pelé e Maradona, foi rei de um Mundial (em dobro: melhor jogador e goleador n.º1). Cristiano Ronaldo e Messi ainda não atingiram tal galáxia. Grande Cristiano, que seja este ano!"

Santos Neves, in A Bola

Heróis de outros e de todos os tempos

"Há heróis distinguidos por extraordinários feitos, heróis de guerra, heróis nacionais, heróis da Pátria. São heróis distinguidos em parada militar, por decreto presidencial, por designação de altos comandos. Passei os 10 de Junho da minha juventude a ver entregar medalhas e heróis falecidos em combate. Vinham as viúvas, com os filhos num negro de corvos, receber a distinção, desfeitas em lágrimas, em parte vertidas pela memória, em outra aparte vertidas pela raiva de uma guerra onde nem os heróis encontravam razões de glória.  E passei também os 10 de Junho, depois do 25 de Abril, a ver desfilar a reprovável banalização dos louvores da Pátria oficial e cinzenta, que tudo confunde, desde os verdadeiros ilustres, a quem Portugal muito ficará a dever, até aos verdadeiramente banais, escolhidos por critérios inenarráveis.
Eusébio não é, certamente, confundível com um heróis de guerra, com um grande escritor, um grande cientista, um grande estadista. Pertence, apenas, e só, ao pequeno grupo dos heróis eleitos pelo povo. Não é verdade que o povo o tenha escolhido, apenas, por ter sido um genial futebolista. É preciso muito mais para merecer a escolha do povo. Às vezes, é mesmo preciso algo que só o povo sabe descobrir, mesmo quando não consegue definir.
Não me choca que Eusébio ganhe lugar no Panteão. Sinceramente, não me parece a melhor das ideias, mas admito que seja uma maneira de dar expressão nacional ao agradecimento pelo que Eusébio representou para Portugal e para os portugueses. E se outro mérito não tiver, será também uma forma dos portugueses conhecerem melhor a vida e a obra de quem lá está e de quem lá haverá de estar. Num dos casos, que eu cá estou a pensar, seria, aliás, uma deliciosa ironia."

Vítor Serpa, in A Bola

O meu Eusébio

"É o Eusébio do sangue
Dois dias depois, é ainda mais difícil escrever sobre Eusébio.
Escrever para elogiá-lo como jogador ou como homem soa redundante: já foi tudo dito, e quase tudo bem. Escrever para exigir a trasladação dos seus restos mortais para o Panteão também: toda a gente o fez já, ademais com justiça - e o precedente de Amália torna o desbloqueamento da operação numa formalidade burocrática.
Escrever para quê, então? Para lamentar as intervenções do dr. Soares, de Mozer, de tantos outros que, no meio da cacofonia em que talvez fosse inevitável a morte do Pantera Negra tornar-se, usaram o microfone para violentar o mito, mesmo que com a melhor das intenções? Escrever para repreender as vozes dissonantes que não se coibiram de aproveitar a morte de um grande para ajustar contas com recalcamentos históricos, para dirimir comparações estéreis, para sobrepor a espuma dos clubismos e a raiva dos resultados e a mágoa dos penáltis e a pequenez de tudo aquilo que nos separa uns dos outros à grandiosidade daquilo que nos une?
Confesso-me incapaz. Sou um cronista das pequenas coisas: das entrelinhas e dos desperdícios, dos equívocos e das partes gagas. Nenhuma crónica minha faria justiça a Eusébio. E talvez alguma crónica de outrem possa fazer justiça àquilo que Eusébio foi, mas até ao momento em que escrevo também ainda não li uma só que faça justiça àquilo que ele significa.
Aquilo que um homem significa é aquilo que ele será sempre. E aquilo que Eusébio será, se a proximidade efectivamente nos tolda a visão, fica aí expresso mundo fora: nas homenagens, nas manchetes, nos lutos e nas palavras (sim, nas palavras também) que lhe deixam personalidades, clubes, instituições, adeptos anónimos. 
O resto, que não aquilo que os homens significam, é fragilidade humana apenas: a saúde e a doença, os semblantes e os cheiros, as rotinas e os objectos, os fracassos, os sucessos e até as estatísticas. Todos nascemos, vivemos e morremos. Vimos do pó e ao pó regressamos. É o que se realiza nesse fugaz instante que só nós podemos tornar possível que faz a diferença.
Eusébio foi buscar a bola dentro da baliza e continuou a trazê-la de volta para o grande círculo, até que enfim se operasse a reviravolta. Já o haviam feito marinheiros, vice-reis, restauradores, até poetas. Mas nenhum deles aparecera na televisão.
Até nessa coincidência Eusébio foi um milagre. Nós reconhecemo-lo se quisermos. Os milagres não precisam de reconhecimento para continuarem milagres.
Afinal, sempre escrevi. E, como previsto, fica aquém do seu objeto. Bom sinal."

Três notas

"Nestes dias que se seguem ao desaparecimento físico de Eusébio, todos temos procurado rebuscar memórias nas gavetas onde há muito se encontravam recolhidas, aguardando o seu tempo para serem partilhadas com o grande público.
Nestes dias que se seguem ao desaparecimento físico de Eusébio, todos temos procurado rebuscar memórias nas gavetas onde há muito se encontravam recolhidas, aguardando o seu tempo para serem partilhadas com o grande público. Esse tempo, infelizmente, chegou.
As histórias têm assim surgido em catadupa, algumas vertidas em textos admiráveis e dignos de figurar num compêndio onde um dia alguém tenha a iniciativa de as colocar, também para memória futura.
E tem havido de tudo um pouco, desde a descrição de momentos empolgantes que ligaram os nomes de Eusébio e de Portugal ao Mundo, passando por pequenos episódios que alguns contam, empolgados, como se se tratasse da história das suas vidas. Mas não podem igualmente ser colocados de lado alguns ridículos pormenores, que bem poderiam e deveriam ter sido evitados.
Apenas três notas:
A primeira, para valorizar as declarações proferidas pela segunda figura do Estado porque da Presidente da Assembleia da República se trata, relativas à proposta que cada vez ganha mais corpo, de levar Eusébio para o Panteão Nacional. Assunção Esteves não fez os trabalhos de casa e acabou por ficar mal na fotografia.
Depois, Mário Soares, já muito causticado nas redes sociais devido à forma lamentável como procurou traçar o perfil do antigo jogador do Benfica e da selecção nacional.
Para quem exerceu os mais altos cargos e deveria ser figura permanente de referência, as palavras por si produzidas teriam sido bem substituídas por um prudente silêncio que as circunstâncias lhe recomendavam. 
E, finalmente, José Sócrates. Afirmou o ex-Primeiro Ministro, que deve a Eusébio a sua ligação afectiva ao Benfica, recordando ter sido a partir do relato do jogo Portugal-Coreia do Norte, relativo ao Mundial de 66, quando ia para a Escola, na Covilhã, que essa simpatia despontou.
Só que, esse desafio teve lugar a 23 de Julho, um sábado à tarde, em pleno período de férias de Verão e nesse dia e essa hora a escola estaria seguramente fechada.
Enfim, tem havido de tudo um pouco por estes dias. Só que a figura de Eusébio está muito para além de todas estas irrelevâncias."

Uma questão de valores

"Se faz sentido que exista um Panteão Nacional, faz sentido que Eusébio tenha lá lugar. O que não faz sentido nenhum é falar-se em custos.
A trasladação de Eusébio para o Panteão Nacional é um tema pacífico entre os únicos interessados no assunto: os portugueses. Se faz sentido a existência de um Panteão Nacional, faz sentido que Eusébio tenha lá lugar, por tudo e mais alguma coisa e, pelo menos nisso, pelo menos desta vez, estamos todos de acordo, incluindo Assunção Esteves. Infelizmente, a presidente da Assembleia da República fez questão de lembrar que o processo tem "custos". Ainda por cima, disse que são custos elevados "na ordem das centenas de milhares de euros". Quantas centenas? Afinal, há uma diferença significativa entre uma, duas ou nove centenas de milhares de euros, mas também é verdade que se os políticos fossem rigorosos as contas públicas não eram o que são. O JOGO foi saber e chegou à conclusão que as centenas de milhares de euros de Assunção Esteves serão, afinal, dezenas. Uma boa notícia para a presidente da Assembleia da República, naturalmente zelosa do orçamento parlamentar ao qual terá de ser subtraído o "custo" da trasladação. Claro que mesmo sem estas contas, alguém lhe podia ter dito que, apesar de terem custos, há alturas em que algumas coisas não têm preço. A memória é só uma delas."