quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

E despedimo-nos todos, por fim, do nosso século XX

"Tinha belo sorrido, mas o mundo apaixonou-se por Eusébio quando o viu chorar. Se os homens soubessem das emoções que despertam quando choram em público, chorariam mais vezes.

FOI-SE embora no fim-de-semana passado, o cidadão Eusébio da Silva Ferreira que se notabilizou nas décadas de 60 e 70 do século passado como um futebolista de excepção. Tratou-se de um desportista de inquestionável fair-play, idolatrado no seu clube e no seu país e, não é exagero dizê-lo, em todos os cantos onde o futebol tem expressão.
Tinha um belíssimo sorriso mas o mundo apaixonou-se por Eusébio quando o viu chorar numa tarde de Julho de 1966, já lá vão muitos anos.
Aliás, se os homens soubessem das emoções que despertam quando choram em público, chorariam mais vezes.
A fama de Eusébio enquanto jogador de futebol transformou-o num fenómeno de popularidade à escala global e é justo dizer-se de Eusébio que foi, involuntariamente, o maior embaixador de Portugal no século XX.
O maior embaixador, o melhor embaixador de Portugal e «sem encargos para o erário público», como diz, e muito bem, a Maria Emília, uma amiga minha de há muitos anos.

PELOS primeiros dias de Junho passado recebi um telefonema de um velho amigo, António Loja Neves. Foi direito ao assunto o António.
Visitaria Lisboa nos próximos dias para participar numas jornadas coloquiais o pensador e eurodeputado franco-alemão Daniel Cohn-Bendit, que foi o rosto da revolta estudantil em Paris em Maio de 1968. 
António Loja Neves, se bem me recordo, era organizador desse encontro político-filosófico na nossa capital e recebera de Daniel Cohn-Bendit um pedido urgente, de última hora e que muito desejava satisfazer por delicadeza e não só.
Cohn-Bendit queria absolutamente aproveitar a sua passagem por Lisboa para conhecer o português vivo que mais admirava, Eusébio. Era o seu ídolo, ponto final.
Passei sem demora a António Loja Neves um número de telefone dos serviços de Comunicação do Benfica e, alguns dias passados, constatei através da imprensa que Daniel Cohn-Bendit concretizou o seu sonho. Esteve com Eusébio, almoçaram juntos na Adega da Tia Matilde e trocaram presentes. Os relatos dessa ocasião referem que ambos se comoveram.
O ex-anarquista porque, nas suas palavras, esteve junto de uma lenda, a lenda porque estava longe de esperar que um pensador, uma figura histórica dos movimentos políticos estrangeiros do século XX, de quem provavelmente nunca tinha ouvido falar, lhe aparecesse à mesa com um monte de velhos recortes de jornais e de fotografias suas antigas, do tempo em que jogava futebol.
Em boa verdade, cada um à sua maneira era uma lenda, com direito a antonomásia e tudo. Eusébio, a pantera negra, Daniel Cohn-Bendit, Danny, Le Rouge, Danny, o Vermelho e não Danny, o Tinto, como alguns, quiçá apressadamente, se disporiam a traduzir ou por blasfémia ou por inveja ou por mal querença política.
Futebol não é propriamente alta cultura, assentemos nisto. Sabendo que, por palavras simples, existe uma cultura erudita que não exclui os populares e que sempre existirá uma cultura popular que não exclui os eruditos. E, às vezes, cruzam-se e é magnífico.
Felizmente que é assim que as coisas se passam em todo o mundo. Haverá sempre poetas que escrevem sobre toureiros, romancistas que escrevem sobre futebolistas e artistas que pintam fadistas e outros vencidos da vida que venceram em toda a linha..
Os funerais destes heróis populares, frequentemente mal-nascidos, sempre se constituíram em altas catarses. Aconteceu assim, ao longo de todo o século XX, com toureiros em Córdoba, com cantadores de tango em Buenos Aires, com fadistas em Lisboa e com futebolistas em Moscovo, no caso de Lev Yashin, o fabuloso Aranha Negra.
O espanto, e até mesmo a indignação, face à comoção popular suscitada pela morte de Eusébio, que foi apenas um futebolista, é espectáculo triste de se assistir porque revela, lá no fundo, mesmo bem lá no fundo, um enorme desprezo pelo poder do homem da rua, um poder maravilhosamente anónimo que confere o estatuto de lenda só a quem lhe merece.
E nunca ninguém conseguiu impingir uma lenda às ruas.
Foi quando o funeral de Eusébio, apenas um futebolista, saiu do Estádio da Luz, ou seja, da sua casa onde foi justamente homenageado pelos seus, e avançou pela cidade ao encontro da multidão anónima que fazia alas para o deixar passar, é que se fez prova definitiva do estatuto que lhe foi e será conferido pelo homem da rua.
Lisboa despediu-se de uma lenda.
E despedimo-nos todos, por fim, do nosso século XX.

«BELLA GUTTMAN prepara-te, o King vai-te dar uns tabefes !», escreveu um amigo meu, Hugo Sá Nogueira, na sua página do Facebook na manhã do último sábado.
Foi, para mim, o melhor que li nesse dia e nos outros que se lhe seguiram a propósito da morte de Eusébio, no Facebook.
Pelo melhor do Twitter tive de esperar três dias mas valeu a pena a demora. Chegou assinado por Mike Tyson. O pugilista norte-americano capaz de arrancar orelhas à dentada, entre outras habilidades, mandou-nos um belo recado: «R.I.P. Eusebio Black Panther BENFICA forever». É assim mesmo, Tyson.
Em termos de redes sociais, concluindo: Hugo Sá Nogueira & Mike Tyson, o meu respeito.
Em termos de Panteão, não tenho nada a dizer. É uma honraria, certa e indiscutivelmente. Mas é uma honraria que, objectivamente, não acrescenta nada à lenda. Pode acrescentar ao Panteão, isso sim.

EM termos de cachecóis, também tenho pouco ou nada a dizer. Ditada pela emoção, o que é muito respeitável, a ideia de imortalizar a área circundante à estátua de Eusébio, tal como ficou, coberta de cachecóis, até à saída da Luz do funeral, não me parece de excelência.
Se vivêssemos numa utopia, sim, seria talvez uma boa ideia. Mas não vivemos. E engaiolando a área da estátua, o Benfica vai ter certamente aborrecimentos vários e frequentes se não entender como imperioso contratar segurança, e da boa, 24 horas por dia.
O Benfica até tem um Museu, espaço fechado, protegido, onde poderá recriar todo esse ambiente dando-se, se quiser, ao trabalho de encomendar uma réplica da estátua e de a rodear dos cachecóis de todos os clubes, tal como aconteceu, espontaneamente, na chamada vida real quando a multidão se começou a dirigir para o Estádio da Luz depois de conhecida a notícia da morte de Eusébio.

CRISTIANO RONALDO vai ser condecorado pelo presidente da nossa República. A cerimónia deveria ter ocorrido anteontem mas acabou por ser adiada por razões óbvias.
Cristiano Ronaldo é um futebolista excepcional e merece todas as medalhas e comendas que o seu país lhe queira outorgar. Embora não precise de nada disso para continuar a ser o futebolista portentoso que é.
O regime, seja ele qual for, nunca hesitou em condecorar os seus desportistas excepcionais. É uma necessidade. Uma necessidade do regime, qualquer que seja o regime, e não do desportista. É esta a vantagem do desportista nestas ocasiões. Na verdade, não precisa. Já o regime, precisa.
Acontece agora com Cristiano Ronaldo como aconteceu com Eusébio quando jogava. É normal que assim seja. Mas nunca lhes chamem, por favor, “futebolistas do regime” porque esse é o maior dos abusos. E para abusos, francamente, já basta.

VOLTANDO à vida real. No próximo domingo há um Benfica-FC Porto. Nas duas últimas edições do campeonato o título decidiu-se sempre nestes confrontos directos entre os dois grandes rivais.
Nada garante que este ano volte a acontecer a mesma coisa até porque, este ano, o Sporting renasceu para a luta e o que se discutia ferozmente a dois passou a ser discutido a três, o que altera muita coisa.
Pois que seja um bom jogo e que ganhe o Benfica, são os meus votos.
Homenagear Eusébio é, muito simplesmente, ganhar campeonatos, títulos nacionais, títulos internacionais. 
Por isso fico tão alheia a conversas de cachecóis e de panteões.
Viva o Rei!"

Leonor Pinhão, in A Bola

1 comentário:

  1. "Julgava que os direitos de imagem da pessoa falecida pertenciam à sua Família"

    http://corta-fitas.blogs.sapo.pt/5595476.html

    Rui Ribeiro

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