quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Eusébio (I)

"Eusébio morreu num domingo, o dia por excelência, do futebol. Foi sepultado no Dia de Reis, ele que foi um rei do Benfica e no mundo do desporto.
Sou de uma geração que teve o privilégio de o ter visto jogar, de ouvir os relatos com o calor dos seus golos e de ler a BOLA no rescaldo de tantos momentos gloriosos.
Faz, assim, parte do meu reduto memorial indestrutível. Eusébio não foi apenas o fabuloso jogador que está entre os melhores de sempre no mundo, mas também o desportista leal, exemplar, simples, solidário, sem tiques de vedetismo, acima e para além da efemeridade de cada momento.
Inigualável não apenas nos seus incontáveis golos e soberbas exibições, mas no exemplo de trabalho, de dever, de sacrifício, de abnegação, de entrega, de autenticidade, de companheirismo, até de utopia e de sonho. E que sempre soube adicionar à universalidade do consenso que foi capaz de gerar.
Para ele não havia inimigos ou mesmo adversários. Tão-só oponentes naqueles 90 minutos de jogo. Um espírito que bem precisaria de ser reerguido no futebol.
 Escrevo estas palavras e acabo de receber  uma mensagem de um bom amigo sportinguista reveladora deste consenso: «Morreu o jogador que me estragou mais tardes de futebol, mas que me deu também momentos memoráveis! Era um jogador único!»
Num tempo em que a globalização ainda não o era, Eusébio foi uma projecção de portugalidade no mundo global. Ultrapassou o mapa de Portugal e derrubou todos os muros. Os de cá e os de lá fora. Um herói num tempo em que a genialidade e a heroicidade profissional não estavam estupidamente banalizadas e inflacionadas como hoje."

Bagão Félix, in A Bola

O punho que levantou 120 mil na velha Luz

"Eusébio para o centro do relvado e pôs-se a dar socos no ar. 120 mil gritaram «Ben-fi-ca!, Ben-fi-ca!, Ben-fi-ca!» e bateram com os pés no cimento. A Luz estremeceu...

A despedida emocionada a Eusébio no estádio fez-me lembrar o ambiente do antigo inferno da Luz, onde tantas e tantas grandes equipas sucumbiram ao medo cénico e ao ruído impressionante da multidão a puxar pelos encarnados. Eu sou do tempo em que se dizia que o Benfica partia com meio golo de vantagem por conta do terceiro anel. Nas noites europeias o ambiente era ainda mais impressionante: havia electricidade pura no ar. Que ruído prodigioso produzia aquela arqui-bancada!...
Por falar nisso: uma das impressões mais marcantes que guardo de Eusébio ocorreu precisamente na valha Luz, no dia 18 Abril de 1990, tinha ele 48 anos - portanto, já só jogava por fora. E ainda jogava muito, como veremos. O Benfica de Eriksson e Toni (e Silvino; José Carlos, Samuel, Aldair e Veloso; Paneira, Thern, Hernâni e Valdo; Magnusson e Lima) recebia o Olympique Marselha para a 2.ª mão da meia-final da Taça dos Campeões e o estádio, que na altura tinha capacidade para 120 mil pessoas, estava cheio como um ovo. No Velódrome de Marselha, 15 dias antes, eu viria o Benfica sofrer uma derrota extremamente lisonjeira (apenas 1-2) para a dimensão do massacre perpetrado pelos senhores Jean_Pierre Papin, Chris Waddle, Didir Deschamps, Frank Sauzée e Mozer (é veradde, o Mozer). O golo do Benfica foi marcado por Lima, um latagão brasileiro bom de violão trazido pelo empresário Manuel Barbasa. Importa lembrar que esse Marselha era muito forte. E o presidente deles, Bernard Tapie, soube-se depois, tinha artes de o tornar ainda mais difícil de derrotar.
Bom. A vinte minutos do início do jogo, o ambiente na Luz estava morno. Estranhamente morno, tendo em conta a importância da noite. Fosse por que motivo fosse - ansiedade, impaciência, nervoso miudinho, alguma apreensão face ao desastre exibicional de Marselha - os adeptos benfiquistas estavam demasiado calados para o gosto de Eusébio, senhor de muitas e épicas batalhas europeias naquele estádio. Nessa altura Eusébio assistia aos jogos no relvado sentado numa cadeira; diz quem sabe que sofria imenso e prestava atenção a todos os pormenores. Talvez isso explique o que se passou. Subitamente, Eusébio levantou-se, caminhou sozinho para o centro do relvado e pôs-se a dar socos no ar, convocando o Inferno. Que respondeu. 120 mil pessoas começaram a gritar «Ben-fi-ca!, Ben-fi-ca!, Ben-fi-ca!» e a bater cadenciadamente com os pés no cimento, num crescendo operático. O estádio estremeceu de alto a baixo. Parecia um tremor de terra. Eu estava na tribuna de Imprensa a ver aquele espectáculo impressionante ao lado de um jornalista francês do Le Meridional. Nunca esqueci o pasmo dele, os olhos fixos na vidraça, a caneta que ele antes girava distraidamente nos dedos agora a rodopiar cada vez mais depressa. Até que o pobre bufou assim, entredentes: «estamos f...», num desabafo tão humano como a raiva de Eusébio perante o silêncio incompreensível do terceiro anel. O camarada do Le Meridional acertou em cheio: o Marselha lixou-se - pela mão de Vata Matanu, ao minuto 83 (num minuto que anos mais tarde Luisão tornaria a declarar mágico) e o mais engraçado é que o jogo, tirando aqueles minutos arrebatadores por culpa de Eusébio, não foi grande coisa.
Espero que a memória de Eusébio, Grande de Portugal, seja respeitada no jogo grande do próximo domingo. Bolas. Não é pedir muito.

(...)"

André Pipa, in A Bola

PS: O Pipa esqueceu-se do Enzo Francescoli !!! E não foi 20 minutos antes, foi mesmo antes das equipas subirem ao relvado, os jogadores do Marselha alinhados no túnel ouviram bem...!!! Outra imagem que tenho desse momento, era o coração a bater nos ecrãs gigantes...

Estádio ou Panteão?

"Duas questões fracturastes relativos à preservação da memória de Eusébio sobraram dos dias intensos que acabámos de viver, uma exclusiva dos benfiquistas e outra À dimensão da identidade nacional: dar o seu nome ao Estádio da Luz e promover a trasladação dos restos mortais para o Panteão Nacional.
São questões polémicas que não podem ser discutidas de ânimo leve e que recomendam um adiamento por um período de luto prolongado. São dois pontos de perspectiva histórica e, realmente, só deviam ser bordados depois de uma longa maturação, mas a emotividade que afecta todos os envolvidos garante-nos que haverá sempre quem queira alimentar as discussões. Parecem ser muitos os que, neste momento, estão certos de que ambas as decisões são as mais certas e absolutamente justificadas. Mas há diferenças: o estádio é povo, caloroso e feliz; o Panteão é política, fria e interesseira.
Eusébio é a maior figura da história do Benfica e um dos portugueses, mais populares de sempre, mas em ambos os campos de discussão existe um défice de informação e desequilíbrios mediáticos que aconselham prudência. Talvez o caso do universo benfiquista seja impossível relativizar melhor a sua carreira com a influência dos que marcaram o clube na primeira metade do século passado, concluindo-se a homenagem na recente inauguração de outro local perpétuo, o Museu Cosme Damião. Mas na questão do Panteão Nacional, é recomendável que não se repita o processo de Amália Rodrigues, medindo bem a dimensão dos outros portugueses que lá estão deixando a História seguir o seu curso, sem que isso em nada belisque a grandeza de Eusébio. Num caso e noutro, as decisões não deixam espaço a retorno.
Absurdo nesta questão é  factor económico, introduzido pela presidente da Assembleia da República. O custo da trasladação de um português com dimensão para o Panteão nunca poderia ser argumento. Da mesma forma, o Benfica não deveria colocar de lado um nome para o estádio pelo risco de colocar em perigo o eventual negócio do 'naming' comercial.
Segue-se o luto e muito tempo para as ideias se arrumarem. Contudo, a perpetuação através do nome do estádio faz mais sentido pela ligação permanente a um espaço vivo e popular, parecendo mais plausível e adequada, não só por carecer de menos tempo e burocracia, mas sobretudo pela correspondência directa da arte de um grande futebolista com o enorme prazer que proporcionava aos seus adeptos."

Nunca o vi jogar

"Com uma lucidez exacta, o poeta Ruy Belo, disse um dia que 'Fernando Pessoa nunca seria conhecido por tanta gente como Eusébio', para logo acrescentar que 'achava bem'. Numa curta resposta numa entrevista, Ruy Belo, que é juntamente com Pessoa o nome maior da poesia portuguesa do século 20, mas era, em igual medida, um benfiquista apaixonado, esclarecia o ponto: 'A poesia é por natureza difícil. Como o futebol (mas no futebol encontramos) o êxito.'
Faz sentido colocar lado a lado duas artes maiores: a poesia e o futebol. Nas duas, entrevemos a mesma capacidade de tornar simples o complexo. Há numa partida de futebol demasiadas variáveis e obstáculos que aparentam ser intransponíveis, e o segredo está em saber simplificar o jogo. Um grande jogador é isso que faz: encontra escapes fáceis, que nenhum outro foi capaz de vislumbrar. O  propósito da poesia não é diferente, através de palavras concretas, atentas ao pormenor, revelar-nos resquícios da verdade. Em poucos sítios como no futebol e na poesia podemos avistar uma glória absoluta.
Eu nunca vi Eusébio jogar, mas é como se tivesse visto. Sei bem o que uma jogada deslumbrante, uma cavalgada monumental, com uma força que parecia estranha a todos os outros, ou um remate explosivo, podem fazer pela revelação da verdade. Sei que há tanta verdade nos dribles serpenteantes do Maradona como nas palavras enigmáticas de Borges; na perfeição  clássica de Pelé como na afinação suprema da voz de João Gilberto; na altivez superior de Beckenbauer como no romantismo da poesia de Goethe. A diferença está, como bem notou Ruy Belo, que um poeta terá menos possibilidade de alcançar o êxito, revelar essa verdade a uma maior número de pessoas.
Eusébio aproximou-nos a todos nós, portugueses, por escassos instantes, com os seus golos, um pouco mais do absoluto. É essa a matéria de que são feitos os génios. Como é sabido, não se repetem, mas é também o que lhes oferece a eternidade."

A arte como expressão

"Felizmente que os meios audiovisuais de hoje permitem com que fiquemos com um conhecimento mais perto da realidade vivida no início dos anos 60 no futebol em Portugal. O maior legado de Eusébio é o que ele irá transmitir a futuras gerações. Aqueles que nunca o viram jogar ao vivo aperceberam-se da magia deste génio imortal através das repetidas imagens, fotografias, dos muitos golos e de momentos ímpares na sua carreira. Eusébio era a arte do futebol na sua máxima expressão. Há imagens que são verdadeiros documentos históricos - para lá da força do remate, capacidade de aceleração, Eusébio proporcionou fotos de rara beleza, por vezes em situações quase acrobáticas, solto no ar, destemido, provocador para os adversários e intelectualmente honesto na linguagem muito própria do futebol.
O Benfica e Eusébio estão equiparados na sua grandeza. Um fez crescer o outro e quando o Rei deixou de jogar continuar a ser grande. A maneira como ele não se deixou iludir pelo sucesso na dimensão planetária conquistada pelos quatro cantos do Mundo conferiu-lhe aquele estatuto ímpar. A agilidade, poder de arranque, drible, o remate poderoso faziam as delícias dos adeptos, principalmente os do Benfica, depois os da Selecção Nacional e, por fim, da comunidade futebolística internacional. Eusébio enchia os campos de futebol, as ruas e dava alegrais sem se pôr em bicos de pés. Não era actor para esse filme. Ele sabia, melhor do que ninguém, o que valia, o que representava e tinha tanta confiança em si próprio que pedia autorização para marcar as grandes penalidades em finais europeias.
Os campeões têm essa linguagem, por vezes difícil de compreender, que é tornarem as coisas difíceis em muito simples. Como se isso fosse fácil. Não estamos a falar de intuição, pois se isso fosse verdade só daria resultado meia dúzia de vezes. Aquele toque de classe ficou até ao fim. E só quando faleceu, tal foi o rosário de memórias, é que o povo português, dos mais novos aos mais velhos, compreendeu a verdadeira dimensão universal de quem nasceu para ser artista.
Ainda bem que, hoje, o mercado televisivo não se confina apenas a um canal. Eusébio entrou de rompante pelas nossas casas e tivemos oportunidade de rever como ele enganava os guarda-redes. E os amigos também."

Eusébio: não o vi jogar, mas causou-me arrepios

"Nunca vi Eusébio jogar ao vivo. Bom, ainda assisti a umas “peladinhas” em festas de homenagem quando já se tinha retirado e, claro, tive ocasião de o observar durante vários treinos do Benfica, numa altura em que para além de fazer parte da estrutura encarnada se entretinha em mostrar aos craques da época que, embora já de “chuteiras penduradas”, ainda conseguia fazer coisas com que alguns jamais sonharam. Muitos futebolistas de nomeada perderam apostas com Eusébio por duvidarem das suas aptidões ou por considerarem que eram capazes de fazer igual ou parecido...
Mas, no que se refere a jogos oficiais, não vi nenhum. Tenho pena. Quem gosta de futebol, independentemente da filiação clubística ou da nacionalidade, não poderia ficar indiferente à arte de Eusébio, como hoje em dia não pode fechar os olhos às coisas fantásticas que Ronaldo ou Messi fazem em qualquer relvado.
Eusébio, segundo ouvi da boca de muita gente (e confirmei através do visionamento de imagens dos anos 60), aliava uma capacidade técnica própria de um predestinado a uma força física simplesmente invulgar. Era por isso que tanto marcava golos dentro da grande área contrária, depois de driblar vários opositores, como disparava “misséis” indefensáveis a 30-40 metros da baliza. O seu vasto leque de soluções ofensivas dava basicamente para tudo.
Apesar de ter sido um grande, de ter atingido um patamar restrito, estou convicto de que Eusébio seria ainda mais lendário se, por mero acaso do destino, tivesse nascido uns anos depois. José Mourinho disse, poucas horas após o anúncio da morte do Pantera Negra, que Eusébio seria algo de assombrosso se jogasse por estes dias. Concordo em absoluto. Até onde poderia chegar um futebolista tão forte a todos os níveis se, por trás, tivesse um acompanhamento médico mais avançado; se tivesse sido operado ao joelho com as técnicas modernas; se fizesse o trabalho de recuperação que hoje é vulgar em qualquer clube mediano; se tivesse um agente que o soubesse defender/publicitar; se não se desgastasse tanto a disputar particulares sem qualquer interesse competitivo mas que valiam muito dinheiro como Toni hoje recordou a propósito de uma digressão encarnada à Argentina; se tivesse a internet e milhares de meios de comunicação social a difundir os seus feitos; se pudesse disputar mais jogos (e fases finais de Europeus e Mundiais) com a Selecção Nacional; se beneficiasse do acesso à principal prova europeia de clubes sem, antes, precisar de ser campeão nacional? Eusébio foi enorme, mas hoje em dia seria muito, muito maior ainda.
No desempenho da minha actividade profissional recordo um episódio que me ajudou a perceber o tal patamar a que Eusébio chegou. Em Dublin, capital da Irlanda, fiquei arrepiado em Lansdowne Road, pois jamais pensei ver, num estádio de futebol, adeptos a prestarem uma homenagem tão sentida a alguém que pertencia... ao adversário.
Foi a 26 de Abril de 1995, numa altura em que Portugal e Irlanda disputavam a qualificação para o Europeu de 96. Poucos minutos antes do arranque da partida, num estádio lotado de adeptos locais, ouviu-se através da instalação sonora que estava presente uma figura do futebol mundial, alguém que tinha brilhado no Mundial de 1966. Quando se escutou o nome de Eusébio, milhares de irlandeses levantaram-se de pronto e desataram a aplaudir. Fiquei incrédulo. Duvido que o público tivesse vitoriado de uma forma mais eloquente alguém da casa. O momento foi tão invulgar que os irlandeses fizeram questão de que Eusébio fosse ao centro do relvado e ele, embora contrariado, acedeu. O estádio não parava de aplaudir, enquanto os futebolistas locais, imóveis e com as mãos atrás das costas, mostravam o seu respeito com tão ilustre visitante. Os portugueses, jogadores e jornalistas, ficaram atónitos com a cena (que obrigou o encontro a começar atrasado), mas todos os que como eu não tiveram oportunidade de ver o King em acção perceberam, naquele dia, quem era Eusébio da Silva Ferreira."

Quem é histórico?

"A propósito da apaixonante edição que A BOLA publicou no dia seguinte à morte de Eusébio, dei por mim a participar em discussões nas redes sociais sobre a relevância histórica do pantera negra.
À ideia de que Eusébio é um figura histórica dificilmente repetível, foi-me contraposto que a sua relevância se cingia ao futebol.
Se fôssemos todos computadores e a nossa vida uma folha de cálculo - como muitos políticos e economistas parecem desejar - seríamos unânimes. Dados palpáveis: Eusébio não fez revoluções; não comandou tropas em guerras alguma; o único caminho marítimo que conhecia era para a Trafaria e nem foi ele a descobri-lo... Diríamos, pois: foi só um grande jogador de futebol.
Em todo o planeta a sua morte foi notícia de primeira página de jornais. E é por isso que, pegando numa ideia do António Simões para falar do Ronaldo, hoje digo que Eusébio está entre os portugueses mais conhecidos de sempre, numa lista com Ronaldo, José Saramago, Amália, Vasco da Gama e (a ser português) Cristóvão Colombo.
Se isto não faz de Eusébio uma figura histórica, então nada fará. A história não se faz só de guerra, economia e política.

PS: Assunção Esteves aproveitou o funeral de Eusébio para dizer que é muito caro trasladá-lo para o Panteão. Centenas de milhares de euros, diz. Ponto 1: nunca a vi preocupada com os 679 mil euros que a AR pagou em 2013 aos grupos parlamentares para despesas com assessorias; Ponto 2: custa a quem? Se o Panteão é do Estado, é como transferir dinheiro da minha conta A para a B, certo?"

Rogério Azevedo, in A Bola

O ídolo do ídolo

"Muito se escreveu sobre Eusébio nestes últimos dias. Conquistada a eternidade nos anos 60, o king foi ídolo de milhões. De Madrid a Londres, do Rio Janeiro a Tóquio - como as inúmeras homenagens internacionais comprovaram - ninguém ficou indiferente à pantera que levou tanta gente a apaixonar-se pelo melhor jogo do mundo.
Mas antes de navegar por esses mares nunca dantes navegados por um desportista Português, o Senhor Eusébio foi... o menino Eusébio. E como todas as crianças tinha um ídolo. Chamava-se Fernando Lage, maestro que nos anos 40/50 jogou no Desportivo de Lourenço Marques e despertou a cobiça de Benfica, Sporting e FC Porto. Mas que nunca quis deixar a terra mãe. Era para o ver jogar que Eusébio se esgueirava rumo ao campo da sua equipa do coração para, com a cara vincada pelo gradeamento, ficar hora e meia a deliciar-se com os toques mágicos que um simples ser humano conseguiu imprimir a uma bola de futebol.
Toda a gente tem uma história com Eusébio. A minha começa ali, na Mafalala, quando Eusébio tinha oito anos. Foi vislumbrando nele esse olhar maroto de criança que pela primeira vez vi ao vivo o Rei. Pronto, não foi bem na Mafalala: o restaurante chamava-se LM, que até é abreviatura de Lourenço Marques, mas fica no Cacém. Foi ali que, em 2002, Eusébio ajudou a promover uma homenagem a Lage, então com 75 anos. E foi impressionante o que vi nesse dia: a lenda sobre quem ouvira centenas de histórias do outro mundo era, afinal, simplesmente... humano. Eusébio estava em lágrimas. O seu herói estava ali, à sua frente. Venerou-o, abraçou-o, beijou-o, pedindo-lhe tantas e tantas vezes que contasse de novo as histórias do Desporto daquele tempo.
Naquelas três horas, Eusébio tinha outra vez oito anos e estava novamente na Mafalala. «Se viesse para Portugal, tinha sido maior do que eu. Falo sempre no Di Stéfano mas o meu querido Lage está ao mesmo nível», disse-me o king nesse dia. Jamais esqueci aquele olhar não terno e tão forte, do tamanho do mundo. O mundo que, nos últimos dias, soube curvar-se de novo ante a grandeza de Eusébio e, simplesmente, dizer-lhe: obrigado!"

João Pimpim, in A Bola

Valores? Só números...

"Admito que a senhora presidente da Assembleia da República já sinta vergonha. No dia em que o povo, com a espontaneidade de que só ele é capaz, prestava comovisíssima homenagem à memória de um dos seus que, pouco instruído (ai, dr. Mário Soares, que desastrada persistência nessa tecla!), mas enorme em talento e raça, se elevou a gigantesca bandeira de Portugal admirada em todo o mundo, eis efémero ocupante do 2.º mais elevado cargo do Estado na pressa do dislate: frisar que transladação do corpo de Eusébio para o Panteão Nacional custaria muito dinheiro... Chocante/degradante: mais um exemplo do que vai na cabeça, porque na alma, de quem actualmente dirige (?) Portugal, vassalos dos mandantes na Europa e não só... Que se danem valores humanos/morais, até patrióticos (acabaram com o feriado da independência de Portugal!); que se danem as pessoas (perdão, só a imensa maioria do frágil Zé Povinho). Tudo reduzido à única coisa que veem: números. Insignificante: a senhora presidente da AR até se enganou (terá sido da pressa...), sobredimensionando o tal custo. Questão de fundo: decidir se honra de sepultura ao lado de 4 presidentes da República, 4 escritores e general assassinado pela ditadura deve ser atribuída a futebolista fabuloso embaixador do país em todo o Mundo. Sendo certo que essa honra foi dada à fadista grande embaixatriz. Dimensão planetária de Eusébio é muitíssimo superior à de Amália (futebol vs. fado).
Amália e Eusébio, bandeira de Portugal, não de um regime. Daí a enorme admiração que tinham um pelo outro. Tremendo sorte a minha numa madrugada em Viena de Áustria, dealbar de dia rumo à final Milan-Benfica. Numa sala de hotel, assisti a hora e meia de borbulhante bate-papo entre aqueles monstros de talento. Que delícia! Pormenor: Amália tratava Eusébio por tu; Eusébio, que sempre foi tu cá-tu lá com quase toda a gente, inamovível no respeito pela deusa: «Dona Amália.»

Santos Neves, in A Bola


Inesquecível !

"Os Jogo Olímpicos de Roma tinham terminado havia um ano. Muito embora a sensacional saída de blocos do Alemão Armin Hary, que valera a primeira medalha de ouro europeia na prova rainha dos Jogos, os 100 metros, me tivesse quase deslumbrado e haveria de marcar as minhas futuras opções desportivas, naquela altura o meu mundo desportivo girava em torno do futebol.
Estávamos a 5 de Setembro de 1961. A equipa de futebol do Benfica, utilizando ainda o onze que lhe dera o título europeu, vencera, na véspera, o Peñarol, na primeira mão da Taça Intercontinental, e partia para um particular na Bélgica.

Encontrava-me acidentalmente no aeroporto quando vejo, ali a dois passos, todos aqueles que se tinham recentemente sagrado Campeões Europeus. Quase não dava para acreditar!
Guardo ainda, qual preciosidade, o conjunto de autógrafos conseguidos daqueles ídolos dos meus 13 anos.


Entre eles o de um jovem ainda pouco conhecido, o qual escreveu, com uma linda caligrafia, uma palavra que, dentro em pouco, seria mágica: Eusébio!
Na Portela, naquela tarde, digamos que me encontrei com o futuro do futebol Português. Em Amesterdão, meses mais tarde, os magos  futebolistas do Real Madrid haveriam de o conhecer também, abrindo-se-lhe, desde então, as portas do Mundo.

No Mundial de 1966, em Inglaterra Eusébio maravilhou-nos, atingindo, talvez, o expoente máximo de uma carreira plena de pontos altos e muito altos, que o transformaram num verdadeiro mito.
Haveria de me cruzar com ele, muitos anos mais tarde e por diversas vezes. Nomeadamente em Paris, na sede da UNESCO, quando o Comité Internacional de Fair Play, em face da sua conduta no desporto e na vida sempre no mais elevado espírito de Fair Play, lhe concedeu o seu máximo troféu, ou quando a Confederação do Desporto de Portugal, em 2010, o distinguiu como uma das figuras do século.
Nada é perpétuo, mas o Senhor Eusébio é inesquecível!"

Carlos Cardoso, in A Bola