segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Eusébio

"Havia nele a máxima tensão.
Como um clássico ordenava a própria força,
sabia a contenção e era explosão,
havia nele o touro e havia corça.

Não era só instinto, era ciência,
magia e teoria já só prática.
Havia nele a arte e a inteligência
do puto jogo e sua matemática.

Buscava o golo mais que golo: só palavra.
Abstracção. Ponto no espaço. Teorema.
Despido do supérfluo rematava
e então não era golo: era poema."

Manuel Alegre, in A Bola

Eusébio, o Rei da minha República

"Há muitos anos, em meados da década de oitenta, estava eu a dizer mal da vida no posto médico do Benfica, a suar as estopinhas por causa de uma infiltração no joelho que o massagista da equipa, Hamilton Marques da Pena, me ia aplicar, quando entrou Eusébio, vindo da sauna, que ficava ali mesmo ao lado. «Estás com medo?», perguntou, «isso não custa nada, passei a vida a ser infiltrado», disse-me com um sorriso de menino nos lábios. Depois, mais a sério, lá confessou que «não dói nada, não é bem assim» e contou-me que cada vez que era infiltrado «mordia uma toalha para aguentar melhor a dor.» Acto contínuo passou-me uma toalha e, solidário, ficou comigo até que a agulha e a seringa cumprissem a sua missão...
Anos mais tarde, no início da minha carreira de jornalista, pedi-lhe que contasse a sua carreira através das múltiplas lesões que lhe transformaram os joelhos nas massas disformes que o obrigavam, nos últimos tempos, a precisar de cadeira de rodas para se deslocar nos aeroportos. Foi um depoimento arrepiante, em que o sacrifício em prol de um bem maior parecia não conhecer limites. No fim, uma explicação: «Nunca fui capaz de dizer não ao Benfica!»
Quis o destino que os nossos caminhos se cruzassem muitas vezes, nas últimas duas décadas, tomando eu por privilégio cada momento com ele passado. Tive oportunidade de ver Maradona olhá-lo como quem olha um ídolo, Pelé falar dele com a admiração que só se tem por um grande rival, Di Stéfano (o seu herói) amparar-se nele, a brincar com as dificuldades físicas de ambos, Beckenbauer pedir-me, durante uma entrevista em Munique, para falar com ele através do meu telemóvel, e Ruud van Nistelrooy, de outra geração, dirigir-se a Eusébio e, num português correctíssimo, dizer-lhe, «como está senhor Eusébio, é um prazer falar consigo.» Também fui testemunha, numa gala do Golden Foot, da satisfação do príncipe Alberto do Mónaco quando Eusébio lhe foi apresentado. Fiquei com a sensação que só por vergonha não lhe pediu um autógrafo...
Pois este Eusébio da Silva Ferreira que tinha o mundo a seus pés era um king do futebol e um rei da simplicidade. É verdade que nestes últimos anos ficou, fruto da debilidade física que ia sentido, mais impaciente e irritável, mas aquilo que lhe ia na alma tê-lo-á guiado ao Céu. Era sincero, amigo, em muitas fases, até, bom de mais, ficando à mercê de algum oportunismo. Mas, se há traço que caracterize Eusébio era o sentir-se, não o sendo, igual aos demais, e fazê-los sentirem-se iguais a ele.
Eusébio, o Rei da minha República..."

José Manuel Delgado, in A Bola

Eterno rei

"Luto nacional. Evidentemente. Homenagem do Estado que respeita arreigado sentimento do povo pelo FABULOSO embaixador de Portugal em duríssimos tempos de sermos país isolado do mundo, entre desconhecimento e profundo desprezo público. Eusébio, menino pobre nascido e criado em paupérrimo bairro periférico da capital moçambicana, rasgou todas as fronteiras, tornou-se ídolo com dimensão planetária, principal concorrente de Pelé, o deus do Brasil então máxima potência do futebol. Eusébio teve mesmo se der puro fenómeno para tamanho êxito em dita missão impossível, mantendo-se sediado num país pequenino e mergulhado na tragédia do «orgulhosamente sós», a par de serem escassas as transmissões televisivas de futebol, não havendo internet e toda a panóplia de difusão hoje existente. Também por isso, Eusébio, monstro de talento e raça, foi... único. Gigante do futebol, ergueu-se a enorme bandeira de Portugal. De 1962 até ao 25 de Abril, Portugal, no mundo, foi... Eusébio. Tão extraordinária a marca do futebolista Eusébio, e da sua qualidade humana, que permanece indelével quase 40 anos após o final da carreira, atravessando gerações. Fantástica popularidade mundial, pedindo meças à de que hoje desfrutam Ronaldo e Messi, com intensa TV, profusão de vídeos e marketing. E nunca o deixaram partir para Itália, Inglaterra, Espanha...
Houve grandes jogadores que duvido também fossem no futebol actual. Eusébio, de certeza, continuaria hoje a sr gigante. Técnica, força, velocidade (tremendo poder de aceleração), diabólico remate (fortíssimo e certeiro), ganas de vencer, vencer, vencer. Hoje, dinheiro para lhe pagar... só ao nível de Ronaldo e Messi, no mínimo.
Eusébio na superelite do futebol mundial (não há muito, no melhor onze de todos os tempos, eleito pela FIFA, lá estava rei Eusébio). Ele é dos, escassos, que nunca perderão o trono. Emocionalmente arrepiante: ontem, o M. United colocou a bandeira de Portugal (a meia haste) e o público levantou-se num intenso aplauso de homenagem a um ídolo mundial. Hoje, o Real Madrid jogará com braçadeira de luto. Eterno rei. Quem, um dia, conseguirá esta reacção de históricos adversários?"

Santos Neves, in A Bola

Só os génios são tão simples

"Estava a fazer o exame de admissão ao ciclo, em Beja, quando o vi destroçar a Coreia do Norte, no Mundial de 1966. Um ano depois, já a viver em Olhão, vi-o calar o Comunale Vittorio Pozzo, em Turim, com um golo de livre directo de trinta metros, que deixou Anzolin, o guarda-redes da Juventus, de boca aberta. Era genial. Único. Mais tarde, já jornalista de A BOLA, conheci-o pessoalmente. Por essa altura as chuteiras do king estavam penduradas, mas ele acompanhava a equipa do Benfica, fazia tudo para não perder o contacto com a bola, a relva e os jogadores.
Lembro-me de uma vez, num estágio do Benfica em zona montanhosa da Áustria, era treinador Jupp Heynckes, de ver uma família alemã, pai, mulher e três filhotes, sozinha na pequena bancada onde se sentavam os jornalistas. Tinha feito mais de mil quilómetros para ver Eusébio, pela simples razão de que o king, em tempos idos, jogara contra o velho alemão e este queria apresentá-lo à família. Foi uma festa. Eusébio reconheceu-o. Tinha uma memória notável, até para os adversários. 
E era de uma simplicidade maravilhosa. Só os génios são tão simples. Uma vez foi comer uma caldeirada de peixe comigo, mais o Vieira Dias e o comandante Prata, a bordo de uma fragata do Tejo, na Moita. Depois fomos beber café ao Rosário. Disse-lhe que ali vivia um antigo defesa-esquerdo do Barreirense, o Patrício. «O Patrício?! Quero vê.lo! Foi o defesa mais difícil de passar que encontrei! Grande amigo!» Corremos tudo e o Patrício, logo nesse dia, não estava lá.
O king tinha inimigos? Não, não acredito. Quando em 2000, no Europeu disputado na Holanda e na Bélgica, via Eusébio entrar em campo antes de Figo e C.ª e o estádio levantava-se como uma mola a gritar pelo seu nome, até me arrepiava. Como me arrepiei ontem, manhã cedo. Adeus king."

Carlos Rias, in A Bola

Obrigado, 'king'

"Fiquei destroçado quando às 5.30 da manhã um amigo me ligou a dar conta da morte do King. Uma horrível maneira de despertar. Eusébio fazia o favor de ser meu amigo, pelo que é com emoção que escrevo estas linhas.
Tudo em Eusébio teve a ver com uma grande vivência extra. Uma vivência que envolvia, por exemplo, Hilário, lenda sportinguista, conterrâneo de Mafalala e irmão de peito. Inseparáveis para lá da última hora. Ou do saudoso Vítor Damas, outro grande amigo comum, meu antigo companheiro no futebol juvenil do Sporting. Eusébio e Damas eram também inseparáveis. Adversários que gostavam das mesmas coisas. Vão com certeza partilhá-las, agora, lá em cima, com um abraço e seguramente uma bola de futebol. Talvez Damas a rematar e Eusébio a defender, para variar um bocadinho.
Juntando a estes nomes os de José Torres, Jaime Graça, Costa Pereira, Santana, Chico Faria, Vitorino Bastos, Bento, Carlos Alhinho, Jacinto João, Germano, Cavém, José Águas, Yazalde já formaram seguramente uma boa tertúlia, uma grande equipa.
Eusébio deu-me o privilégio de uma grande amizade, muitas vezes cultivada à mesa da Ti Matilde. Sempre disponível para me conceder entrevistas. E sempre com a simpatia de me comunicar todos os seus passos e todos os convites que ia recebendo.
Felizmente existem imagens que os meus filhos viram repetidamente e que as futuras gerações vão poder ver também. Eusébio foi o maior de todos os tempos. Para mim. Um homem sempre, ligado à equipa de A BOLA. Ou a equipa de A BOLA sempre ligada a Eusébio.
Sabia da minha preferência clubista e chamava-me «o amigo lagarto». Éramos da mesma geração e usávamos a mesma linguagem. Sempre com muito respeito. Até um dia destes, grande King Eusébio!"

Vítor Cândido, in A Bola

Eusébio... O 'rei'

"Esta é um dos temas que ninguém gosta de abordar, mas a vida é mesmo assim. Morreu Eusébio da Silva Ferreira. A triste notícia correu o Mundo de forma muito rápida.
Portugal está de luto. Portugal está mais pobre. Eusébio era e vai continuar a ser uma das maiores referências do desporto universal. Deu grandes alegrias a Portugal e aos portugueses, marcou golos absolutamente fabulosos e mostrou sempre uma enorme capacidade de sofrimento, jogando muitas vezes de forma condicionada. Mas poucos ou nenhuns davam conta.
Uma velocidade invulgar, uma força da natureza que tinha na baliza adversária o seu alvo preferido. Eusébio era um vencedor, um campeão, um lutador, alguém que venceu as dificuldades e adversidades da vida transformando-as em oportunidades. Um jogador explosivo, um embaixador da nossa selecção e de Portugal no Mundo.
Além do Benfica, Eusébio tinha uma paixão enorme pela nossa selecção onde tinha lugar cativo. Motivava os mais novos e dava conselhos aos que chegavam.
Tive o privilégio de assistir a alguns jogos a seu lado e testemunhar a paixão e a intensidade com que vibrava pela equipa das Quinas, gritando muitas vezes aos avançados um simpático «chuta, pá», pois ele mesmo na bancada e longe do relvado sofria com a toalha branca enrolada na mão e queria que Portugal fosse grande.
Além do jogador importa salientar o homem humilde, generoso e solidário sempre com boa disposição apesar das adversidades da vida. No auge da carreira, a sua atitude dava esperança a um país que tinha imensos problemas e vivia com enormes dificuldades.
Projectou Portugal no Mundo durante imenso tempo. Um Campeão, um verdadeiro Campeão... Portugal está mais pobre. Obrigado, Eusébio..."

Hermínio Loureiro, in A Bola

Eusébio!

"E, de repente, o Rei deixou-nos...
Tinha 12 anos quando pela primeira vez ouvi falar dele. As informações que então nos chegavam de Lourenço Marques davam conta de um miúdo genial, que nascera dotado de invulgar talento para a arte do futebol e que, nos pelados moçambicanos, já deliciava plateias e cativava adeptos como poucos. Mesmo descontando os exageros que eram habituais acompanharem estas e outras notícias, ainda para mais "naquele" tempo em que o rigor deixava muito a desejar, pressentia-se - era mesmo esse o sentimento dominante - que algo de diferente e de muito importante estava aí para "rebentar".
Os grandes clubes portugueses, Sporting e Benfica sobretudo, atentos ao desabrochar das pérolas africanas, já há muito se digladiavam, tentando cada qual garantir os serviços do promissor jogador e recordo-me bem do que a Imprensa teorizava sobre o assunto, em crónicas, opiniões ou simples "pontos de vista", enchendo páginas e páginas de jornais e revistas, tendo por mote o "caso Eusébio". Aparentemente, o Sporting estaria em vantagem, dada a militância de Eusébio no Sporting de Lourenço Marques, filial dos "leões" de Lisboa.
Seria, contudo, o Benfica a conseguir o passe do jogador, numa jogada de antecipação do seu representante na capital de Moçambique. Mas nem assim o caso esmoreceu. O Sporting retaliou e houve que aguardar ainda cinco meses para que os tribunais, depois de muitas demandas, dessem razão aos encarnados e Eusébio - entretanto "resguardado" em Lagos, na casa de férias do dirigente do Benfica, Domingos Claudino - pudesse finalmente aparecer e treinar na Luz.
Das "reservas"do clube, onde se estreou frente ao Atlético, à titularidade na equipa - quer na Taça (V.Setúbal), quer no campeonato (Belenenses) - foi uma questão de dias, sempre com a particularidade de marcar o seu golo. No defeso, teve ocasião de brilhar no Torneio Internacional de Paris (três golos ao Santos), terminando o ano como indiscutível (e marcador...) na selecção nacional. Em cinco meses, a estrela moçambicana confirmara o seu estatuto.
Posso dizer que sempre segui com muita atenção a carreira de Eusébio, talvez espicaçado pela frase da velha raposa Guttmann ("é ouro, é ouro!"), quando se apercebeu das qualidades do novo recruta. Mas, na 1ª época, a de 61-62, não tive grandes ocasiões para o ver actuar. O "pantera negra", depois de um início fulgurante, saiu de cena por uns meses para ser operado ao joelho esquerdo, naquele que foi o início do seu calvário.
O flagelo das lesões obrigá-lo-ia a sete operações, seis das quais ao seu muito martirizado joelho esquerdo, e a constantes "tratamentos de choque" que terão posto em causa a sua correcta reabilitação. Mas nem por isso a sua trajectória se desviou do caminho triunfal. O título de campeão europeu, frente ao Real Madrid, em 62, abriu-lhe as portas da fama e a grande actuação no Campeonato do Mundo em Inglaterra projectou-o em definitivo na alta roda mundial.
O seu extraordinário currículo não cabe aqui nesta crónica. Dir-se-á que foi "apenas" campeão nacional por 11 vezes, ganhou cinco Taças de Portugal, foi campeão europeu e foi o melhor jogador e marcador da selecção na campanha do Mundial-66, em Inglaterra, onde Portugal alcançou o 3.º lugar. Os quatro golos marcados à Coreia do Norte (5-3) são, ainda hoje, referência obrigatória, mas será bom não esquecer os golos decisivos e espectaculares que apontou em Ancara e Bratislava, na fase de qualificação, que tornaram possível a grande saga dos Magriços.
Como marcador, foi ainda o maior de sempre do Benfica e o melhor da equipa e da selecção nacional, considerando a média resultante de jogos e golos subscritos. No plano internacional, foi por duas vezes o melhor marcador europeu e eleito uma vez o melhor futebolista do velho continente. Já no final da carreira, representou o Beira-Mar e o U. Tomar, além de ter jogado algumas épocas no campeonato dos Estados Unidos.
Restará dizer que, como ser humano, Eusébio foi também um exemplo. Um grande exemplo. De uma simplicidade e simpatia comoventes, dele se recordam os gestos de "fair-play", dentro e fora dos relvados, as suas atitudes de companheirismo e solidariedade, a sua constante disponibilidade e compreensão. O maior símbolo do futebol português e do desporto em geral, um campeão que galvanizou e arrastou multidões, era também um homem simples e bom. Que descanse em paz!"

A última conversa com o Rei

"Terá sido a derradeira entrevista de Eusébio, resultado de uma conversa que requeria memórias do Mundial de 1966 e previsões para o de 2014. O Rei estava satisfeito porque os exames recentes tinham sido animadores e entusiasmou-se com a hipótese de testar a prodigiosa capacidade para acumular informação, talento que estimulou até ao fim dos seus dias.
Nesse diálogo criticou a decisão da FPF em aceitar a troca de estádio para o jogo com a Inglaterra; explicou as lágrimas no fim da meia-final e desvendou por que foi pouco efusivo nos festejos do terceiro lugar. Pensou tão grande que nem a vitória sobre a URSS atenuou uma dor para a vida: não ter sido campeão do Mundo. E ainda expressou a opinião de que Ronaldo será um justo vencedor da Bola de Ouro, pondo fim ao clima tenso entre ambos. Disse ainda que a Selecção Nacional teria muito a ganhar se CR7 chegasse ao Brasil na condição de melhor jogador do Mundo, à semelhança do que sucedeu com ele em Inglaterra, no Mundial de 1966. Estarão juntos em Zurique, no próximo dia 13.
A meio fez questão de saber o objectivo do diálogo. Reagiu com indiferença à primeira parte da explicação (todos os sábados, e até ao início do Mundial, Record publicará experiências na grande montra contadas na primeira pessoa) mas não resistiu ao sorriso feliz quando confrontado com a opção de que o primeiro teria de ser o maior, o Rei do futebol português. Apesar de ter mantido uma corte que o adorou pelo tempo fora, gostou até ao fim de sentir o respeito, a admiração e o carinho dos outros. Mesmo na condição de ídolo imortal. E intemporal.
Eusébio abandonou o grande palco há mais três décadas, mas não perdeu a aura de mito marcante para gerações que só o conhecem de ouvir falar. O seu património emocional e sentimental excede os 15 anos de actividade, prova de que não foi apenas herói de um tempo mas acedeu ao lote daqueles que se transformam em património da humanidade. Nenhum outro jogador reuniu génio, peso social, sentido de representação e reconhecimento perpétuo à escala planetária, razão pela qual, desde o dia em que pendurou as botas até à madrugada em que partiu, foi a memória de um talento arrasador e figura invencível às agressões do tempo. Eusébio foi e será sempre o fenómeno que, sustentado pela paixão de um povo, excedeu o futebol, o desporto e se universalizou.
Na tarde da última conversa, da qual resultou a entrevista publicada a 14 de Dezembro, a despedida entre nós não foi como as anteriores. Porque há atitudes difíceis de explicar – provavelmente por senti-lo debilitado há muito tempo –, talvez tenha sido o instinto a alterar o comportamento: levantei-me, abracei-o por detrás e, com ele sentado à mesa, agradeci ter-me recebido na hora do seu almoço e dei-lhe um beijo na cabeça. Eusébio foi meu ídolo, meu herói e acabou sendo meu amigo. Viverá para sempre no meu coração."

1966

"O meu primeiro ídolo no mundo da bola chamava-se Diego Armando Maradona. O pequeno argentino fez parte da seleção das pampas que jogou o Espanha’82. Não me recordo desse Mundial, pois estava mais preocupado com outras coisas. Como aprender a andar. Mas vi-o a fazer coisas extraordinárias no México’86 e eu tentava imitar tudo no recreio da escola.
– Ó Vasco, não sejas fuço e passa a bola!
– Cala-te, não vês que estou a imitar o golo que o Maradona marcou à Inglaterra?!
– Então porque é que não foi golo?
– Porque o guarda-redes deles é melhor que o Peter Shilton.
Nessa altura, a pergunta que mais se fazia no mundo da bola era “Qual o melhor de sempre? Maradona ou Pelé?” A resposta que eu mais ouvia em casa era dada pelo meu pai: “Eusébio.” Recordo perfeitamente o Natal em que recebi como presente uma cassete VHS com os melhores momentos do Mundial de 1966. (Um pequeno aparte para o leitor do Record mais jovem: não sabeis o que é uma cassete VHS? Ide ao Wikipédia e pesquisai.) Vi a cassete uma vez. E outra. E mais outra. Fiquei viciado naquilo. Todos os sábados, via a cassete assim que acordava. E se tinha as imagens na TV, tinha o prazer de ouvir os comentários do meu pai, na cadeira ao lado, comendo as suas torradas e bebendo o seu chá Li-Cungo. Era o meu Gabriel Alves particular.
– O quê? Nós ganhámos ao Brasil neste Mundial, pai?
– É verdade, filho..
 – Mas eles eram campeões do Mundo e tinham o Pelé!
– Mas nós tínhamos o Eusébio. O meu momento preferido deste filme do Mundial’66? O resumo do jogo contra a Coreia do Norte. Claro que os comentários do Gabriel Alves lá de casa, de roupão cheio de migalhas de torrada, ajudavam muito.
– Filho, estava em casa da Tia Maria Teresa e do Tio Joninho a ver este jogo. E à meia hora estávamos a levar 3 secos. Toda a gente lá em casa calada. E eu disse “se marcarmos um antes do intervalo, ganhamos isto!” O teu pai é que sabe!
Ver o sorriso do meu pai a ver aqueles 4 golos do Eusébio era tudo para mim. Mas eu já sabia que ele se ia levantar e ir para cozinha. Tudo para não ver o resumo da meia-final contra a Inglaterra. O meu pai recusava-se a ver esse jogo.
– Eles é que tinham de ir a Liverpool, não éramos nós que tínhamos de ir a Wembley! A viagem cansou-nos! E perdemos!
Sim. Perdemos. Mas o futebol ganhou tanto com Eusébio.
Partiu ontem. E ninguém lhe tira o lugar na equipa dos melhores de sempre. O melhor, para o meu Gabriel Alves particular."