terça-feira, 18 de novembro de 2014

No Inverno também havia Luz

"A propósito de Eriksson e da sua biografia, memórias de uma visita histórica do Liverpool (antes de Eriksson) e de outras que apesar da intempérie faziam encher o velho estádio que o treinador sueco nunca esqueceu.

NA passado semana, na BTV, tivemos com o Toni uma agradável conversa sobre Sven-Goran Eriksson, seu bom amigo, grande treinador da história do Benfica, e que acaba de lançar uma auto-biografia cuja versão portuguesa ficou ao cuidado da minha tradução.
O livro é interessante e vale a pena ser lido, e a conversa foi-se perdendo em pormenores que me levaram a escrever esta crónica.
Primeiro porque, ao longo de toda a obra, Eriksson esgota-se em elogios ao velho Estádio da Luz, esse monstro de betão que durante anos aterrorizou grandes equipas da Europa. Mesmo depois de ter partido para a Roma e para o campeonato italiano continuou, segundo as suas próprias palavras, a explicar aos seus novos jogadores que não havia ambiente no «calcio» que fosse sequer comparável ao da velha Luz.
Em segundo lugar porque veio à baila as tremendas enchentes de 70, 80, 100 ou 120 mil espectadores nas grandes noites europeias e em tantos dos jogos do Campeonato Nacional e lamentou (eu, pelo menos, lamentei-o e continuo a lamentar) que a nova Luz em jogos decisivos para a Liga dos Campeões não vá além de 30 mil pessoas. Ou seja, um «Inferno» apagado.
Um dos tele-espectadores que entrou em directo no programa, justificou as ausências pelo preço dos bilhetes (compreensível) e por algum desinteresse pela prova (essa agora?), além das condições climatéricas que, na noite do confronto com o Mónaco, por exemplo, não eram das mais simpáticas (homessa!?).
Eu era muito miúdo quando comecei a ir com amigos à velha Luz. Por ser um apaixonado pelo Futebol internacional, ia também a todos os jogos europeus que pudesse, também em Alvalade e, de quando em vez ao Restelo. Depois, as recordações começaram a correr para trás e, já com o programa acabado, fiquei com o Toni a falar de noites de tempestade em pleno Inverno e na qual a Luz se acendia. Os adeptos eram, nesse tempo (tempo de Tempo e tempo apenas de tempo) mais solidários com os jogadores do que nunca. Enquanto uns se encharcavam até aos ossos no relvado e na lama, os outros sofriam a bom sofrer nas frias bancadas de cimento, enregelados, a água correndo-lhes por dentro das roupas, pelas camisolas e pelas calças transformando os sapatos em poças alagadiças e disformes. E não se calavam, não arredavam pé, não tiravam os olhos do jogo enquanto as bátegas os vergastavam inclementes.
Foi assim há tanto tempo? O público do Futebol português aburguesou-se com tamanha rapidez?

Chuva, sempre, sempre chuva!
A nossa conversa foi recuando para antes de Eriksson exactamente porque Eriksson confessa que uma das suas grandes desilusões no seu tempo de Benfica se chamou Liverpool. E caiu num dia inclemente de Março de 1978. Mas o povo não faltou na Luz, apesar da tempestade.
Na minha adolescência dos Olivais Sul havia um grupo de compinchas que se dedicava exclusivamente à prática do que apelidávamos de «futabol à ingalesa» - quem não fizesse «carrinhos», não soubesse tirar centros tensos para a cabeça dos avançados, teimasse em dar mais do que um toque na bola e não ensaiasse de vez em quando uns pontapés de moinho ou de bicicleta não tinha lugar na equipa. Por isso, quando no dia 1 de Março, o Liverpool de Jimmy Case e Terry MacDermott, Callagham e Steve Heighway e Kenny Dalglish desembarcou em Lisboa para defrontar o Benfica, não houve cá intempérie que nos afastasse da Luz.
Toni jogou nesse encontro, o primeiro dos quartos-de-final da Taça dos Campeões. O treinador era John Mortimore. Bento, Bastos Lopes, Humberto Coelho, Eurico e Pietra estavam na defesa. Shéu, e mais tarde Mário Wilson (filho) ao lado de Toni; Celso, Nené e Cavungi na frente.
Convenhamos: era uma luta desigual. Esse Liverpool foi, quanto a mim, o melhor de sempre da história do clube (embora já sem o Kevin Keegan da época anterior) e o Benfica muito longe disso, vira-se e desejara-se para eliminar até então o Torpedo de Moscovo e o BK 1903. Na segunda «mão» perdeu por 1-4 em Anfield.
Mas era um acontecimento para não mais se apagar da nossa memória - Benfica contra Liverpool. Um confronto que se repetiria por mais algumas vezes, quase a ponto de se tornar um clássico das provas europeias.
Chovia e chovia e chovia. Nené ainda fez o 1-0, mas Jimmy Case e Mark Hughes dariam a volta ao resultado, com muitas culpas para Bento que nunca foi feliz contra o Liverpool - e assim de repente recordo-me do golo em Anfield Road encadeado pelos holofotes e outro por debaixo das penas, na Luz, este sim já com Eriksson (e também em noite de tempestade).
Chalana estava aleijado e ficou de fora. Vìtor Baptista com as suas camuecas e sob alçada disciplinar. Não havia Benfica que chegasse para o Liverpool campeão da Europa, muitas vezes esquecido injustamente quando se fazem as listagens das melhores equipas de todos os tempos. Quem foi à Luz não esqueceu. Nem a chuva, nem o jogo, nem o ambiente em redor dele. Lembro-me de outras visitas do Liverpool - acho que estive presente em todas. Na vitória por 1-0, com golo de «penalty» de Maniche logo no início da partida, voltou o céu a desabar sobre o velho estádio. Parece que os ingleses atraíam o mau tempo. Mas o público, esse, não faltava. Não ficava em casa. E levava consigo, de volta, memórias que jamais se esquecem."

Afonso de Melo, in O Benfica

3 comentários:

  1. Caro Afonso, eu era um frequentador mais assiduo da antiga Luz do que agora. Lembro-me de um jogo particular com o Real Madrid em que estavam mais de 120 mil porque não só as bancadas estavam cheias, mas também as escadas e tudo o que era lugar onde se podia encaixar uma pessoa. Estava lá quando o Poborsky driblou meia equipa do braga e marcou golo, depois veio ajoelhar-se por baixo do antigo terceiro anel, onde eu ficava sempre e nesse dia tive o previlégio de lá ter estado....enfim, memórias, tenho muitas mais...
    E raramente vou ver futebol no novo estádio. Porquê? Os preços, a crise, têm influência...sim, claro, mas no meu caso não é a razão principal. Na antiga Luz eu ficava no terceiro anel, na bancada dos sócios, mesmo na primeira ou segunda fila da central. Sabia que se fosse cedo para o estádio, iria quase de certeza conseguir lá lugar. Ainda era jovem. Já era sócio e tinhamos esse e outros previlégios, merecidos, acho eu. Hoje tenho dois filhos e mulher, somos quatro, todos sócios, custa muito dinheiro ir ao futebol com a familia mas, o que mais me irrita e me retira o entusiasmo de ir é nunca conseguir bilhete para as áreas do estádio onde gosto de ver os jogos, o mais parecido possível dos lugares onde me sentava no antigo terceiro anel. E se tentar para toda a família...nem com um mês de avanço. Sim, isso dos red passes pode ser muito bom para os Benfiquistas de Lisboa, para o clube e tudo o resto, mas para mim, simples sócio de longa data de fora de Lisboa que não pode ir sempre ao futebol....é uma porcaria, e realmente, se calhar por comodismo ou porque me irrita ir ver onde há lugares livres e nunca encontrar um lugar de jeito para mim e para a família, especialmente para ficarmos todos juntos, prefiro ver na tv.

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  2. Qd subíamos as bancadas novas do estádio velho e as sentíamos a tremer...

    A sensação de q, c/ aquela força humana era impossível perdermos...

    Houve, seguramente, vários jogos c/ bem mais do q 120 000 espectadores... em alguns jogos não havia espaço livre - estávamos sentados encostados uns aos outros...

    Todo o estádio a cantar, s/ ignição das claques, "cheira bem, cheira a Lisboa" (Steaua)...

    A verdadeira tempestade sonora da entrada do Benfica em campo ou dos golos...

    Estive em poucos jogos mas o Estádio da Luz cheio, em jogos internacionais, é/era uma experiência inesquecível...

    Só quem viveu essa experiência ficaria incrédulo se o árbitro do Benfica- Marselha invalidasse o golo do Vata...

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  3. A Antiga Luz era, de facto, um lugar mágico. Frequentei-a assiduamente nos anos 70, não tanto nos grandes jogos, mas, como morava a 5 minutos do estádio, mais nas manhãs de domingo a ver jogos das Reservas, e aos sábados, após acompanhar a minha irmã ao treino de andebol, no pavilhão. Tínhamos acesso às bancadas junto à relva onde decorriam os treinos da equipa principal e podíamos seguir as movimentações dos nossos ídolos e inclusive pedir autógrafos ao Pietra, ao Toni, ao Shéu, entre outros, conversando um pouco com eles. Éramos adolescentes e essas memórias guardo-as com muito carinho.

    O que mudou então? Foi o estádio, foi a crise, fomos nós que crescemos? Tudo isso, sim, mas o principal chama-se Televisão. O Futebol, como tantas outras coisas, tornou-se um espetáculo de televisão. Chamem-me o que quiserem, mas, para mim, o melhor sítio para ver futebol é em minha casa, sentado no sofá defronte da tv e… sozinho! Obviamente ir ao Estádio da Luz (o novo ou o antigo) ver o Benfica é e será sempre uma experiência única. Mas ver futebol… é na televisão. Isto, aliado ao preço dos bilhetes, às deslocações, alimentação, mais a crise, mais os horários de trabalho estendidos, ter que tomar conta dos filhos, etc. reduziu o número de espetadores. Nos anos 70 um sócio, nos jogos do campeonato, só pagava bilhete no chamado Dia do Clube. Se a memória não me falha, existiam 3 jogos por época que eram dia do clube (fcp, scp e outro que chamasse mais público). Para os restantes jogos era mostrar o cartão de sócio e entrar. E pagar as quotas, claro .

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