terça-feira, 17 de junho de 2014

A história do Rei

"Dele quase tudo se disse. É o cidadão português cuja história mais vezes foi contada. Pode não vir nos manuais escolares, mas é no 'passa.palavra' que gerações tomam conhecimento e se apaixonam pelo nome Eusébio. Em vida, o 'Rei' falou à Mística em duas ocasiões (2008 e 2011), onde abriu o livro das memórias e opinou sobre o futuro. Agora, na hora de se tornar eterno, recuperamos as palavras e a história de vida de um mito.

Esta é uma história com início na antiga Lourenço Marques (agora Maputo). Moçambique. O dia: 25 de Janeiro de 1942. Abria os olhos Eusébio da Silva Ferreira. O destino o ditaria: mais do que rebento africano, um cidadão do mundo.

Nas palavras do poeta
Veio ao mundo numa numerosa família - benfiquista, por sinal -, mas cedo ficou órfão de pai (o Sr. Laurindo, também ele, em tempos, jogador). A mãe era tudo para ele. A D. Elisa, a mesma que não gostava nada que o pequeno Eusébio faltasse às aulas para jogar futebol, mas que no momento certo o deixou voar nas asas do sonho. A ligação entre mãe e filho prova-se na forma como, nos últimos anos de vida, era a falar de D. Elisa que o agora avô Eusébio mais se emocionava.
Mas voltemos à Mafalala, bairro nos arredores de Lourenço Marques: das casas de zinco e madeira às bolas de trapos, das jogatanas de rua ao Senhor Xico, um cauteleiro que o distinguiu de entre os amigos. Nos improvisados campos das ruas da capital, o raiar dos horizontes que deram luz à sua infância. Diz-se que nas palavras do poeta José Craveirinha jorrava a inspiração de meninos como Eusébio. É que aquele era o poeta que na década de 50 incentivava os moços de Moçambique a libertarem o espírito pela nobre arte de praticar desporto. 'Ele era uma referência', como muito mais tarde admitiria Hilário, conterrâneo e amigo de Eusébio e um dos melhores defesas do futebol luso.

Magrinho mas supersónico
Aos 12 anos era já conhecido por 'Magagaga'. Supersónico. Rumou aos Brasileiros Futebol Clube. Todos tinham alcunha de craque canarinho. Ficou 'Nené', o brasileiro. Estreia: dois golos, vitória por 7-1 e um justo prémio de dez escudos. Ficou até aos 15. 'Eu desde os 12 anos que sabia o meu valor. Nunca tivemedo de jogar com os rapazes de 17 e 18 anos. Até gostava, pois só assim perdia o medo e jogava melhor.' Hilário, que considerava como um irmão, pois era amigo da família, rumou a Lisboa, ao Sporting. E tantas vezes tentou convencer os dirigentes leoninos a irem buscar a pérola que ainda estava em Moçambique... Mas estes não acreditaram, ainda que os 'grandes' portugueses tivessem muitos olheiros ali. E com resultados práticos, com Matateu e Coluna como exemplos. Depois há a história de um irmão mais velho de Eusébio que passou pelo Benfica, pelas palavras do próprio à Mística: 'Um dos meus irmãos foi campeão de juniores no Benfica. A alcunha dele era 'Juju'. Entrou num bom colégio em Tomar. Depois foi mobilizado para prestar o serviço militar e acabou por regressar a Moçambique.'
Eusébio era bom de bola. Tentou um lugar no Desportivo de Lourenço Marques, filiar laurentina do Benfica. Não foi aceite. Disseram-lhe que era carne e osso. Acabou no clube rival, o Sporting Clube de Lourenço Marques, onde jogou até aos 18 anos. Na estreia defrontou o Desportivo. Chorou por não se sentir bem a defrontar a equipa que mais gostava. Mas ganhou por 3-0. Marcou os três golos. Num deles, 'só' ultrapassou a equipa toda e depois finalizou com classe. O que se arrependeram os responsáveis do Desportivo! Carne e osso, não era?

A carta a Coluna
Três aqui, dois ali, um mais à frente. Golos e mais golos. O Benfica já o tinha debaixo de olho. Mas a concorrência era cada vez mais feroz. Em 1960, dois enviados do clube da Luz foram a casa de Eusébio para falar com a mãe. O jovem tinha apenas 18 anos e, nesses tempos a maioridade era aos 21. A mãe foi perentória: Eusébio podia dar asas ao sonho. Ao saber o que se passava, o Sporting tentou cobrir a oferta, mas a palavra estava dada ao Benfica. Os rivais tentaram tudo, mas D. Elisa manteve a palavra. A ela muitos milhões de benfiquistas podem agradecer. E a Coluna também. Que recebeu uma carta de D. Elisa. Que cuidasse do seu menino como se fosse seu filho. Mário Coluna falava muito dessa mesma carta. Levou-a à letra. D. Elisa agradeceu. Tímido e franzino, chegou a Portugal em Dezembro de 1960. Num país triste e cinzento, dominado pela ditadura, Eusébio era um jovem em busca de glória no clube do povo, da democracia, onde despontava uma geração de valores que se veio a revelar a mais frutífera de sempre do desporto europeu. Para o jovem Eusébio existiu um primeiro inimigo. O frio. Ele que estava acostumado aos 40 graus de Moçambique. No dia seguinte à chegada acompanhou a equipa à Covilhã apenas para ver jogar os craques. Vitória por 1-3 e um Eusébio na bancada gelada, mas entusiasmado. Só que o frio... podia ter estragado tudo. Chegou a ligar à mãe dizendo que ia regressar. Entra na história Coluna. Tornou-se padrinho protector do jovem conterrâneo. Deu-lhe forças e uma palavra amiga. 'Por isso lhe agradeço a ele, mas também aos falecidos José Águas, Germano e Costa Pereira. Homens que me ajudaram. Felizmente, eu sempre meti na minha cabeça os conselhos que eles me davam. Hoje não me arrependo de os ter ouvido', contou-nos em 2011.

Pacientemente aguardando o ouro
Eusébio vivia no Lar do Jogador, no Estádio da Luz. E ali protagonizou uma autêntica novela. Não podia jogar. O Benfica chegou a acordo com o antigo clube do moçambicano, mas o Sporting inviabilizou a concretização do negócio, pressionando a sua filial laurentina. E começou a 'perseguir' Eusébio. Benfica e Sporting travaram uma intensa luta estratégica e jurídica. Todos o queriam e ele não jogava. Em 2008 disse em entrevista à Mística, entre sorrisos: 'Tenho 66 anos e mesmo assim há sportinguistas que dizem que fui 'raptado' pelo Benfica. O Sporting é que queria 'raptar'.' Era o forte sinal de que se estava na presença de alguém fora de série. Mas como lidaria ele em campo com tanta pressão e tanta expectativa? Da polémica em polémica, de argumento em argumento, Eusébio permaneceu fiel ao Benfica ainda antes de se estrear de águia ao peito e, apesar de ter estado parado entre Dezembro de 1960 e Maio de 1961, não retrocedeu na palavra que ele e a sua mãe, D. Elisa, tinham dado aos persistentes dirigentes 'encarnados'.
Em Maio de 1961, o Sporting laurentino, temendo 'perder tudo', aceitou a verba combinada com o 'Glorioso', enviando para o Benfica a sua 'carta de desobrigação'. Finalmente Eusébio era do Benfica. E o presidente da direcção, Maurício Vieira de Brito, conseguia o que queria: o jogador que viria a mudar a face do futebol português. Primeiro treino: o técnico Béla Guttmann virou-se para o adjunto Fernando Caiado e disse: 'É ouro, é ouro' Os colegas perguntavam-se quem seria o sacrificado. Germano usava o humor: 'Estou safo, sou defesa.' Apesar de menino, Eusébio mostrava ser uma força da Natureza e já um grande jogador. E também tinha confiança. Certo dia disse ao seu colega de quarto, José Torres (que há três anos rodava nas reservas), que tinha valor para jogar no Benfica e que no dia em que entrasse na equipa não mais perderia a titularidade, porque era melhor do que todos os colegas. Não disse apenas... Fez.

Quando Pelé quis saber quem era
Chegados a 23 de Maio de 1961, a estreia. Um jogo de reservas frente ao Atlético, em que o Benfica venceu por 4-2. Marcou três. E estava com febre... Estreou-se na equipa principal em 1 de Junho de 1961 (sim, poucos dias depois), na derrota por 1-4 no campo dos Arcos, em Setúbal, com o Vitória de Setúbal, na 2.ª mão dos quartos-de-final da Taça de Portugal, marcando o golo do Benfica, mas falhando um penálti às mãos de Félix Mourinho, pai de José Mourinho. Foi o primeiro dos quatro penáltis falhados na sua carreira. Uma estreia numa equipa de recurso, pois o poder federativo obrigou o Benfica a jogar uma eliminatória da Taça de Portugal, enquanto a equipa principal viajava de Berna para Lisboa, depois da na noite anterior, em 31 de Maio, ter conquistado a Taça dos Clubes Campeões Europeus após vencer na final, por 3-2, o Barcelona.
Pouco depois, no primeiro jogo no campeonato, a 8 de Junho, marcou na derradeira jornada e festejou o primeiro título nacional ao serviço do Benfica. Tinha 19 anos. No Verão participou no Torneio de Paris. Marcou na vitória por 3-2 sobre o Anderlecht. Mas deu nas vistas na final. Começou como suplente. Quando entrou, já o Benfica perdia 4-0. Marcou três golos. Pelé quis saber quem era...
Em Outubro de 1961, Fernando Peyroteo chamou-o à selecção, e assim pôde cumprir o sonho de treinar ao lado de Matateu, mas, devido a lesão, nunca chegaram a jogar juntos. Na estreia, derrota por 4-2 com o Luxemburgo. Marcou um golo. Depois, a 25 de Outubro, Portugal perdeu por 2-0 em Wembley, num jogo a contar para a qualificação para o Mundial do Chile. Eusébio jogou bem, atirou duas bolas aos ferros e viu-se no dia seguinte apelidado de 'Pantera Negra' pela imprensa britânica.
Em Setembro jogou inesperadamente a decisão da Taça Intercontinental ao lado de outro miúdo, António Simões. É que depois de vencer na Luz por 1-0 o Peñarol, o Benfica sucumbiu por 5-0 em Montevideu. Na finalíssima, novamente no terreno do adversário, Guttmann chamou os miúdos. Eusébio ainda deu o empate ao Benfica com um míssil. Um penálti escandaloso decidiu.

A glória... de ter a camisola de Di Stéfano
A estreia na Taça dos Campeões aconteceu em 1 de Novembro de 1961. Empate a um golo em Viena e depois goleada por 5-1 na Luz. Eusébio marcou o quarto. Mas Dezembro traria a primeira de seis operações ao joelho esquerdo a que se soma mais uma ao direito. Recuperou e ainda foi a tempo de ajudar à glória europeia.
Eusébio cedo mostrou que era um futebolista sem igual, conquistando a titularidade na equipa e a confiança dos colegas e técnicos. E a cereja no topo do bolo sucedeu na final de Amesterdão de 1962, quando o Benfica se sagrou bicampeão europeu à conta do 'gigante' Real Madrid. No final, 5-3 para o Benfica, com o jovem avançado em plano de destaque. Levado em ombros, não se agarrou à taça, mas sim... à camisola de Di Stéfano, seu ídolo de sempre. No final, ouviu o elogio do craque madrilista, tal como se habituou a ouvir de outros da sua galáxia, tais como Pelé ou Cruyf. 'Ganhar ao Real foi fantástico, mas eu só queria a camisola do Di Stéfano. No final, disse-me que eu teria um grande futuro. Imagine o que é ouvir isso do seu ídolo! E eu perguntei-lhe como poderia ser grande. Ele disse-me que tinha de trabalhar e ouvir os conselhos dos mais velhos. Meti isso na cabeça', contou-nos.
No ano seguinte, derrota na final com o Milan. Eusébio marcou, sofreu falta atrás de falta e terminou o jogo inferiorizado, tal como Coluna, que fazia figura de corpo presente junto à faixa.
Em 1964/65 brilhou nos 5-1 ao Real Madrid. Seguiu-se a maldita final com o Inter. Mais uma perdida, mas, imagine-se, em San Siro, casa dos Italianos. Nesse ano de 1965, a 8 de Outubro, casou-se com Flora. Juntos até final, geraram as filhas Carla e Sandra. E foi ao ombro de Flora que chorou de alegria ao saber que tinha sido distinguido como melhor jogador da Europa também nesse ano.

Golos para a História
Atleta notável, jogando em apoio aos avançados ou como ponta de lança, não tinha limitações: de cabeça, com os pés, de longe, de 'bola parada', driblando ou  rematando, era um avançado completo e imprevisível. Conseguiu driblar meia equipa contrária ou rematar de longe sem preparação mas com uma precisão incomparável. Nos lances de 'bola parada' era fulminante em livres directos ou grandes penalidades, a maior parte das vezes a 'cobrar' faltas cometidas sobre si, a única forma de o parar.
E foi num livre que marcou um dos melhores golos da carreira. Em Turim, frente à Juventus (meias-finais da Taça dos Clubes Campeões Europeus, edição de 1967/68), Eusébio marcou um golo de livre a mais de 40 metros de distância da baliza. Antes do remate, os adeptos da 'Vecchia Signora' riram-se perante a invulgar decisão do 'Rei', mas depois silenciaram-se quando o esférico entrou no fundo das redes. De resto, os livres certeiros passaram a ser rotulados de 'livres à Eusébio'.
No entanto, foi um golo de jogada corrida, frente ao então desconhecido La Chaux-de-Fonds (1964/65), que o génio considera ter sido o seu melhor de sempre. Um golo também especial pela forma invulgar como o guarda-redes adversário reagiu à célebre jogada de Eusébio, realizada a 9 de Dezembro de 1964.
'Fiz uma tabela com o Simões e, sem deixar a bola cair no chão, passei-a por cima de dois defesas. Após ter marcado o golo, reparei que o guarda-redes da equipa adversária começou a correr na minha direcção. Fiquei perplexo. Pensei que ele me queria fazer alguma coisa de mal. Mas não! Ele queria apenas cumprimentar-me. Nunca tinha visto uma coisa assim! Foi pena a televisão não ter dado a devida importância a esse golo. Já marquei muitos golos que ninguém pensava ser possível, como, por exemplo, aquele diante da Juventus, mas para mim aquele marcado ao La Chaux-de-Fonds foi o melhor de todos.' No entanto, Eusébio não foi só o maior finalizador do futebol português como também grande futebolista.
Delineou e executou milhares de jogadas, servindo em centenas delas os colegas de equipa melhor colocados, estando por isso directamente ligado a milhares de golos. Ao contrário de outros, deve ser o futebolista mundial que 'esteve' em mais golos, quer a marcar, quer a fazer o último passe ou assistência.

Sempre em frente
Como nos confessou em 2008, o seu caminho 'era sempre em frente'. 'Delineei um caminho para a minha carreira e nunca me desviei dele.' Ficam os golos, as palavras e as imagens. A ir buscar uma bola ao fundo das redes, querendo mais após um golo. Ou a perna esquerda fixa e esticada na vertical e a direira dar tudo de si rumo à glória, algures entre um encontro com a própria cabeça curvada e mais um remate devastador. Os braços são pura poesia. Parecem delinear o caminho certeiro do esférico. Uma dança que com ele nasceu. Uma ciência, uma poesia, talvez pura matemática. Era diferente de tudo o resto.
Sagrou-se melhor marcador de inúmeras competições, com destaque para o Mundial de 1966, em Inglaterra, na Taça dos Clubes Campeões Europeus, em 1964/65, 1965/66 e 1967/68, e em sete Campeonatos Nacionais da I Divisão, nas épocas de 1963/64, 1964/65, 1965/66, 1966/67, 1967/68, 1969/70 e 1972/73 (sete campeonatos, cinco deles consecutivos, ambas as marcas recordes). Foi também Bota de Ouro (melhor marcador europeu) em 1967/68 e 1972/73; e Bola de Ouro (melhor jogador europeu) em 1965, ano anterior ao da realização do Mundial em Inglaterra onde brilharia intensamente.
Pelo Benfica conquistou 22 títulos oficiais: campeão europeu de 1961/62; 16 nacionais com 11 Nacionais da I Divisão (é o futebolista português com mais títulos) e cinco Taças de Portugal; além das cinco Taças de Honra de Lisboa. Certo dia perguntámos-lhe se concordava que houvera um Benfica antes e um Benfica depois de Eusébio. 'Antes de mim já houve um grande Benfica, com aqueles que venceram a Taça Latina. Depois de mim, também foi um Benfica forte, com tantos títulos e finais. Agora, o que eu acho é que a grandiosidade vinha da força adjacente a uma base que era também a Selecção Nacional', respondeu.

Orgulho de Portugal
Na Selecção Nacional foi internacional em 64 jogos, marcando 41 golos, capitaneando-a em 16 encontros. Não existiam adversários facilmente goleados. Existiam, sim, grandes potências no futebol europeu. E ainda assim Eusébio marcava e marcava... Exemplo? Algo de que pouco de fala. Os sete golos na caminhada até ao Mundial de 66. E na decisão, em pleno terreno da fortíssima Checoslováquia, Portugal reduzido a dez elementos e o golo que valeu a qualificação a surgir dos pés do 'Pantera Negra' após uma cavalgada de mais de 70 metros. Monstruoso.
No Mundial de 66, entre os 'Magriços', foi o melhor marcador, ficando para sempre nos anais da história do futebol mundial o modo como 'virou', no encontro com a Coreia do Norte, um resultado desfavorável de 0-3 para uma vitória por 5-3, marcando quatro golos. No total, nove golos.
As lágrimas pela eliminação nas meias-finais frente à Inglaterra, no Mundial de 66, contrastaram com a forma efusiva como viveu todo o Mundial. Um jogo que se devia ter realizado em Liverpool, 'casa' portuguesa, e acabou por, sabe-se lá porquê, ser  transferido para Londres. No final de um jogo mal perdido, Eusébio olhou os céus, perguntou a Deus 'porquê' e chorou compulsivamente. O inédito terceiro lugar luso soube-lhe a pouco. 'Era em Liverpool que tínhamos de jogar e era aí que nos sentíamos em casa. Foi pena que tenhamos ido jogar a Wembley, após uma viagem muito má, sacrificando-nos tanto para nada. Lembro-me que perdi quase 3,250 Kg nesse jogo. Demos tudo e sentimo-nos injustiçados. Daí ter chorado no fim, olhando para o céu, dizendo que mal fiz meu Deus'. Nunca mais alguém conseguiu marcar tantos golos numa fase final de um Mundial.

Do fair-play à máquina rebentada
Final da década de 60. Levou o Benfica à nova final europeia. Ironia dos destinos: defrontar o Manchester United em Wembley. Derrota por 4-1 no prolongamento. Mas na imagem de muitos o falhanço em cima do minuto 90 e posterior cumprimento ao guardião contrário. A história pelo próprio: 'Tive o golo da vitória nos pés, quando faltavam dois minutos para o fim, mas joguei com uma lesão que não acredito suportasse nos dias de correm. Eu só devia andar, e joguei. E não podia chutar com o pé esquerdo, pois se a bola me tivesse chegado ao pé direito eu tinha feito o golo.' Com o passar dos anos perdeu o fulgor - malditas lesões -, mas já trintão conseguiu, com Jimm Hagan, atingir a marca dos 43 golos no campeonato, sendo mais uma vez Bota de Ouro. E na Minicopa de 1972 mais uma manifestação de classe internacional. Portugal perdeu ao cair do pano da final. Marcou, em 31 de Março de 1975, o seu último golo pelo 'Glorioso', o n.º 638, no Estádio Colombes, em Paris, quando o Benfica venceu por 5-1 o FC Porto numa festa de homenagem aos emigrantes. Certo dia perguntámos-lhe: qual foi o melhor Eusébio? 'Em todos os jogos aparecia o melhor Eusébio. Dava o máximo', atirou. Quisemos saber mais: e se fosse hoje, Eusébio? 'Era melhor ainda. Em termos físicos, trabalhava muito e as botas que eu calçava pesavam muito mais. A bola, a camisola, o calção... tudo está diferente. Não há comparação. Lembro-me de que há uns anos fomos a um programa de TV e estavam lá alguns dos melhores jogadores de sempre. E eles tinham uma máquina onde podiam medir a força do nosso remate. Só sei que quando chegou a minha vez a máquina rebentou e lá se foi o programa. Não há ideia da velocidade que a bola ganhou. Acho que hoje, com esta bola, conseguiria marcar livres do meio campo desde que o vento soprasse a favor.' Como diria Mourinho, mais tarde, Eusébio seria 'Monstruoso'.

Incomparável
Efectuou o 614.º e último jogo da águia ao peito em 18 de Junho de 1975, num encontro particular em Casablanca, com a Selecção da CAF (Confederação Africana de Futebol). Nem nesse jogo se enervou. Dizia-nos, em 2008, que nunca na carreira se mostrou ansioso: 'Nunca me enervei a jogar futebol, porque senti sempre prazer. Só me comecei a enervar quando deixei de jogar'. Um registo histórico, numa despedida no continente africano, onde nascera há 33 anos. Nesses últimos anos de carreira jogou no Estados Unidos, no Canadá, no México. Ganhou títulos, marcou golos e, acima de tudo, comprovou a popularidade que o perseguia. Era um deus chegado a um novo mundo futebolístico. Valeu pela experiência desportiva e social.
Dizia-nos, de forma nostálgica, em 2011:
'Não posso dizer que sou o mesmo que chegou a Lisboa há 50 anos, mas a mentalidade é igual: respeitar as pessoas, ser alguém simples e não desiludir quem gosta de mim. Sou do Benfica mas respeito os adeptos dos outros clubes.' Palavras que aplicou ao longo da vida. Por isso, no pés-carreira manteve sempre o carinho de todo o mundo do futebol e até mesmo daqueles que não acompanhava o desporto-rei. A postura a humildade fora do campo foram, agora sabe-se, a sua última grande vitória. Um triunfo que, todos o sabem, está ao alcance de poucos. E essa é também uma coroa incomparável. Mais: 35 anos depois de ter deixado de jogar ainda é apelidado de 'Rei' nos quatro cantos do mundo. Vide a manchete do South China Morning Post, um reputado jornal de Hong Kong: 'The King is dead' (O Rei está morto). Uma prova de que o principal golo ou título de Eusébio foi ter colocado Portugal no mapa numa altura em que o País vivia na penumbra. Podemos até ir mais além: que outro jogador nascido em África, o mais mágico mas também humilde dos continentes, fez o que Eusébio fez no futebol mundial? E que jogador com quase duas mãos-cheias de terríveis operações aos joelhos se destacou no desporto que mais faz vibrar o planeta? Por isso, fúteis e estéreis daqueles que se dignem compará-lo com outro qualquer jogador, por mais valioso e merecidamente respeitado que seja. Há que perceber contextos sociais, desportivos, humanos e globais antes de se entrar em comparações para preencher horas televisivas e colunas de jornais. Façamos um exercício: o que se ganha em comparações sobre Pelé, ou Maradona, ou Di Stéfano? Zero. Cada um, uma história. Cada um, um herói à sua maneira. E Eusébio, tal como os grandes jogadores de novo milénio, merece o respeito de ser encarado como 'único'. Mais: ele foi um fenómeno global antes da globalização. Eusébio foi uma era, é um mito. Não apenas o melhor, ou não. É único. Outra forma de pensar seria reduzir e retirar valor a tudo o que representou e representa.

Homenagem em vida
Em 26 de Março de 1982, a distinção suprema do Benfica: a Águia de Ouro. Em 25 de Janeiro de 1992, no 50.º aniversário, foi inaugurada a sua estátua, em frente ao estádio onde alcançou feitos inigualáveis. Mas foi na presidência de Luís Filipe Vieira que teve a justa e respeitosa visualização do quanto o clube lhe agradecia o que ele representava década após década. Tornou-se parte activa do clube, teve o merecido suporte financeiro e foi a imagem do Benfica nos mais diversos momentos, sendo mesmo lançada a Eusébio Cup, em sua honra. O homem pode ter-nos deixado neste início de 2014, mas o nome será sempre iluminado pela admiração de quem respeita o desporto e, acima de tudo, o verdadeiro espírito dos campeões Eusébio vive.
O texto termina aqui para os que o vão ler. Mas sobra um último parágrafo, que queremos partilhar apenas com uma pessoa. Referimo-nos a si, Flora. Em 2008, no decorrer de uma entrevista que o 'Pantera Negra' deu à Mística, perguntámos a Eusébio quem tinha sido a pessoa mais importante da sua vida. Decerto que sabe a resposta, Flora, pelas palavras que na intimidade o 'Rei' lhe dirigiu ao longo de toda uma vida, mas deixe-nos humildemente transcrever o que ele nos respondeu: 'A pessoa mais importante da minha vida é a minha esposa. A Flora. A minha grande paixão. Uma mulher fora de série. Foi fundamental o seu apoio na minha carreira. A cada segundo. Este sempre lá. E continua a estar. É uma grande mulher!'

(...)"

Ricardo Soares, in Mística

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