sexta-feira, 21 de março de 2014

Estupor

"A crueldade de ver partir em tão pouco tempo gente que tanto se admira e de quem tanto se gosta.

Perder qualquer pessoa de quem se gosta e se admira é sempre um murro no estômago. Quando se perde um amigo a dor é ainda maior. Partiu esta semana um homem de quem muito gostava e admirava, e acaba de partir um amigo de quase trinta anos. Levei um murro no estômago e sinto, agora, uma dor profunda. Não me levem os leitores a mal a intimidade que aqui partilho.
A partida de Medeiros Ferreira deixou-me muito triste; o desaparecimento, ontem, de Manuel Barbosa deixou-me em lágrimas.
Não se trata de ser ingrata a vida, trata-se de a sentirmos cruel quando nos leva assim em tão pouco tempo gente de quem tanto gostamos, e a mim, ultimamente, a vida tem-me dado fortes murros no estômago. Na família e nas amizades e em gente que admirámos.
Sé este ano, já vi partir Eusébio... o senhor Ferreira... e o senhor Coluna... duas das figuras do futebol que, conhecendo, mais admirei, e já me despedi esta semana do professor Medeiros Ferreira, que acompanhei até à última morada, no Cemitério dos Prazeres, e chorei ontem pela partida de Manuel Barbosa, com quem tanto me zanguei, discuti, me alegrei, convivi, partilhei e emocionei praticamente ao longo de toda a minha vida de jornalista.

Não faço a menor ideia se alguma vez Medeiros Ferreira e Manuel Barbosa privaram um com o outro, mas não será difícil presumir que, pelo menos, se conheciam, quanto mais não fosse pela paixão benfiquista de ambos. Mas não tinham apenas isso em comum.
Além de fervorosos adeptos encarnados, que tanto desejavam ver o Benfica este ano campeão, diziam ambos as palavras com todas as letras até pela afirmação das pronúncias açoriana e minhota de que os dois tanto se orgulhavam.
Adoravam uma boa conversa, de preferência dura, exigente e suficientemente argumentativa para nunca se ficar pelas meias-tintas, e tinham ambos um sentido de humor, embora diferente na acidez e na subtileza, capaz de os levar a rirem-se até deles próprias.

Medeiros Ferreira era historiador, homem inteligente e culto, professor e político, sempre com activo exercício da cidadania, figura incontornável da democracia portuguesa e de integração de Portugal na União Europeia. Era um extraordinário conversador e - como bom conversador -, igualmente um extraordinário ouvinte e ainda um verdadeiro.. encantador de histórias.
Conheci-o, há um bom par de anos, através dos meus amigos Leonor Pinhão e João Botelho, com quem Medeiros Ferreira tinha relação muito próxima e de quem foi, durante anos, vizinho.
Fora de combater político, do palco público e da actividade profissional, Medeiros Ferreira quase sempre tinha um sorriso. Foi assim que o encontrei, sucessivamente, ao longo dos anos, com aquele sorrido que lhe vinha também do jeito de ser e de estar.
Se partilhava com Manuel Barbosa a paixão pelo Benfica, o professor Medeiros Ferreira, como carinhosamente sempre o tratei, partilhava comigo a paixão pelo futebol e pela história do futebol, pela comunicação e pela história da comunicação e dos media, como bom historiador que também era.
Tive o privilégio de conviver com o professor Medeiros Ferreira em muitos momentos ligados ao futebol, à cultura e até mesmo à vida política.
Na Ponta Delgada que o viu nascer, fez 72 anos em Fevereiro, quando A BOLA o convidou para a ímpar iniciativa de homenagear o futebolista açoriano Pauleta, e partilhámos ainda a experiência sul-africana do Campeonato do Mundo de 2010, onde esteve como comentador de um diário generalista e eu como enviado-especial deste jornal.
Era um homem bom e um homem simples, um apaixonado pelas coisas da vida, das mais às menos profundas, e um extraordinário orador, que dava, naturalmente, gosto ouvir. Como bom cavalheiro, era um admirador das mulheres e, por muito tempo sem o sabermos, partilhávamos até a admiração pela encantadora e combatente Joana Amaral Dias, com quem o professor dividiu muitas horas de debate político na televisão e eu uma relação platónica de admiração profissional.
Não fui aluno nem companheiro de luta nem amigo íntimo do professor Medeiros Ferreira mas posso dizer que gostávamos francamente um do outro e gostávamos francamente de conversar um com o outro, ao ponto de o professor ter aceite o meu convite para estar como comentador num dos espaços de informação desportiva do então recém-criado canal de televisão de A BOLA, quando A BOLA TV era ainda uma televisão apenas na Internet.
Como eu gostava do professor Medeiros Ferreira.

Custa-me mais falar de Manuel Barbosa porque a Manuel Barbosa ligam-me muitos anos de amizade, muitas tardes de discussão e muitas noites de futebol.
Nos últimos tempos, fui percebendo e testemunhando como lhe fugia a vida que tão intensamente vivia, e foram então mais as horas de conversas pelo telefone do que os momentos de sorrirmos na cara um do outro.
De Manuel Barbosa escrevi o possível nas páginas centrais desta edição, e dele me esqueci ter sido responsável pela saída do primeiro treinador português de futebol para o estrangeiro, quando na década de 80 levou o saudoso - mas felizmente bem vivo - Quinito para o Kuweit.
Se me esqueci de mais alguma coisa é apenas porque escrevi o possível sobre um amigo que só não foi capaz de resistir ao estupor do cancro.
E me fez chorar."

João Bonzinho, in A Bola

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