quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Eusébio.

"Há nomes assim: esse ponto final parágrafo aí em cima poderia ser um ponto absolutamente final. Ou seja: o livro estaria pronto, concluído, perfeito. Porque a Eusébio nada se acrescenta.

«Exagero subjectivo!, exclamarão alguns. Estão no seu direito. E para eles, desde já acrescento: não leiam mais, então, não vale a pena. Esta será, de início ao fim, uma prosa subjectiva. Terá factos, terá números, terá estatísticas, se calhar, matérias portanto objectivos. Mas a visão redonda deste planeta achatado nos pólos é minha e dela não prescindo.
Convenhamos: Eusébio escreveu-se a si próprio.
Agora vou falar de outro nome fundamental: Nelson Rodrigues. A ele se devem as mais belas páginas escritas em português sobre futebol. E, ao contrário do que possam pensar, futebol e literatura têm muito em comum. Têm muitíssimo em comum.
Nelson Rodrigues: «Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural». Era aqui que queria chegar: Eusébio é demasiado complexo para ser objectivo.
Revejam o filme do primeiro golo de Eusébio contra o Brasil, em 1966, no Campeonato do Mundo de Inglaterra. Ou melhor, revejam-no depois do golo. Ele corre, de braço no ar. A cabeça está erguida, imperial, reparem bem: há no seu olhar, que abarca todo o estádio de Goodison Park, em Liverpool, a consciência de que a história está a passar por ele, pela sua passada elástica, veloz, o redor move-se em câmara lenta, só ele tem vida para além da vida corriqueira, insignificante, só ele ganha luz para além dessa vidinha de que falava Alexandre O'Neill e que acabrunhava o país triste. Corre, corre, corre, Eusébio corre. Está apenas a comemorar um golo, mas até disso dir-se-ia depender a sua própria existência. Aquela corrida parece durar horas e horas. Aquela corrida merecia durar horas e horas.
Prestem bem atenção, agora: ele eleva-se no ar como se tivesse as asas nos pés de um Mercúrio negro. O seu braço erguido estende-se para lá do estádio, quase tocando o céu num soco vigoroso, vibrante. Não tirem os olhos dele: deixem-no ficar assim para sempre na parede lisa da vossa memória. Dificilmente Eusébio poderá ser tão Eusébio.»"

Afonso de Melo, in O Benfica 

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