"De tempos a tempos, geralmente mais sobre o final do ano, as televisões fazem umas reportagens sobre o bicho. E os jornais, por simpatia, publicam-lhe os mugidos entaramelados. Por isso, de repente, vemo-nos frente a frente com o seu olhar de carneiro mal-morto, as pálpebras desencontradas, tapando meia córnea, deixando-nos da dúvida se o animal dorme ou se já se debate nas vascas da agonia. Por esse olhar semicerrado é possível traçar-lhe a obtusidade do raciocínio. Visceralmente bronco, naturalmente lorpa, o gnu baba-se. Por entre a espuma dessa baba bovina, soltam-se insinuações e mentiras canalhas. Relho, decrépito, já não tem pêlo: meia-dúzia de repas espalham-se em redor dos chavelhos.
Felizes, submissos, os repórteres de pacotilha rastejam em frente ao chefe da manada, tirando fotografias, captando imagens, desfazendo-se em elogios, lambendo-lhe os cascos. A história mete nojo, mas repete-se do princípio ao fim dos tempos. O velho gnu rebola-se de gozo na lama fétida desses dejectos humanos. Para sobreviver, precisa que lhe afaguem o ego descomunal. O seu cérebro caliginoso não o deixa tomar noção da sua tão grande pequenez. Vive num mundo só dele e da sua súcia. Há quem garanta que tem a língua bífida das cascavéis, mas não saberia dizê-lo. Os documentários que de vez em quando o retratam, mostram-no em murmúrios, em resmoneios, em rosnidos, em mugidos. A língua mantém-se dentro da boca, segurando a placa e o falso palato. Há quem se entretenha estudar o espécime em todo o esplendor da sua estupidez. Outros, ao ver imagens tão cruas da imbecilidade do gnu, agoniam-se, são acometidos por vómitos e diarreias. É assim a National Geographic: mostra-nos os seres mais repelentes da natureza sem subterfúgios. O que faz que muitos de nós duvidem que bichos como o velho gnu tenham sido sequer concebidos por Deus."
Afonso de Melo, in O Benfica