terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O Muller Cardozo

"Para quem acha que Cardozo tem dois ferros de engomar nos pés e um problema: marcar golos

Já era como nunca mais deixaria de ser: atarracado, desengonçado, com uma perna dois centimetros mais curta que outra - e uma tarde apareceu num treino do TSV Munique. O treinador deixou que se mostrasse mas, no final, murmurou-lhe, em tom decrépito:
- Não vais longe nisto. É melhor mesmo dedicares-te a outra coisa...
Trabalhava como tecelão, tratavam-no pela alcunha que trouxera da escola: der Dick, o Gordo. Aos 18 anos conseguiu, enfim, entrar no modesto Nordlingen 1861. Em 32 jogos marcou 51 golos, ganhou o campeonato da sétima divisão. Era Gerd Muller - e o presidente de um clube que acabara de se sagrar campeão da segunda divisão foi a Nordlingen, contratá-lo. Era o Bayern Munique - e Zlatko Cajkovski, o seu treinador, desprezou-o:
- Comigo não joga porque não tem corpo de futebolista, basta olhar...
À décima jornada andava o Bayern por ruas de amargura, o presidente entrou em ira no balneário a dentro, decretou:
- Acabou-se! Muller tem de jogar. Sou eu que quero, sou eu que mando...
Cajkovski fez-lhe, resignado, a vontade - e der Dick, o Gordo logo se transformou em der Bomber, o Bombardeiro. Que, já melhor marcador da liga, passou por nova provação: Helmut Schon não o levou ao Mundial de 1966 pelo mesmo:
- Parece um barril, não é grande jogador, os golos que marca é por sorte...
(O resto é o que se sabe e um dos sinais desse resto é o facto de Muller apenas ter perdido o recorde mundial de golos para aquele que provavelmente é o melhor jogador mundial de todos os tempos e também parece não ter o corpo bem desenhado para o futebol: Messi.)
Domingo, voltei a ver o que há muito vejo: o incompreendido Muller no Cardozo, no Cardozo a contar mentiras sobre o corpo (e o estilo e o mais...) que se dever ter para se jogar à bola, dizendo com os pés que só vêem baliza e lhe acertam:
- Não sei se o meu futebol é estranho ou não, nem me interessa. Só sei que sinto o golo com o mesmo instinto com que o predador sente o cheiro do sangue da vitíma, é o que me basta. (É.)"

António Simões, in A Bola

4 comentários:

  1. O que têm todos esses três para terem sucesso?

    Uma coisa: uma equipa por detrás deles.

    São estes jogadores que acabam por de forma quase imperceptível gritar que o futebol é um desporto ainda colectivo.

    O Messi até pode ter capacidade para driblar meia equipa adversária, mas jamais conseguiria fazê-lo com o à vontade que faz em Barcelona com outra qualquer equipa (inclusive com a sua selecção nacional...) e para não falar nesta quantidade de golos que tem marcado.

    O mesmo se passou com Müller e com o nosso Cardozo.

    Excelente artigo do Simões!

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  2. Concordo, é necessário 'encaixar' numa equipa, mas isso é válido para todos os jogadores, inclusive os mais atléticos...
    O mais 'estranho' é que estes tipo de jogadores, conseguem derrubar os estereótipos, que a maioria das pessoas tem sobre aquilo que é necessário ter para ser um atleta de alto nível...
    E fazem-no com muito sucesso.

    Abraços

    PS: António Simões, jornalista d'Bola, e não o ex-jogador do Benfica!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Eh! Eh! Eh!

    Eu a pensar que tinha sido o António Simões... fintaram-me bem agora, confesso!

    Afinal os jornalistas, quando querem até escrevem umas coisas jeitosas...

    Quanto ao tema... para lhe ser franco, abidos, revendo mentalmente os grandes jogadores de futebol de todos os tempos, não me recordo de muitos que não tenham constantemente derrubado estereótipos que a nossa sociedade têm enraizados em demasia.

    Nem mesmo Eusébio e Pelé acho que se safam.

    Se há prova de que o futebol é verdadeiramente um desporto universal é toda essa riqueza da pluralidade de possíveis praticantes.

    O que pode acontecer e isso acho que é o mais comum, é nem todos os responsáveis à frente das equipas saberem "cozinhar com o que têm" e eles sim estarem presos às suas próprias experiências.

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