segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O fungagá da bicharada

"A meio da manhã, ainda entontecido pelos vapores do alcoól da véspera, o Madaleno espreguiçou-se vigorosamente abrindo mais uma costura do seu velho roupão turco. A semana tinha sido agradável.

Apesar das queixas de parte da empregadagem de que já faltava dinheiro para as côdeas, o colchão de palha às risquinhas, oferecido pelo seu compincha de Manzanares na sequência da mascambilha da ave predadora que valera muita fuga de capital, estava gordo de notas de mil. O Madaleno sentia-se feliz. Como de costume, na noite anterior, cosera-se às paredes e às sobras com o seu bando de varrões e surpreendera um solitário rapaz das letras em plena azáfama da sua profissão. Sabe-se como o Madaleno não gosta de letras.

Analfabeto como é, irrita-lhe que simples sinais possam fazer sentido pelo facto de se juntarem numa ordem pré-estabelecida.

Vai daí e gritou a plenos pulmões uma série volumosa de obscenidades que atingiram o moço com a violência de um sopapo. Sopapos esses que se seguiram de imediato por parte dos cerdos que obedecem ao assobio do Madaleno como rafeiros gruins.

O poltrão deixou-se ficar atrás, acoitado, babando-se como um impubescente de gozo e de perfídia. Era mais um para juntar à sua lista infinita e desta vez nem precisara de o atropelar.

Por isso, nessa manhã, sentia-se na plenitude dos seus bordalengos recursos. Voltou a espreguiçar-se, o corpo evolando uma fedentina insustentável, e preparou uma piadola revoltante sobre jaulas e animais para soltar na primeira oportunidade em que um pé-de-microfone lhe surgisse pela frente. Riu-se intimamente da sua própria porcaria sem graça.

Repetiu o gesto de se espreguiçar-se, voltando a cheirar insuportavelmente. E depois só pediu a todos os santinhos que o outro não se lembrasse, mais uma vez, de fingir que era um cãozinho a urinar-lhe nas bandeirolas de canto..."


Afonso de Melo, in O Benfica

Mudanças

"Com a tomada de posse dos membros dos órgãos sociais da FPF eleitos ontem, a FPF abandonará em definitivo o manto de ilegalidade com que se cobriu nos últimos anos e terminará um processo caricato de desafio da lei (que entrou em vigor em janeiro de 2009!) e dos poderes públicos. Por sua vez, em melhor posição no que toca à legalidade não estiveram a Comissão Disciplinar e a Comissão de Arbitragem da Liga de Futebol Profissional, de tal sorte que deixarão de exercer funções para as quais, segundo alguns, não tinham competência desde 1 de julho de 2010 (!) – se assim tiver sido, apenas foram os seus titulares, desde então, uma espécie de “gestores de facto” (“tolerados” pelas instâncias competentes e pelos agentes desportivos) desses dois sectores das competições profissionais. Pois bem: com a legalização da FPF e da Liga, o adepto do futebol terá que se habituar a algumas novidades.

A mais notória é a competência exclusiva do Conselho de Disciplina da FPF para instaurar procedimentos e julgar as infrações disciplinares de todas as competições nacionais (com uma secção profissional e outra secção não profissional), assim como a competência única para administrar e avaliar a arbitragem, que se aglutina no Conselho de Arbitragem (com três secções, sendo uma delas reservada para a observação e classificação dos árbitros). A Comissão de Arbitragem da Liga desaparece; a Comissão Disciplinar da Liga continua, mas só para a apreciação dos ilícitos praticados pelos clubes e sociedades desportivas enquanto associados da Liga. Assim sendo, os Estatutos da Liga determinam que todos os processos pendentes na Comissão Disciplinar sejam remetidos para o Conselho de Disciplina da FPF no prazo de 10 dias úteis após a tomada de posse dos membros do Conselho de Disciplina. O mesmo procedimento deve ser feito pela Comissão de Arbitragem, que, dizem esses mesmos Estatutos, se extingue automaticamente pelo decurso desse prazo de 10 dias. No dia 2 de janeiro de 2012 começará, portanto e salvaguardadas eventuais impugnações, uma outra vida. Faltará dar corpo ao “regimento interno” de cada um desses Conselhos da FPF, que desenhe o funcionamento, as regras processuais e a logística de cada um desses órgãos (bem como do seu corpo de instrutores e colaboradores), que deverão ser aprovados urgentemente pela federação.

A direção da FPF passa a ter a competência para aprovar os regulamentos e regimentos das competições não profissionais e da organização interna da FPF, em detrimento da assembleia geral; ainda assim, a requerimento de 20% dos delegados, a assembleia geral pode alterar esses regulamentos. Por sua vez, a Liga mantém a competência para aprovar os regulamentos aplicáveis nos campeonatos profissionais e definir os pressupostos de acesso às suas provas. Porém, a autonomia da Liga está em parte condicionada pelos delegados da FPF, uma vez que os regulamentos da disciplina e da arbitragem têm que ser ratificados pela assembleia geral da FPF, sob pena de não produzirem quaisquer efeitos.

Um novo tempo com novas e velhas pessoas: um novo ciclo?"


A morte do Dr. Sócrates

"O Benfica foi ao Funchal tropeçar e deixar pelo caminho o sonho da Taça, interrompido um promissor ciclo de invencibilidade. Foi pena, muita pena. Agora falta o resto, e felizmente ainda é muito, a perfilar-se no horizonte como esperança e desafio.

Mas é de Sócrates que hoje vou falar. Não do da política, nem do filósofo da Grécia antiga que escolheu a cicuta para não ter de renunciar aos seus princípios e valores. Este Sócrates era brasileiro, tinha 57 anos e morreu num hospital depois de três internamentos, com uma infecção generalizada, após anos de excessos no consumo de álcool. Recordo-me dele como se fosse hoje, elegante, inteligente, tecnicamente irrepreensível, a deixar a marca da sua presença e do seu estilo na selecção brasileira, nos mundiais de 1982 e 1986.

Ainda por cima, tirando os médicos das selecções, ele era o único a ter esse título académico, coisa raríssima entre jogadores de Futebol de qualquer época, mas sobretudo nessa em que o grau de profissionalização já não permitia acumular uma carreira nos estádios com um percurso académico com êxito. Ele era uma excepção admirável. Ainda por cima, tinha esse nome que rapidamente fica na memória por ser raro e por ter forte carga histórica e filosófica.

Vi-o numa fotografia recente, alquebrado, envelhecido, claramente enfermo. O excesso a que se rendeu, apesar de, sendo médico, saber que caminhava para o abismo, acabou por matá-lo quando já nada tinha para dar ao mundo do Futebol, embora fizesse e continue a fazer parte, por direito pleno, do panteão dos seus heróis e mitos.

A sua morte faz-nos pensar no modo como, terminadas carreiras gloriosas, os grandes craques lidam com o vazio, com o esquecimento e com a nostalgia. Alguns fazem grandes carreiras como treinadores ou dirigentes, mas outros morrem assim ou suicidam-se, porque não é fácil passar da luz ofuscante para a sombra que tudo obscurece e esconde. Paz à sua alma, onde quer que esteja, com a glória do que um dia foi."


José Jorge Letria, in O Benfica